segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Notas sobre o caminho da independência

O grêmio estudantil do Cemil Santa Rita de Cássia me convidou para fazer uma fala no evento em alusão a independência do Brasil celebrado no dia 07 de setembro. Fiquei pensando que seria mais apropriado uma fala de um professor formado em História. Mas topei o desafio. A partir daí comecei a pensar no que iria falar. E o que imediatamente me veio à cabeça foi a frase escrita por Machado de Assis no romance Quincas Borba - ao vencedor as batatas. Frase que inclusive serve de título a um ensaio sobre literatura brasileira feito pelo Roberto Schuwartz.

Pensei então em partir daí, mas ao fazer a leitura do material achei que não cabia naquele momento. No entanto, peguei alguns pontos que me pareciam ser importantes naquela conversa. Sobretudo o processo de formação social brasileiro. Isso imediatamente me remeteu as aulas sobre Hegel que estava desenvolvendo no mesmo período nas 1ª séries do ensino médio - sobretudo a compreensão da história como um processo movido por suas contradições internas. Diante disso decidi elaborar uma fala que não reduzisse a independência do Brasil ao grito do Ipiranga e a figura de Dom Pedro I. Busquei mostrar os conflitos que foram eclodindo no interior da sociedade e os diferentes atores que contribuíram para que a independência ocorresse.

Busquei mostrar que os grandes acontecimentos históricos não são obras de um único indivíduo, por mais extraordinário que ele seja. E conclui propondo uma reflexão de qual o sentido de celebrar a independência do Brasil. E aqui não pude deixar de relacionar com o contexto atual marcado por uma discussão sobre soberania nacional diante da tentativa do governo Trump (EUA) de interferir  no Brasil por meio de sanções econômicas entre outras. Reafirmando que o sentido de celebrar a independência  é reafirmar a soberania do Brasil.

Poderíamos começar nossa fala de qualquer ponto, mas optei seguir uma linha do macro para o micro. Ou seja, comecei falando dos conflitos que estavam acontecendo na Europa provocados pelas guerras napoleônicas que afetaram Portugal obrigando a família real a fugir para o Brasil em 1807. Não faltam autores (Laurentino Gomes, Lilia Moritz Schwarcz, Isabel Lustosa entre outros) que apontam como esse acontecimento impactou a vida local. O que podemos perceber é o que ocorreu a partir daí, por exemplo a abertura comercial a partir de 1808, com o Brasil sendo autorizado a negociar com outras nações. Óbvio que essa abertura não visava o desenvolvimento do Brasil, mas o bem estar da corte. Porém essa medida fortalecia outros setores que começaram a perceber que tinham muito a ganhar economicamente com a independência do Brasil. Em 1815, ao ser elevado à condição de reino de Portugal, o Brasil ganha ainda mais autonomia. Beneficiando uma elite local que terá um papel decisivo nos rumos que Dom Pedro I tomará. Em 1820 temos a revolução do Porto que culminará no retorno da família real a Portugal.

Os mesmos que pressionam para que isso aconteça também irão pressionar para que o Brasil volte a ser colônia. Ficando assim evidente que as mudanças no sentido de uma maior autonomia do território brasileiro para estes buscava apenas garantir o bem estar da corte portuguesa e não o desenvolvimento de fato do território. Porém, toda mudança trás suas contradições, abrindo possibilidades. Ou seja, aqueles que se beneficiaram dessa nova condição do território brasileiro, passaram a se contrapor a esse retorno. Soma-se a isso as revoltas das camadas populares que esperavam com a independência do Brasil serem reconhecidas como sujeitos de direitos. Inclusive havia a promessa dessas elites nesse sentido. Elites essas que irão apoiar Dom Pedro I, que havia sido deixado pela sua família como príncipe regente, a declarar a independência do Brasil. Um ato que não foi tão pacifico como se pensa. Em lugares como Bahia, Pará e Maranhão desencadeou conflitos armados que contribuíram decisivamente para a consolidação da independência do Brasil que será reconhecida pelos outros países, incluindo Portugal (mas com indenização).

Ora, não deveria ser o contrário? Não seria Portugal que deveria indenizar o Brasil por tudo que usurpou desse território? Um território que inclusive já estava ocupado pelos indígenas quando os portugueses chegaram. Mas enfim. Não tinha muito tempo para problematizar essa questão na minha fala breve. Mas não pude deixar de fazer uma referência à frase machadiana - ao vencedor às batatas - que nada mais é do que uma analogia para dizer que a conquista não é para todos. E quando analisamos a sociedade brasileira atualmente fica bastante evidente quem “ganhou as batatas”. Uma elite medíocre capaz de vender a alma em troca de privilégios. Essa elite é capaz inclusive de abrir mão da soberania nacional se isso significar benefício a si. Essa análise não entrou na minha fala. Preferi exaltar algumas figuras que são preteridas quando falamos no processo de independência do Brasil como a Maria Quitéria, Maria Felipa, Frei Caneca e Sepé Tiaraju.

Por esses e outros tantos que tombaram na luta por uma nação soberana que faz sentido celebrarmos a independência do Brasil. Finalizei minha fala salientando que do ponto de vista filosófico quando falamos em soberania em relação a um território estamos falando que este território não se sujeita a qualquer poder externo. Na linha do que diz Rousseau, quem confere essa soberania é o povo que legitima o poder estatal que deve se relacionar com independência com os outros estados. Portanto, pela memória daqueles que se sacrificaram para que o Brasil se tornasse soberano, e por nós mesmos não devemos temer se for necessário pegar em armas para defender essa soberania. E assim concluí minha fala.

Pedro Ferreira Nunes - Mestre em Filosofia (UFT) e Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Poema: Vovô Romualdo



Olhar perdido no horizonte
sentado em um banco de madeira
em sua casinha de taipa
no velho Sussuapara
Essa é a última lembrança que tenho dele.

Era negro como o Zumbi
Camponês como o João Pedro
Nordestino como o Marighela
Ferreira como o Lampião.

Homem de poucas palavras
Guardava consigo mistérios
Que já mais serão revelados.

Vovô Romualdo
Por muito tempo viveu como posseiro.
A idade obrigou-o a deixar o campo 
Mudando então para cidade.
Onde morreu na miséria
Como tantos camponeses pobres
Sem terra.

Era afamado no sertão miracemense
Bom no roçado 
Na briga de facão 
Habilidoso no bailado. 

Casou três vezes
Teve um filho apenas
Mas que valeu por muitos
Lhe deu muitos netos.

Vovô Romualdo 
Tinha um olhar triste
Seria saudades do seu nordeste querido?
Das lutas que lá travara?
Dos amores que lá deixara?

Vovô Romualdo
Trago em minhas veias
Teu sangue libertário
O ódio pelo coronelismo
E o amor pelo sertão.

Convivemos muito pouco é verdade
Mas bastante o suficiente
Para que de ti
Já mais me esqueça.

Por Pedro Ferreira Nunes - Apenas um rapaz latino americano, que gosta de ler, escrever, correr e ouvir rock in roll.

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Algumas palavras sobre o livro: Pesquisas e práticas em Ensino de Filosofia a partir do PROF-FILO

Quem atua com o ensino de Filosofia no chão da escola muitas vezes se sente desamparado pela falta de material didático que atenda a realidade da sala de aula. Diante disso ter uma obra com a sistematização de pesquisas e práticas desenvolvidas a partir do ensino de Filosofia na educação básica é certamente uma iniciativa importante. Esse é o caso do livro organizado pelos Professores Doutores: Paulo Sérgio Gomes Soares e José Soares das Chagas. A partir de trabalhos desenvolvidos no Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO).

Os organizadores são professores do Núcleo da Universidade Federal do Tocantins (UFT) do Programa de Mestrado Profissional em Filosofia. Quanto aos trabalhos são de estudantes egressos do programa, juntamente com seus orientadores. São trabalhos que foram desenvolvidos em Estados como Paraná, Pernambuco, Piauí e Tocantins. E que apresentam possibilidades de práticas pedagógicas a serem desenvolvidas tanto no ensino fundamental como médio. Assim como reflexões sobre o ensino de Filosofia e pesquisas desenvolvidas na área.

O relato das práticas desenvolvidas na sala de aula de diferentes contextos nos faz refletir acerca da nossa própria realidade. E certamente contribuem para que repensemos a nossa prática docente. O mais importante nessas pesquisas desenvolvidas é que as professoras-pesquisadoras e professores-pesquisadores não tentam nos empurrar uma fórmula de como desenvolver o ensino de filosofia. Muito pelo contrário. O que fica de mais importante é a atitude de tentar responder aos problemas que perceberam a partir da realidade em que estão inseridos. Ressaltando inclusive os limites que o sistema nos impõe. Sobretudo em relação a uma carga-horária mínima - carga-horária essa que não raramente é afetada por atividades imposta de cima para baixo pelas secretarias de educação. Além da dificuldade de engajar criaturas que acreditam que “sabem tudo”. Inclusive que, na sua visão limitada, o estudo escolar é coisa supérflua. Ainda mais quando esse estudo, no caso da filosofia, exige entrega - sair na nossa zona de conforto.

O livro é dividido em capítulos. E cada um contém o relato de uma pesquisa desenvolvida. Ao todo são 10 capítulos em que no geral percebemos uma forte influência da concepção de um ensino de Filosofia a partir da tradição francesa. Inclusive os três primeiros capítulos que abrem a obra tem como principal referência teórica Michel Foucault: 1- Orientação Sexual na Escola: Desafios filósofos na perspectiva de Michel Foucault (Romulda M. F. Vieira e Christina Lindberg); 2- Loucura, Saber-poder em Michel Foucault e o filme Bicho de Sete Cabeças: Uma proposta para experiência filosófica no ensino médio (Marcella Aparecida Schiavo Trava e Stela Maris da Silva); 3- “O que passou não conta?” A Filosofia e o ensino de Filosofia enquanto atitude - Limite referências Foucaultianas (Marcella Aparecida Schiavo Trava e Stela Maris da Silva). Os dois capítulos seguintes (4 e 5) trazem uma nova perspectiva. Tentando romper com a filosofia clássica: 4- Dessacralizar para filosofar desafios, rupturas e possibilidades da Filosofia na Educação Brasileira (Eusébio A. de Oliveira e Cristiano Dias Silva); 5- A Escola dos sonhos - conhecimento ancestral transmitido pelas palavras dos espíritos animais (Adriane C. dos Santos e Roberto Amaral). E eu ousaria dizer que são os dois textos mais interessantes juntamente com o 6 e o 7: 6- Imagens que pensam: O stop-motion como estratégia para explorar a presença das imagens técnicas na sociedade (Aline Aquino Alves e Leon Farhi Neto); 7- Música e oficinas pedagógicas no ensino de Filosofia em uma escola da educação básica na SEDUC-PI (Akyciel S. Farias e José Soares das Chagas). O 8 não traz nenhuma prática desenvolvida em sala de aula. Limita-se a uma reflexão sobre o ensino de Filosofia: 8- O ensino de Filosofia como uma questão filosófica (Heros Falcão Araújo e José Soares das Chagas).  O 9 também não traz nenhuma prática desenvolvida em sala de aula. Mas revela um fato interessante - a desigualdade de gênero no campo da pós-graduação em Filosofia assim como as pesquisas desenvolvidas: 9- PROF-FILO entre 2018 e janeiro de 2022: Notas para pensar as pesquisas sobre ensino de Filosofia (Bárbara N. Honorato Sousa e Pedro Gontijo). O capítulo 10, o capítulo que encerra o livro, também não traz um relato de uma prática desenvolvida em sala de aula. Mas um relato de experiência sobre a produção de uma espécie de wikipédia de Filosofia: 10- Wiki de ensino de Filosofia do sertão filosófico: um relato de experiência (Gabriel Kafure da Rocha e Emival Tibúrcio Silva).

Além das possibilidades que as pesquisas e práticas apresentadas neste livro oferecem aos professores e professoras que atuam no ensino de Filosofia. É também uma evidência da importância desse programa de mestrado profissional. E aqui temos apenas uma pequena amostra já que o PROF-FILO está em todo o Brasil.

Para finalizar, recomendo a leitura de Pesquisas e práticas em Ensino de Filosofia a partir do PROF-FILO (2025, EDUFT), disponível gratuitamente na versão ebook pela editora da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Também recomendo a conhecerem o programa de mestrado e porque não se aventurar em cursá-lo. Posso dizer a partir da minha vivência no curso que é certamente um divisor de águas na nossa formação. E consequentemente na nossa atuação enquanto docente em sala de aula.

Pedro Ferreira Nunes - Mestre em Filosofia (UFT) e Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins.

domingo, 5 de outubro de 2025

Tocantins: Qual o futuro de um Estado que não valoriza seus professores?

Domingo, 05 de outubro de 2025. Acordei vendo as celebrações acerca do aniversário de criação do Estado do Tocantins. As postagens que celebram as belezas dessa terra não me afetaram de alegria. Pelo contrário. Pois me ocorreu o seguinte pensamento: Qual o futuro de um Estado que não valoriza seus professores?
Esse pensamento é fruto do movimento que realizamos essa semana, direcionados pelo Sindicato dos Trabalhadores na Educação do Tocantins (SINTET-TO), reivindicando o envio do novo plano de cargos, carreiras e remuneração (PCCR) dos professores para a Assembleia Legislativa do Tocantins e posterior sanção do governador. O que pudemos perceber a partir do relato da conversa que o sindicato teve com o atual secretário da Educação -  Hercules Jackson Moreira Santos - é que o atual governo não tem isso como uma das suas prioridades. Aliás, o perfil escolhido pelo governador em exercício - Laurez Moreira - para comandar a SEDUC já é um indicativo disso.
Não há justificativa para que a proposta elaborada por uma comissão (incluindo representantes da categoria dos professores) e discutida em encontros não seja encaminhada para a assembleia legislativa para que ali possam ser feitas as discussões e modificações que se acharem necessárias. O que não dá é para ficar segurando numa gaveta atrasando assim a sua efetivação.
É preciso enfatizar esse ponto pois o discurso do governo em exercício é de que a proposta está sendo estudada. Me desculpe, mas isso é nos tratar por ingênuos. Por mais que compreendamos que a proposta não foi elaborada pela gestão atual. E portanto entendemos à cautela. Mas em 30 dias de governo não ter sequer um cronograma concreto que indique quanto tempo irá demorar esse estudo e a previsão de envio para a assembleia legislativa é inaceitável. 
Ora, nós não concordamos integralmente com a proposta do novo PCCR. Mas compreendemos que era melhor chegar a um denominador comum com o governo e fazer as propostas de melhorias na assembleia legislativa - onde o governo também terá a oportunidade de defender seu ponto de vista.
Fortalecer a luta pela aprovação de um novo Plano de Cargos, Carreiras e Remuneração (PCCR) dos Professores da Rede Pública Estadual do Tocantins
Valorizar a carreira do magistério sobretudo na educação básica é fundamental para vislumbrarmos a melhoria do ensino. Pois em que pese todo o avanço tecnológico a presença de uma professora ou professor na sala de aula é condição fundamental para um aprendizado significativo. No entanto, não são muitos aqueles que se dispõem a seguir essa carreira. 
Por um lado temos todo um discurso de criminalização do fazer docente sob a justificativa de que estes fazem doutrinação nas escolas a serviço de uma determinada ideologia. Por outro, temos a precarização das condições de trabalho, o excesso de afazeres burocráticos, assédio - tanto por parte dos chefes imediatos como de pais e estudantes, por fim, mas não menos importante a desvalorização salarial. 
Nesse contexto, não é de se admirar que nossa categoria seja uma das que têm os maiores índices de afastamento do trabalho por doenças relacionadas à saúde mental, ou melhor dizendo, a falta dela. Levando inclusive alguns colegas a atitudes mais drásticas como o suicidio.
Para nós não há alternativa senão resistir - nas escolas e nas ruas reivindicando a valorização da nossa carreira e melhores condições de trabalho. Resistir não por nós apenas. Mas pela construção de outra sociabilidade - em que a solidariedade se sobreponha ao egoísmo dos regimes neoliberais - uma sociedade em que o Estado não seja um instrumento para o enriquecimento ilícito dos seus governantes enquanto os governados sobrevivem na miséria.
Diante disso respondemos o nosso questionamento inicial da seguinte forma: não é possível vislumbrar um Estado justo sem a valorização dos seus professores. Pois se são eles que tem a missão de educar entre outros para o exercício da cidadania e para o trabalho. Como esperar que eles façam isso com excelência se não lhes dão condição para tanto?
Por outro lado, não podemos deixar de lembrar aqui no Darcy Ribeiro quando disse que o dito fracasso da educação brasileira é na verdade um projeto para manter as coisas tal como estão. Nesse sentido não é interessante para o governo, a não ser como retórica, lutar para melhorar a educação. Até fazem isso superficialmente, mas sem valorização de quem está na sala de aula nada muda. E isso é bom para quem está no poder, não é mesmo?
Pedro Ferreira Nunes - Mestre em Filosofia (UFT) e Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins.

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Resenha: O livro Filosofia através do cinema - uma década de ensino

A educação (seja ela de nível básico, técnico ou superior) tem como finalidade formar os indivíduos para o exercício da cidadania e para o trabalho. Nesse processo não é possível abrir mão dos conhecimentos historicamente constituídos, sobretudo o filosófico. No entanto, é preciso que os conceitos filosóficos sejam trabalhados na perspectiva da práxis. Nesse sentido, uma relação com a arte, sobretudo com o cinema e a literatura é uma estratégia importante. É nessa perspectiva que caminha o projeto de extensão Filosofia, Cinema e Literatura da Universidade de Gurupi (UNIRG). Do qual a obra em questão (Filosofia através do cinema - uma década de ensino) é fruto.

Organizada por Edna Maria da Cruz Pinho, Joel Moises Silva Pinho e José Carlos de Freitas (2020) e publicado pela editora Veloso (Gurupi). A obra apresenta uma coletânea de ensaios e artigos analisando do ponto de vista da filosofia (e das ditas ciências humanas) algumas obras cinematográficas exibidas e debatidas durante 10 anos de projeto. Ao todo são 16 textos que articulam filosofia e cinema. Só para citar alguns filmes destacamos: Estômago (Brasil, 2007), Machucca (Chile, 2004), População 436 (EUA, 2006), Okuribito (Japão, 2008). Quanto às referências filosóficas temos um desfile de pensadoras e pensadores que ao longo da história deram importante contribuição para compreensão da natureza humana e das relações sociais. Só para citar alguns: Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Durkheim, Nietzsche, Heidegger, Hannah Arendt, Freud, Foucault, Byung Chul Han entre outros.

No texto de abertura (Luz, Câmera… Filosofia através do cinema: uma década de ensino), o Professor Gilberto Correia da Silva faz um resgate histórico do projeto. Quando iniciou - num contexto de greve dos docentes - capitaneado pelo sindicato dos professores (APUGSSIND). Portanto, como uma atividade mobilizadora da comunidade acadêmica. E posteriormente a sua institucionalização como um curso de extensão ofertado pela universidade (UNIRG). Silva (2020), com documentos, apresenta cada edição realizada, os filmes exibidos, as discussões e os convidados que compuseram as mesas de discussão. Bem como o impacto na formação dos participantes e na comunidade em geral.

Ao longo do texto do Professor Gilberto Correia da Silva como também dos demais, a gente consegue perceber a potência do projeto. A relevância das discussões que se desenvolveram em torno da temática dos direitos humanos. E o quanto isso certamente contribuiu para a formação de uma consciência crítica dos participantes. É possível a partir da leitura de cada texto sentir a riqueza das mesas e da contribuição de cada debatedor. Riqueza essa que temos acesso através da publicação dessa obra celebrando 10 anos de projeto.

Outro aspecto que gostaria de destacar é o quanto os textos despertam em nós o desejo de assistir os filmes. Mesmo aqueles que por ventura tenhamos assistido. 

Um terceiro ponto é que os textos refletem o espírito do tempo em que foram escritos - o contexto pandêmico e o governo de Jair Messias Bolsonaro - em que houve um desmantelamento das políticas de direitos humanos e o desprezo a vida de grupos específicos como negros, indígenas, mulheres e LGBT…

Entre os textos que mais me provocaram reflexão destacaria IRONWEED: A sábia loucura narra a nossa modernidade (Eduardo Sugizaki e Marcos Eduardo Sugizaki). Além de bem escrito, os autores articulam muito bem o filme, derivado de um livro do escritor estadunidense William Kennedy, com o pensamento de filósofos como Nietzsche e Foucault. As diferenças e similaridades entre o livro e o filme também é abordado. De modo que percebemos um exercício estético por parte dos autores. Logo em seguida temos De o caminho para casa, de Zhang Ymou, para ser e tempo, de Martin Heidegger: um breve exercício de fenomenologia-hermenêutica sobre o significado da morte (Gabriel Henrique Dietrich). De forma bastante didática o autor nos apresenta os principais conceitos heideggeriano a partir do seu clássico Ser e Tempo em diálogo com o filme chines que trabalha a questão da finitude humana. O poder competente: vidas sujeitadas e empoderadas no filme Estômago (José Carlos Freitas). Merece destaque. Ainda que tenha me parecido que o autor estava mais preocupado em mostrar o seu conhecimento de diversos pensadores que trabalham o conceito de poder. Melhor seria se tivesse focado em apenas um, por exemplo, o Byung Chul Han. De modo que temos um texto mais extenso do que deveria. Já o problema do artigo Sobre escravidão: algumas matrizes filosóficas e religiosas que auxiliam na naturalziação da degradação humana (Paulo Henrique Costa Mattos), ainda que muito rico e bem escrito, me pareceu fugir do objetivo do livro (inclusive me pareceu que é um livro dentro do livro, extenso em demasia). Aliás, ele pouco articulou com uma obra cinematográfica. Se dedicou mais a apresentar uma breve história da filosofia a partir da temática da escravidão. De todo modo, é um artigo que me provocou importantes reflexões. Por fim, ainda destacaria o texto Filosofia da diferença: homossexualidade, homoerotismo e homofobia (Ruy Tadeu Costa Ribeiro) que a partir de filmes como Milk - a voz da igualdade e Orações para Bobby discute questões como representatividade e preconceito sofrido por essa comunidade. Sobretudo diante de uma conjuntura política de ataques aos direitos humanos e a normalização de preconceitos operado pela religião.

Enfim, tanto a obra como o projeto, a partir do qual ela é fruto. Mostra o potencial da relação entre filosofia e cinema no processo de ensino-aprendizagem. Por tanto que essa iniciativa possa continuar e inspirar mais ações nesse sentido que, certamente, contribuem para formação e fortalecimento de um pensamento crítico em território tocantinense.

Pedro Ferreira Nunes - Mestre em Filosofia (UFT) e Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins.

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Aischrí Pólis ou Não me representa!

Imagine que você foi eleito deputado federal e que na posse fez o seguinte juramento: "Prometo manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro e sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil". No entanto, surge uma proposta de emenda constitucional (PEC) que vai na contramão do seu juramento. Pelo contrário, ao invés de promover o bem geral, cria privilégios. Ao invés de fortalecer a soberania nacional, enfraquece-a. Agindo eticamente qual seria sua posição?

Eis aí um exemplo de exercício que gosto de desenvolver nas minhas aulas de filosofia. Por meio do qual busco que o estudante tenha uma compreensão mais aprofundada do problema que está sendo objeto de investigação. Para tanto, nada melhor do que colocá-lo para pensar a partir de uma situação real - onde ele consiga perceber a dimensão prática dos conceitos filosóficos estudados.

Faço uso desse recurso aqui para refletirmos sobre a aprovação na Câmara dos deputados da chamada PEC da Blindagem com o voto favorável de forma unânime da bancada tocantinense. A proposta aprovada daria ao legislativo federal, e extensivamente aos legislativos estaduais e municipais o poder de decidir se um parlamentar investigado poderia ou não ser julgado pela justiça. Ninguém definiu melhor a proposta aprovada do que o deputado federal Nicolas Ferreira (PL) - ao defender a proposta justificando uma suposta perseguição política por parte do Supremo Tribunal Federal (STF). No seu estilo irônico ele afirmou que queria ser blindado mesmo. E que a justiça quisesse processar algum parlamentar deveria ter o aval do legislativo. Será que parlamentos Brasil afora (congresso nacional, assembleias legislativas e câmaras de vereadores) teriam competência (e independência) para fazer tal avaliação?

Reflitamos sobre isso fazendo o seguinte exercício a partir de um filme brasileiro baseado em fatos reais - Vidro fumê (2024) que entre as histórias narradas está a da personagem Miriam (Mari Oliveira) uma jovem negra ativista cultural que sofre assédio sexual por um político corrupto e é chantageada e ameaçada para ficar em silêncio. Imaginemos uma situação dessa. A vítima decide denunciar mas como se trata de uma parlamentar para que o processo avance é necessário que os nobres pares do deputado autorize. No entanto, essa autorização é negada com a justificativa de armação ou perseguição. Imagine que essa vítima seja você ou alguém da sua família. Como você se sentiria?

Analisemos uma situação mais concreta. Atualmente o governador do Tocantins (Wanderlei Barbosa) está afastado do cargo por determinação judicial. Nesse mesmo processo nada menos do que 10 deputados são investigados. Imagine se a tal lei estivesse em vigor. Esses parlamentares poderiam ser blindados pelos seus pares para que não houvesse nenhum tipo de punição como perda de mandato e, quiçá, prisão.

Não precisa de mais argumento para compreendermos o absurdo que aqueles que votaram a favor da proposta fizeram. Eles mesmos tinham consciência desse absurdo ao aprovar o voto secreto. Um detalhe importante é que muitos dos que votaram na proposta defendem ou defendiam o voto impresso nas eleições. Alguém tem alguma dúvida de qual interesse estes parlamentares defendem?

Você que está lendo essas linhas deve está se questionando onde quero chegar já que a proposta foi arquivada pelo Senado Federal após ter sido rejeitada unanimemente na Comissão de Constituição e Justiça. E portanto não tem mais possibilidade de entrar em vigor. Esse posicionamento por parte dos senadores é certamente reflexo da reação da opinião pública que de forma contundente, inclusive com manifestações de rua, se posicionou contrário ao projeto votado na câmara dos deputados. Muitos entenderam, voltando ao nosso exercício inicial, que votar favoravelmente em tal proposta seria agir de forma não ética.

Vamos então ao nosso ponto. Ou seja, aonde quero chegar. Para tanto vou propor mais um exercício. Imagine. Em 2026 é ano eleitoral e os atuais deputados federais (em especial os tocantinenses que votaram por unanimidade), ou algum cabo eleitoral em seu nome, irá pedir o seu  voto para reeleição. Você votaria num candidato que se posicionou contrariamente durante o seu mandado aquilo para o qual foi eleito? Ou seja, “manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro e sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil". Isso nos leva a uma nova questão. A principal dessa nossa conversa: Você se sente representado por alguém que não age eticamente?

Se você for uma pessoa que age de forma contrária certamente a resposta seria não. Desse modo se em 2026, falando especificamente do contexto tocantinense, se algum município reeleger algum dos deputados atuais merecerá o diploma de aischrí pólis (αισχρή πόλη) - cidade feia ou  vergonhosa. Espero que nenhuma cidade tocantinense receba esse título. Estaremos vigilantes acerca disso.

Pedro Ferreira Nunes - Mestre em Filosofia (UFT) e Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins.

sábado, 20 de setembro de 2025

Resenha: Lagoa Feia, da escritora tocantinense Deise Raquel Cardoso

Quem nasceu no sertão nortense há quarenta primeira vez ou mais certamente teve a sua infância e início da adolescência marcada por estórias fantásticas que povoam a nossa imaginação. Fazendo com que tivéssemos com a natureza uma relação de encantamento. Muitos tiveram que deixar esse lugar em busca de melhores condições de vida nos centros urbanos. Ao retornar depois de anos esses lugares não são mais os mesmos. O avanço do modo de produção capitalista no campo modificou a paisagem. Expulsando povos e comunidades tradicionais. Muitos de nós tivemos o olhar de encantamento para a natureza destruído pela racionalidade tecnológica dos centros urbanos. O livro Lagoa feia, da escritora Deise Raquel Cardoso, nos ajuda a resgatar esse olhar.

Publicado em 2023 (editora Vecchio), o livro traz como protagonista a própria escritora que herda dos seus antepassados a missão de proteger um lugar sagrado que outrora pertenceu à sua família - a lagoa feia. E qual a melhor forma de proteção se não divulgar para o mundo a existência desse lugar e a partir daí sensibilizar as pessoas a protegê-lo. Óbvio que você não precisa ir para Dianópolis (TO), local onde está localizado a lagoa para fazer isso. Não faltam lugares ameaçados pelo avanço de um modo de produção predatório. Eu como um lajeadense de coração lembro nesse momento do rio Lajeado que ano após ano está secando. Eis aí, portanto, um dos aspectos que engrandece a obra. Assim como a homenagem que ela faz a personalidades que tiveram sua vida ceifada na luta em defesa do meio ambiente.

Durante a narrativa ficção e realidade vão se misturando. Chegando ao ponto que fica impossível classificar a obra. É um romance? É um livro de memórias? Não importa o que seja. O importante é a mensagem que a obra passa - certamente a mais contundente é a responsabilidade que todos nós devemos ter com os recursos naturais. Mas há outras também. O respeito aos anciões como fica evidente na sua relação com o Tio Joaquim. A resiliência diante de momentos difíceis quando deixa sua terra natal para se aventurar nos primórdios da capital do Tocantins - Palmas. Entre outros.

O professor que há em mim também não pôde deixar de lê-la e observar as possibilidades de trabalho com a obra em sala de aula. Quem trabalha com linguagens tem aí elementos com a escrita de si, as expressões regionalistas (devidamente explicadas pelas notas de rodapé), a cultura do antigo norte goiano (do sertão nortista) antes da criação do Estado do Tocantins. Quem trabalha com história também pode explorar o aspecto cultural e o início da capital, a cidade de Palmas. Em geografia tem as paisagens e a questão ambiental. Nossa relação com o meio ambiente e as diferentes perspectivas acerca da natureza pode ser explorado em Sociologia e Filosofia. Em arte os desenhos e a pintura. A questão do autoconhecimento e autocuidado, além da responsabilidade social pode ser trabalhada em projeto de vida. Enfim, as possibilidades são muitas. “Muitos sonhos sonhados, projetos selados, barracos armados, marcavam a busca por um novo horizonte, onde o sol nascia para todos…” Escreveu ela no seu diário ao chegar em Palmas.

Há que se ressaltar a edição de qualidade da editora Vecchio. Com destaques para as ilustrações a cargo da Jaque Coelho. Essas certamente são um atrativo, sobretudo para o público infanto-juvenil. A forma acessível da escrita da Deise Raquel é um ponto de destaque. É como se estivéssemos ouvindo alguém contar uma estória - dessas estórias que ouvíamos ao pé de uma lamparina na nossa infância.

Na estória deisinha recebe a missão de proteger a lagoa feia. E como falamos uma das formas que ela encontra para fazer essa proteção é escrevendo um livro. Desse modo podemos dizer que Deise faz da escrita uma arma de resistência. Como também de existência. Pois a partir da escrita ela não só cumpre a sua missão de defender a lagoa feia. Mas faz desta um sentido de vida.

Lagoa feia é um livro para pessoas sensíveis. Mas sobretudo para aquelas que perderam a sensibilidade. Que deixaram em algum canto aquele olhar que tínhamos na infância para as coisas que nos cercavam - os rios, os bichos, as serras. E nessa linha não posso deixar de lembrar das palavras do filósofo indgiena Ailton Krenak no seu ideias para adiar o fim do mundo - quando ele nos diz que quando despersonalizamos esses lugares contribuímos para sua destruição e transformação em mercadoria.

“Será que era mesmo verdade, que aquela era uma Lagoa encantada?... Será que era mesmo verdade, que aquela Lagoa esconderia um mistério envolvendo todo o mundo e o destino da humanidade?”

Questiona-se Deise. Quando perdemos a nossa capacidade de questionar? Voltando no Ailton Krenak, ele nos diz que uma das maneiras de adiar o fim do mundo é poder contar mais uma estória. E foi isso que fez Deise Raquel Cardoso. Por tanto não deixe de ler essa obra. Certamente lhe afetará de algum modo.

Pedro Ferreira Nunes - Mestre em Filosofia (UFT) e Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins.