segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Conto: Ocupação

João estava há um pouco mais de um ano morando em Goiânia. Era mais um como tantos outros que deixara sua terra natal – no interior nortista – Mais precisamente a pequena e pacata Miracema do Tocantins, que um dia fora do Norte – em busca de uma vida melhor na cidade grande. Chegando a Goiânia logo começou a trabalhar na construção civil – alugou um barracão na periferia da cidade e mandou vim do norte sua esposa e seus filhos.

Em Miracema a vida não era fácil, dificilmente conseguia trabalho. Não havia indústria e no campo os serviços eram cada vez mais raros, sobretudo com o avanço da monocultura de soja e cana de açúcar na região. A maior empregadora do município era a prefeitura, no entanto os trabalhos eram precarizados através de contratos temporários – que não respeitam as garantias trabalhistas e são suspensos a qualquer momento de acordo com o interesse do grupo politico que esteja à frente da prefeitura.

A condição de vida era extremamente degradante e não havia nenhuma perspectiva de sair daquela situação. O bolsa família apenas evitava que eles morressem de fome, não dando nenhuma condição para emancipar-se.

João tinha alguns parentes que viviam em Goiânia, foi através deles que decidiu ir de muda pra lá. Nunca havia passado por sua cabeça deixar sua terra natal. Viu muitos amigos seus partir dali, até mesmo para outros países. Mas ele que nascera e crescera em Miracema não pensava deixar sua querida cidade. Por outro lado sabia que não havia alternativa se quisesse dar o mínimo de condição para que sua família tivesse uma vida digna. E foi com esse sonho na bagagem que ele deixou Miracema.

Mesmo morando na periferia da cidade o aluguel não era barato. Juntando o seu salário de servente de pedreiro na construção civil e de sua esposa de diarista nos condomínios de luxo da burguesia goiana mal conseguiam pagar o aluguel e alimentar a família que não era pequena. João pensava consigo:

- Se ao menos conseguíssemos sair do aluguel. Já economizaríamos muita coisa.

Com o salário que ganhava era impossível comprar uma casa. A solução então seria esperar ser atendido pelo um programa habitacional do governo. Mas João não se iludia com isso – pois bem sabia que não só era difícil como beirava o impossível. Ele conhecia gente que há mais de 10 anos tinham assinado cadastro e nunca haviam sido contemplados por tais programas habitacionais.

Foi então que um companheiro no trabalho falou de uma grande ocupação de famílias sem teto na capital goiana. Com muita empolgação disse como as coisas estavam caminhando, ressaltando enfaticamente que com luta eles poderiam ganhar a tão sonhada casa própria e sair do famigerado aluguel.

- Vamos lá camarada João, junte-se a nós. Quanto mais pessoas, mais forte é o movimento e as perspectivas de vitória.

João sempre teve uma opinião muito dura sobre as pessoas que invadem “as coisas alheia”. Quando via a atuação do movimento sem terra na região onde morava achava que todos eram um monte de vagabundos que não queriam trabalhar. E os sem tetos para ele não eram muito diferentes. Mas agora ele estava vendo na pele o quanto é difícil pagar um aluguel e ter que alimentar uma grande família. Se continuasse da forma que ia, logo João e sua família seriam despejados, pois não teriam condições de pagar aluguel.

E se fossem despejados aonde iriam morar? De baixo da ponte? Voltar para o norte pior do que quando chegaram ali? As perspectivas não eram boas. Foi então que juntamente com sua esposa decidiu participar da ocupação.

- Vamos chegar companheiro. A vida aqui não é fácil. Mas se a gente resistir na luta podemos alcançar nosso objetivo. Disse Camilo, um dos lideres da ocupação.

- O que eu tenho que fazer? Questionou João.

- Bom companheiro. Constrói o teu barraco e passa para dentro com tua família. Contribua com as tarefas coletivas da ocupação bem como com as ações que realizamos. Respondeu Vilma, que também fazia parte da equipe que liderava a ação.

João não perdeu tempo, construiu um barraco e passou para dentro com a família, enfim estavam livres do aluguel. Ao contrario do que imaginava as pessoas que ali viviam não eram vagabundos, mas tudo gente trabalhadora como ele que vinha de outros estados ou mesmo do interior de Goiás e que não tinha casa própria e não conseguiam pagar aluguel.Ele então compreendeu a importância daquela luta. Aprendeu que estava lutando por um direito seu e de outros tantos que estavam na mesma condição. João compreendeu que a luta do movimento dos trabalhadores sem teto e sem terra é legítima – pois é uma luta em defesa de direitos historicamente negados.

- Tá lá na constituição. Moradia é um direito de todos. E é obrigação do Estado garantir esse direito. Se nós não lutarmos por esse direito, o governo não nos dará de mão beijada. Dizia Camilo.

Ele então foi se transformando e aos poucos tornou-se uma liderança do movimento e um dos coordenadores da ocupação. E não era qualquer ocupação – localizada numa área conhecida como Parque Oeste Industrial – a ocupação Sonho Real tornou-se a maior ocupação de trabalhadores sem teto de Goiás e uma das maiores do Brasil. Com o tempo a ocupação foi se transformando num verdadeiro bairro – as barracas de lona foram dando lugar às casas de tijolos. Surgiram ruas, comercio, igrejas entre outros.

Diante desse cenário ninguém acreditava mais que seriam capazes de tira-los daquele lugar, ainda mais quando os governantes de então prometeram legalizar o terreno e transforma-lo legalmente em um bairro. João não conseguia esconder a felicidade. Mas para ele a luta não acabaria quando conseguisse o documento da sua casa própria. Era preciso continuar lutando para que tantos outros realizassem aquele sonho.

Mas eis que então surge um processo de reintegração de posse – a justiça decretou a decisão de que o terreno deveria ser desocupado.Foi então que João aprendeu uma nova lição – nunca, mais nunca, em hipótese alguma deveria acreditar no governo.

- A promessa de que iriam desapropriar essa área por interesse social para destina-la a nós era apenas para ganhar nossos votos. Agora diante da decisão judicial lavam as mãos. Ou pior ainda, utilizaram as forças de repressão para nos expulsar daqui. Discursava Camilo.

- O que faremos? Questionavam todos.

- Vamos resistir. Eles não serão capazes de passar o trator por cima de nossas casas com a gente dentro. Gritava Vilma.

- Será? Pensava consigo João. Eles são capazes de fazer bem pior, mas não dá para recuar, temos que resistir.

E assim foi decidido por todos, ou pelo menos pela grande maioria – resistir à reintegração de posse. Eles haviam investido ali o ganho de toda uma vida, não poderiam abrir mão de tudo que tinham construído. Ora, aquela área pertencia a eles de fato. Mas o governo e a justiça não viam assim.

- Seja o que tiver de ser. Só saiu daqui morto. Dizia João.

- Não aceitaremos ver nossas casas destruídas. Aonde nos jogaram? Gritavam os sem teto.

Se os sem tetos estavam dispostos a resistir o governo também não estava disposto a recuar.

- Tem uma decisão judicial e temos que cumprir. Dizia o porta voz do governo.

- Canalhas, canalhas, canalhas. Diziam os sem tetos.

João passou noites acordado defendendo a ocupação. Na trincheira ao lado dos seus companheiros olhava perplexo para todo o aparato militar que o governo havia mobilizado contra eles – de um lado os trabalhadores se armavam de paus, pedras e coquetéis molotov. Do outro um aparato militar de guerra.

- Eles querem nos vencer pelo cansaço. Estão apenas nos cercando.

- Estão colocando uma puta pressão psicológica na companheirada.

- E estão conseguindo. Tem muita gente desistindo e indo embora.

- É verdade. Mas daqui não saiu. Se quiserem que eu saia terão que entrar aqui para me tirar a força.

- A nós também.

Enquanto isso a pressão de cima para que as forças de repressão invadissem e despejasse os sem teto era cada vez maior.

- Essa ação tem que servir de exemplo para que nunca mais esses vagabundos invadam terra de ninguém.

- Certo.

- Que não passe dessa noite. Quando amanhecer o dia quero ver tudo aquilo no chão. Nem que para isso tenhamos que banhar aquilo de sangue.

- E os direitos humanos?

- Foda-se os direitos humanos. Mas é claro que a gente não vai fazer na cara dura. Faremos uma boa maquiagem. O que será bem fácil, ainda mais com o apoio da impressa que esta do nosso lado.

- Bom, manipular é com a gente mesmo. Não teremos problema quanto a isso.
- E essa operação tem que ser à noite por que justamente facilita para encobertar o que precisa ser encobertado.

O dia amanheceu triste, muitos corpos espalhados pela cidade, às casas estavam no chão – todas destruídas. A fumaça podia ser vista de longe. Na noite anterior o governo de Goiás a serviço do capital imobiliário, através de sua policia, passou por cima de mulheres, crianças, homens e idosos sem nenhuma piedade.O corpo de João foi encontrado alvejado de bala ao lado dos seus companheiros na trincheira onde estava defendendo a ocupação. Ele e tantos outros banharam aquela fria madrugada goiana de sangue.

Quando caiu a trincheira que João guardava, caiu toda a ocupação. E assim as famílias de trabalhadores sem teto não tiveram alternativa se não renderem-se. Pois era a rendição ou a aniquilação total, já que as forças de repressão policial estavam totalmente dispostas a aniquilar qualquer resistência.

*Esse conto é fictício, qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

Pedro Ferreira Nunes – É Poeta e Escritor Popular Tocantinense – Autor do romance “A Ilha dos Espíritos”, do livro de poemas “Minha Poesia” entre outros.

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