quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

PELOS BECOS DE NATIVIDADE: NOTAS DE UMA VIAGEM AO PASSADO!

"Ai de mim Natividade
Já estou com saudades
Depois de conhecer teus becos
Não me encanta outra cidade".

Ainda não era 07h da manhã, mas o sol da capital anunciava mais um dia quente. Nem um sinal de chuva. Nem uma nuvenzinha se quer no céu – ai de nós, há três meses que não chove por essas bandas. Sentamos no ponto esperando o ônibus para então seguirmos viajem. Na minha frente observei alguns pés de ipê com todas as flores no chão. Então me lembrei do que disse um velho amigo – quando caírem todas as flores do ipê vai chover. Será? Fiquei pensando – pela quentura do sol acho pouco provável. Era por volta das 07h30 quando deixamos Palmas rumo a Natividade no interior do Estado. Não podíamos esconder a empolgação de que em algumas horas conheceríamos o berço histórico do Estado do Tocantins – uma cidade que nasceu ainda no século XVIII, em 1734 mais precisamente, a partir do garimpo de ouro e diamante na serra da Costeira – onde então se formou o Arraial São Luiz. Boa parte de nós nunca havia estado naquele lugar e um sentimento de conhecer profundamente nossas raízes culturais nos animava profundamente mesmo tendo que enfrentar o sol escaldante do cerrado tocantinense. Ah nosso cerrado, tão devastado pelo agronegócio – é o que vemos ao longo do caminho – imensos desertos – aonde antes víamos com abundância – pequi, buriti, cajuí, bacaba, buritirana, jatobá, mangaba, tucum entre outros frutos do cerrado.

Deixamos Porto Nacional para trás e outras pequenas cidadezinhas – entre elas Santa Rosa onde paramos por alguns minutos para nos refrescar, tomar um cafezinho e fumar um palheiro. A viagem seguia e a paisagem não se alterava – imensas áreas devastadas para plantação de soja e algumas ilhotas de mata nativa. Já passava das 11h00 quando entramos na histórica cidade de Natividade – oh, e quão bela é Natividade protegida pelas cordilheiras da serra da Costeira. Com suas ruas estreitas, seus becos de pedras, suas igrejas antigas, seus casarões, mas, sobretudo pela sua cultura e a sua História construída ao longo de três séculos. E ali, naquele lugar, naquela paisagem foi impossível não se lembrar daqueles que por ali deixaram seus rastros.

Seguíamos andando pelas ruas da cidade, que diga se de passagem, parecia não ter uma alma viva. Ora, mas quem em sana consciência andaria pelas ruas sob um sol de quase 50 graus ao meio dia? Só nós mesmos. Assim não foi possível conversar com as pessoas da cidade, não tanto como gostaríamos, porém aproveitávamos cada milímetro daqueles becos históricos – becos que outrora nos conta um jovem guia – era possível encontrar ouro. E foi justamente esse jovem guia que nos recepcionou mostrando as riquezas e estórias do lugar – desde o garimpo na serra da Costeira, do arraial São Luiz, das construções históricas, especialmente das igrejas, dos casarões do século XVIII e do século XIX, das festas populares, sobretudo em louvor ao Divino Espirito Santo, das danças, especialmente a sucia, da lagoa encantada e a lenda da serpente, a pedra perdida entre outras estórias. Em sua fala percebemos o quanto ele se orgulha de sua cidade, de sua história, de sua cultura. Mas que também não tapa os olhos para os problemas que precisam ser superado para que a cidade possa dá um salto de desenvolvimento – claro preservando seu patrimônio histórico, artístico e cultural. Continuamos nossa caminhada pelas ruas históricas da cidade e foi então que chegamos à ourivesaria do mestre Juvenal – grande artista que preservou a arte de filigrana, transformando o ouro bruto em lindas joias. O mestre Juvenal já não vive, mas deixou formados 40 discípulos que mantem viva a sua oficina e especialmente a sua arte. Em seguida visitamos a igreja de São Benedito – construída ainda no século XVIII – pelos escravos que trabalhavam no garimpo. Ai os escravos – negros arrancados da mãe África – que sob sangue, suor e chibata construíram tudo ali. Como a majestosa ruína da igreja de nossa senhora do Rosário que não fora concluída devido à decadência do garimpo, no entanto sua ruína sobrevive nos mostrando o rastro daqueles que ali viveram. Logo ao mesmo tempo em que nos encantamos com tão bela obra, não podemos deixar de sentir a dor dos nossos ancestrais que foram obrigados a carregarem aquelas pedras no lombo. Descansamos por alguns minutos a sombra de uma imensa mangueira e aproveitamos para fumar um palheiro enquanto ouvíamos a professora falar sobre a construção da igreja de Nossa Senhora dos Pretos. Aliás, Natividade poderia também ser chamada de cidade das mangueiras, há muitos pés de manga no lugar. Depois seguimos até a igreja matriz – a igreja de Nossa Senhora da Natividade construída em 1759 – uma curiosidade é que tanto a imagem da santa como os sinos chegaram ao local mesmo antes da construção da igreja. Outra questão a se destacar é a visão privilegiada da serra da Costeira. Enfim fomos conhecer o amor perfeito, isso mesmo, quem vai a Natividade tem o privilegio de conhecer o amor perfeito. E isso não é coisa de poeta, ti garanto. É na cozinha de Dona Naninha – preparado à lenha e nos forros de barro. Infelizmente não pudemos conhecer pessoalmente Dona Naninha, mas sua filha nos recepcionou e nos deu a oportunidade de experimentar essa maravilha. Depois de conhecermos o amor perfeito, sentamos a sombra de uma mangueira e nos deliciamos com a farofa de cuscuz com carne seca da Magna e a torta da Alitania – que, diga-se de passagem, são obras primas da culinária tocantinense. E depois de comer dá sempre aquela vontade de tirar uma sonequinha, mas o tempo urge e é preciso caminhar. Fomos então conhecer o museu histórico de Natividade que fica exatamente no antigo prédio da cadeia pública local – construído ainda no império. O local funcionou como cadeia até 1995. As peças expostas que ali encontramos nos mostrou um pouco da alma do povo que ali viveu – rastros e mais rastros, quantos rastros naquele lugar – do povo que ali viveu e morreu – dos escravos, dos camponeses, dos viajantes. Rastro dos presos que morreram condenados. Por quais crimes? E daqueles que foram libertos por Prestes e sua Coluna e que acabaram seguindo o cavaleiro da esperança pelos sertões do país. Depois saímos dali e fomos ao encontro do espetacular.

Isso mesmo, encontro do espetacular, pois não há palavra mais apropriada para definir Dona Romana e sua obra. Não são poucos os adjetivos que tentam “satanizar” sua figura e suas criações – feiticeira, catimbozeira, bruxa, casa do demônio, no entanto será que essas pessoas em algum momento deixaram o preconceito de lado e foram visitar sua casa para conhecê-la pessoalmente e ouvir suas estórias? Independente de se acreditar ou não no que ela diz – na sua crença, no seu misticismo. Uma coisa é fato – sua figura simples, sua voz tranquila, mas firme ao mesmo tempo, nos mostra que estamos diante de uma figura que transborda energia positiva – e se há uma coisa que suas peças feitas de pedras nos transmite é paz. Sim, a Casa de Dona Romana é, sobretudo, um recanto de paz. Como também de memória dos nossos ancestrais que morreram no garimpo – explorando riquezas para as elites. E a sua figura de mulher negra nos faz recordar de outros tantos negros que morreram durante a escravidão naquele território. Aliás, qual espaço ocupa hoje o negro na sociedade Nativitana. Onde vive, no centro ou na periferia? Não temos respostas para essas questões – talvez no futuro algum estudo nos possa apontar. No entanto é inegável a forte influência dos negros na cultura do local – e Dona Romana talvez seja o maior exemplo dessa influência. “Quando a gente assumi uma missão meu filho, somos vistos como loucos”. Diz dona Romana com toda a sua sabedoria – sabedoria tirada das pedras que ela encontrou pelo caminho. E por que quem faz uma obra tão espetacular como é a sua acaba sendo taxado de louco? Simplesmente pelo fato de que decidimos romper com uma vida medíocre que permeia a existência da maioria dos indivíduos. E esse é o preço dos que ousam romper com a mediocridade – ser taxado de loucos. Porém só os loucos como Dona Romana pode conseguir ser espetacular. Poderíamos ficar horas e horas ali conversando com a aquela senhora que transmite como ninguém a alma do povo do interior tocantinense – simples e hospitaleiro. No entanto precisávamos pegar a estrada de volta para casa.


Já se aproximava das 17h00 quando deixamos Natividade rumo a Palmas, todos muito cansados de uma viagem exaustiva em mais um dia extremamente quente como é de praxe no Tocantins, porém quando passávamos por Porto Nacional começou cair uma chuva e foi sob chuva que chegamos à capital, e não teve como não se lembrar das flores do ipê que eu havia visto pela manhã no chão e do que havia me dito um camarada. Já era noite – no céu uma linda lua cheia nos encantava com seu brilho. Todos nós estávamos extremamente felizes e realizados por tudo que havíamos conhecido – uma experiência que carregaremos eternamente em nossas memórias. É fato que outras viagens virão – há tanto ainda por conhecer desse nosso imenso Tocantins e desse nosso imenso Brasil – mas esta viagem sempre ficará num cantinho especial de nossas memórias. 


Pedro Ferreira Nunes
Casa da Maria Lucia, Lajeado-TO.
Lua Cheia, inverno de 2016.

5 comentários:

  1. Simplesmente irretocável sua narrativa sobre sua estada no nosso pé de serra.

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  2. Amei seu trabalho. Natividade é sempre amada pelos que aqui moram e pelos que passam. Natividade, Natividade, cidade amada.

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  3. Falar sobre NATIVIDADE é falar da história do Norte de Goiás, hoje TOCANTINS. Cidade cantada em prosa e verso pelas autoridades do Estado, contudo esquecida pelas mesmas. Natividade do 'já teve', do 'já foi', contudo para seus filhos de nascimentos e adotados de coração ela continua sendo. Lembro-me do Livro de Poesias: VIBRAÇÕES do escritor, poeta e advogado, JOSÉ LOPES RODRIGUES: Natividade, minha velha cidade, minha terra ... Sabendo do seu passado glorioso de outrora e vendo-a triste como a veja agora, quanta pena me dá Natividade.

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