terça-feira, 9 de maio de 2017

Filosofia e Cinema: Problemas Filosoficos em Dolls: A Esfera Pública e a Esfera Privada e a Questão Ética e Moral.


Por Pedro Ferreira Nunes
Em Dolls, Takeshi Kitano nos apresenta uma estória violenta e poética ao mesmo tempo – estória de alguns personagens que ao romper com ás tradições da sociedade japonesa acabam tendo um destino trágico. No embate entre manter a tradição ou subverte-la, entre cumprir o dever com a coletividade ou satisfazer sentimentos individuais percebemos uma discussão entre ética e moral. Nessa linha salientamos o pensamento de Adolfo Sanchez Vasquez a cerca dessa questão. Para este autor as questões éticas não dizem respeito apenas a nós, mas também a outras pessoas. Já a moral são atos e formas de comportamento dos homens em face de determinados problemas. (Vasquez, 1984). Logo nosso objetivo nesse breve artigo é abordar a questão ética e moral á partir da perspectiva de Adolfo Sanchez Vasquez no filme Dolls de Takeshi Kitano. Antes faremos uma breve abordagem a cerca da questão da coletividade versus individualidade, relacionando tal temática com a influência do pensamento de Confúcio na sociedade japonesa. E ainda nessa linha faremos uma relação do problema a cerca da coletividade versus individualidade com a questão da esfera pública e da esfera privada a partir do pensamento de Hanna Arendt. E por fim abordaremos a violência apresentada em Dolls – uma violência que não é explicita, mas que não deixa de ser impactante. Aliás, o impacto da violência em Dolls esta no fato de que ela não é explicita.
Dolls e a questão da coletividade versus individualidade
O problema a cerca do dever com a coletividade versus a individualidade – de manter a tradição ou subvertê-la é uma das questões centrais que percebemos nas estórias dos personagens de Dolls. Por exemplo, quando Matsumoto decide abandonar o casamento no ultimo momento com a filha do Chefe para resgatar sua antiga noiva que tentara o suicídio após o termino da relação. Já Nukui abandona o seu dever no trabalho para se aproximar do seu ídolo. E Hiro ao romper com as regras rígidas da máfia ao se relacionar em público com sua amada. Em todas essas estórias percebemos o rompimento com o dever com um coletivo para satisfação de desejos individuais. E nesse embate entre deveres coletivos e sentimentos individuais percebemos a influência da filosofia confucionista que ainda hoje tem forte presença na cultura japonesa.
Segundo Ferreira (2008) “a manutenção desse pensamento se dá não apenas num estabelecimento de uma relação hierárquica dentro da sociedade, mas principalmente na força de um pensamento que valoriza o sentimento comunitário, o pertencimento a um grupo, que pode ser a família, a turma, a empresa, acima das individualidades. As relações hierárquicas vão se estabelecer muitas vezes dentro desse sentimento de grupo”. Logo quando os personagens de Dolls rompem com essa logica acabam sendo punidos – todos acabam tendo um destino trágico por romperem com a tradição, com o dever, com a coletividade. E tais decisões acabam desencadeando uma cadeia de violência. Que, aliás, é uma característica desse filme.


A violência em Dolls ou a beleza da dor
Em Dolls, Takeshi Kitano nos apresenta uma perspectiva diferente da violência. Não aquela violência de uns contra os outros que geralmente vemos no cinema, mas sim uma violência contra si mesmo – uma espécie de autopunição, de autodestruição. É o que percebemos, por exemplo, na estória do fã (Nukui) que cega os próprios olhos para se aproximar do seu ídolo – e como consequência acaba morrendo atropelado. Ou do casal de mendigos acorrentados (Sawako e Matsumoto) que caminham para o precipício. Ou do chefão da máfia (Hiro) que por tentar reviver um antigo romance do passado acaba sendo assassinado por não cumprir as regras que seu cargo de chefe da máfia exige. Também podemos afirmar que a violência que mais chama atenção em Dolls não é a violência explicita, mas sim aquela que está em pequenos gestos como, por exemplo, quando o fã pega o estilete para furar os olhos – não precisamos vê-lo furando os olhos para sentir a dor, ou quando o mesmo é atropelado e vemos apenas o vermelho do seu sangue – não precisamos ver o seu corpo ensanguentado para sentir a dor. Já no caso do chefão da máfia a violência não esta quando ele leva os tiros, mas nos segundos antes quando ele olha para os seus capangas que o esperam no carro e percebe que será morto pelas costas. E no caso do casal de mendigos acorrentados é o momento em que ele pega a corda e fica analisando-a, pensando no que irá fazer. Ali percebemos o ponto extremo a que eles chegaram e que os levará para o abismo.
Segundo Ferreira (2012) “em Dolls destaca-se uma violência que não é física, mas sim uma violência dos sentimentos, presente nas relações entre os personagens, na impossibilidade de realização desses relacionamentos”. Porém toda essa violência nos é apresentada de uma forma poética, de uma forma bela. E a beleza tal como a violência esta nas ações e nos gestos. Ações que os levam a romper com os “status cos”, com o pensamento hegemônico, com o “tu deves” – ações que são “gritos de liberdade preso na garganta”. (Garatos Podres, 1993). Ainda nessa linha sobre a forma poética como a violência é apresentada em Dolls é importante destacar a contribuição de Ariano Suassuna ao analisar o pensamento de Aristóteles sobre as categorias de beleza, em especial o sublime e o trágico. Para Suassuna (2008) o Sublime é aparentado com o Trágico, por que ambos despertam o terror e a piedade. A distinção entre os dois se encontra no fato de que enquanto o Trágico é despertado por uma ação, o Sublime se dá pelo pensamento. Logo podemos afirmar que o Sublime está ligado mais as artes literárias, como por exemplo, a poesia épica e a filosofia. Já a tragédia esta mais ligada ao Teatro. E é justamente no Teatro Bunraku que Takeshi Kitano vai se inspirar para contar as estórias trágicas e violentas de seus personagens no filme Dolls.

Dolls e a questão da esfera pública e da esfera privada
Para Arendt (2011) a esfera pública é aquilo que é comum a todos. Logo “a esfera pública, enquanto mundo comum reúne-nos na companhia uns dos outros e, contudo evita que colidamos uns com os outros”. (Arendt, 2011). Percebemos ai a questão do dever – o dever é fundamental para que não colidamos uns com os outros. A coletividade também contribui para que não caminhemos para o isolamento radical. E a partir dai para um processo de negação da pluralidade que pode levar os homens a se tornarem seres privados. Privados no sentido de não conseguir dialogar com o outro. Podemos perceber tal fato em Dolls, sobretudo na estória de Matsumoto e Sawako que caminham para um completo isolamento.
Por outro lado Arendt (2011) também ressalta o risco de se perder a privacidade. Das pessoas não terem direito a viver seus sentimentos para atender o coletivo. Nessa linha a esfera privada acaba se tornando um refugio para o homem diante do mundo comum. Sendo que quando se vive apenas em público acabaríamos tendo uma vida superficial. É justamente disso que os personagens de Dolls buscam fugir – de uma vida superficial. Pois se aceitasse se casar com a filha do chefe Matsumoto não estaria fazendo o que gostaria mais sim a vontade dos seus pais. Logo o que resultaria de uma união forçada era uma vida superficial. Da mesma forma Nukui e Hiro.
Segundo Arendt (2011) “não é de forma alguma verdadeiro que somente o necessário o fútil e o vergonhoso tenham o seu lugar adequado na esfera privada. O significado mais elementar das duas esferas indica que há coisas que devem ser ocultadas e outras que necessitam ser expostas em público para que possam adquirir alguma forma de existência”. A partir dessa reflexão percebemos como é fundamental garantir a existência tanto de uma esfera pública como de uma esfera privada. Á perca de uma dessas ou das duas é perigoso. Nesse sentido podemos concluir que se Matsumoto, Nukui e Hiro optassem por atender aos deveres coletivos, ao invés de sucumbir aos sentimentos individuais, não teriam um destino menos trágico. Pois abrir mão da nossa individualidade de viver o que sentimos para assumir o papel que a sociedade nos impõe não deixa de ser uma violência, uma tragédia. Logo é preciso buscar um meio termo – onde o público e o privado coexistam. Porém em uma sociedade tradicional e hierárquica isso não é uma tarefa fácil. Dai que a saída do auto sacrifício parece ser uma perspectiva mais honrosa. E foi justamente esse o caminho trilhado por Matsumoto e Sawako – o casal de mendigos acorrentados, pelo jovem Nukui – o fã que cegou os olhos, e por Hiro – o chefe da máfia.


Dolls e a questão ética e moral
O problema central em Dolls é a cerca do dilema entre manter a tradição ou subverte-la, em cumprir os deveres com o coletivo ou realizar seus desejos individuais. Nas estórias que se entrelaçam os personagens decidem romper com o coletivo para viver seus desejos individuais. Eles decidem se isolar na esfera privada e se afastarem completamente da esfera pública. E tal decisão acaba os levando para um final trágico. Por outro lado, se eles houvessem optado em seguir um caminho oposto, isto é, se cumprissem os deveres exigidos pelo coletivo, teriam tido um destino menos trágico? Como afirmamos anteriormente, acreditamos que não. E do ponto de vista da ética e da moral como podemos ver essa questão central que nos apresenta Takeshi Kitano em seu Dolls? Antes propriamente de abordar essa questão nos cabe aqui brevemente diferenciar a ética de moral.
Nessa linha ressaltamos que a ética é generalista, logo seus princípios devem ser universais. Ela se torna, portanto de caráter mais teórico do que prático. Logo o que se faz concretamente está mais ligado à questão moral do que ética. Sendo assim, a ética esta ligada a teoria enquanto a moral a prática. Diante disso fica claro que em Dolls as ações dos personagens são de ordem moral e não éticas.
É possível falar em comportamento moral somente quando o sujeito que assim se comporta é responsável pelos seus atos, mas isto, por sua vez, envolve o pressuposto de que pôde fazer o que queria fazer, ou seja, de que pôde escolher entre duas ou mais alternativas, e agir de acordo com a decisão tomada. O problema da liberdade da vontade, por isso, é inseparável do da respon­sabilidade. (Vasquéz, 1984)
Matsomoto, Sawako, Nukui e Hiro agiram moralmente pelo fato de que todos eram responsaveis pelos seus proprios atos, tinham mais de uma opção, e quando decidiram por tal opção seguiram até as ultimas consequências. Logo ao exercerem a liberdade de escolha, tiveram que arracar com as responsabilidades adivindas de suas decisões. Mas esse comportamento moral baseado na individualidade choca com a moralidade hegemonica. Isto é, com a moralidade da comunidade. E isso percebemos claramente em Dolls, um conflito entre morais distintas. Tal fato é uma caracteristica de uma sociedade fundamentada na divisão de classes, concepções diferentes de morais, e, por conseguinte uma disputa entre estas. Assim Vasquéz (1984) vai afirmar que a moral tende a se diversificar de acordo com os interesses antagonicos. E isso contribuie para que se tenha um progresso moral. Claro que numa sociedade tradicionalista e hierarquica como é a japonesa esse progresso moral é um tanto mais lento como em outros países – onde existe uma maior disputa de classes e, por conseguinte de morais. É justamente nesse interim que entra a ética.
Segundo Vasquéz (1984) “A ética parte do fato da existência da história da moral, isto é, toma como ponto de partida à diversidade de morais no tempo, com seus respectivos valores, princípios e normas. Como teoria, não se identifica com os princípios e normas de nenhuma moral em particular e tampouco pode adotar uma atitude indi­ferente ou eclética diante delas. Juntamente com a explicação de suas diferenças, deve investigar o princípio que permita com­preendê-las no seu movimento e no seu desenvolvimento”.
Nessa linha podemos fazer uma leitura de Dolls como uma obra que aborda a questão ética – o filme de Takeshi Kitano não busca determinar ou criar uma nova moral, mais sim analisar a história da moral no Japão e como ela se consolidou. Uma moral hegemônica baseada num dever com o coletivo, com a hierarquia e a tradição. Mas sem esconder os conflitos morais que existe no país. Assim Kitano contribui com seu filme não apenas para que compreendamos a moral ou as morais japonesa, mas também o seu desenvolvimento.

Conclusão
Partindo da concepção de que a Filosofia possui problemas, sendo que segundo Porto (2002) a unidade dinâmica interna desses problemas é o que está na base da multiplicidade e da mudança de temas e opiniões. E ainda que o caminho para entendermos um autor é ver a sua filosofia como resposta “ao” problema que ele se coloca. Assim buscamos analisar e compreender o filme Dolls do cineasta Japones Takeshi Kitano a partir dos problemas filosoficos que ele nos apresenta, isto é, a questão da esfera pública e da esfera privada e a questão da ética e da moral. E para compreender essas questões buscamos as reflexões dos filosofos Aldofo Sánches Vasquéz e de Hanna Arendt. O que nos levou a concluir que a ética e a moral é um tema central discutido em Dolls.


Referências bibliográficas
ARENDT, H. A Condição humana. 10º ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2011.
FERREIRA, GUSTAVO HERINQUE LIMA. Dolls: O teatro Bunraku no cinema de Takeshi Kitano. UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil. AVANCA | CINEMA 2012.
GAROTOS PODRES. Aos fuzilados da CSN. CD canções para ninar. Vol. 01 – São Paulo: Independente, 1993.
PORTO, MARIO ARIEL GONZALEZ. A filosofia a partir de seus problemas. São Paulo: Ed. Loyola, 2002.
SUASSUNA, ARIANO. Iniciação á Estética. – 9º edição – Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
VÁSQUEZ, ADOLFO SÁNCHEZ. Ética. - 4º ed. Barcelona: Editorial critica, 1984.

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