“Tocantins: veia aberta num brejal
que se derrama pelo cerrado vasto
e reconfigura a estampa da paisagem...”.
Pedro Tierra
Lá pelos idos de 2009 ganhei um livro de poesia com poemas de um tal Pedro Tierra. Pelo nome pensei se tratar de um poeta espanhol ou de algum país latino-americano de língua espanhola. Mas qual foi a minha surpresa ao descobrir que aquele tal Pedro Tierra era do Tocantins – mais precisamente da cidade de Porto Nacional – “uma cidade com janelas olhando para o rio Tocantins”, escreveu em certa feita o poeta.
Nesse tempo eu morava em Goiânia e fiquei a me questionar por que nunca havia visto no Tocantins (sobretudo na escola) falarem de um poeta daquela envergadura. Hoje, novamente morando no Tocantins, percebo que Pedro Tierra tem tido algum reconhecimento – tendo recebido importantes homenagens como o título de Doutor Honores Causa da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Mas creio que esse reconhecimento ainda é bastante aquém do que ele merece por sua importante contribuição a cultura literária nacional.
Pedro Tierra é na verdade o pseudônimo de Hamilton Pereira da Silva (1948) – que escreveu os poemas que comporiam o seu primeiro livro na prisão (Poemas do Povo da Noite, 1977) durante a ditadura militar. Tierra fora preso por sua militância no movimento estudantil lutando contra a repressão do regime militar. Mas se o objetivo dos militares era silencia-lo o resultado foi outro – através da poesia, Tierra fez ecoar pelo mundo “o grito de liberdade preso na garganta” (Aos fuzilados da CSN, Garotos Podres) dos presos políticos nos porões da ditadura no Brasil – o seu primeiro livro foi publicado primeiro na Itália (1977) e depois na Espanha (1978). E no Brasil quando publicado em 1979 se tornou uma referência para os presos políticos e para os movimentos de luta pela redemocratização do país.
Os poemas do Pedro Tierra se assemelham a preces (talvez por influência da sua formação católica). O que contribuia para manter acesa a chama da esperança no coração daqueles que lutavam contra a ditadura militar: “Prossigo, ainda que a presença do inimigo, a vigiar meus sapatos molhados na rua sem trânsito, me devolva a impressão de ter regressado, aos primeiros dias de treva...”. (Campo de flores, 1974 – do livro Poema do Povo da Noite). Foi portanto na militância política, na luta contra a ditadura militar que Hamilton Pereira da Silva se tornou Pedro Tierra. E Pedro Tierra forjou a sua poesia – como o ferreiro forja o ferro transformando-o em instrumentos diversos. E dessa labuta vieram outras obras como “Água de rebelião” (1983), “Inventar o fogo” (1986) “A palavra contra o mundo” (2013) e “Porto submerso” (2005) que é a obra que enfocaremos aqui – e se trata daquele livro que disse lá no início – onde fui apresentado a poesia de um tal Pedro Tierra.
Em “O Porto Submerso” (Pedro Tierra que sempre teve uma militância política ativa no campo da esquerda e acabou se radicando em Brasília – onde inclusive por duas ocasiões foi Secretário de Cultura) retorna a suas origens para falar da sua terra natal – á velha Porto Nacional – que já não é a mesma da sua infância. “Piranhas devoram o baú de lembranças/ nos quartos dos fundos dos casarões.../ Algumas paredes ruíram/ sobre os sonhos acalentados na infância:/ não resistiram talvez ao assédio da umidade/ a essa flor que próspera nos pântanos/ forçando os precários alicerces de tudo/ ao abandono de tantos anos...”. Diz o poeta no poema que dá título ao livro.
Mas ao buscar no baú de lembranças a memória da sua infância ele não deixa de falar da nova Porto Nacional – onde o velho rio Tocantins, que antes via da janela de sua casa, já não é o mesmo – suas águas já não seguem livremente como antes da construção da Usina Hidrelétrica Luiz Eduardo Magalhães: “Ao primeiro olhar o rio assume as feições/ De lagoa. De útero. Misteriosa oficina de vida/ Melhor, um avesso de útero:/ vai devorando ilhas/ que se opõem à sua placenta corrosiva./ Dissolve areias e memórias... Tocantins: veia aberta num brejal/ que se derrama pelo cerrado vasto/ e reconfigura a estampa da paisagem... O rio teima em se manter-se rio corrente:/ uma veia de esmeralda líquida e retesa/ varando o ventre do lago,/ feito alma submersa/ e luminosa a lhe dar sentido/ Vencido, o rio se abranda em barros e silêncios...”. Diz o poeta no poema “Barragem”.
Do seu baú de lembranças da infância ele trás poemas como “Querosene” que é um belo retrato dos causos interioranos e do seu povo. “Nunca se soube/ se por fome/ sede/ ou pura danação./ Foi apanhado/ estendido sobre o ladrilho da taverna/ mamando querosene/ na torneira do tambor./ adquiriu desde então/ um tom esverdeado,/ guenzo/ e uns olhos iluminados/ como se tivesse tragado as nascentes da lua./ Os meninos da rua lhe atiravam fósforos/ para conferir se acendia,/ querosene. Eis aí um poema belo, simplesmente belo. Mas o que é o belo? Nos questiona Sócrates.
Não desviemos o rumo da prosa, deixemos as filosofadas para depois. Voltemos á poesia – não que poesia e filosofia estejam em campos opostos como acreditam uns. E Pedro Tierra mostra isso de forma magistral em vários poemas do seu “Porto submerso”, entre eles “trama”, onde reflete sobre a vida: “E se o corpo é uma canoa/ de madeira amarga/ e terna,/ a alma é um rio agudo/ com dedos de água/ e fuga,/ a marca dos meus roteiros./ dedos sábios de rendeira/ tecem os fios incontáveis/ a trama do meu destino...”. Em “Os bilros” o poeta também filósofa sobre a vida: “Na dança dura do dia/ entre os dedos da rendeira/ Os bilros trançam nos fios/ a renda da vida inteira... Nessa trama dos aflitos,/ nessa dança dos contrários/ a renda tece a rendeira/ na ponta escura dos bilros...”. Já em “Os impossíveis” o poeta reflete sobre a poesia: “Poesia é assim:/ Os impossíveis./ é quando prevalece/ a vontade da palavra...”.
Pedro Tierra também nos faz viajar pelo cerrado com suas riquezas e seus encantos em poemas como “Buriti”: “Em Palma Verde de buriti,/ tranço um balaio de versos/ para tentar uma última vez.../ recolher os milagres das chuvas...”. No poema “Concerto para jacumã e remo”: “Mergulho o remo/ e remo sem rumo/ sem pauta/ sem porto algum/ que me recolha ao fim da madrugada./ jacumã é lugar de partida./ e de chegada...”. No poema “Mirindiba”: “...Entre raizes/ (Mirindiba fruta humilde/ nutrindo peixe celestes...)...”. E no poema “Paus d’arcos”: “Paus d’arcos./ Agosto./ cerrados./ o pau d’arco/ desata os laços/ do tempo que se despede,/ mas permanece contido/ na cortina que protege o tronco/ contra os açoites da seca...”.
E como não poderia ser diferente Pedro Tierra não deixa de denunciar através dos seus versos o avanço da destruição do cerrado pelo agronegócio: “...o trabalho dos homens organiza o cerrado./ Organiza desertos transgênicos de soja./ desertos verdes de soja./ desertos secos de soja,/ desertos.” Lamenta o poeta no poema “Carvoeiros”. E também no poema “Carvão” onde diz: “... meus olhos cansados/ miram a tarde que morre/ e registram ruínas de árvores/ que exigem o silêncio da alma/ como catedrais tombadas./ Ardem os ossos das árvores:/ o Verde derrotado,/ o fulgor da labareda,/ a palha, a cinza, antigas certezas/ pulverizadas,/ a potassa exposta à viração./ a busca feroz do carvão”. Mas o poeta não perde a esperança – sabe que o cerrado é resistência, sabe que o cerrado é vida: “- O cerrado sabe seus atalhos.../ a promessa de vida que no ovo lateja,/ o trabalho de vida que no ovo lateja,/ o disparo de vida interrompida no ovo/ adia a vida que pulsa nos seus guardados:/ a vida sabe,/ a vida se esquiva para prosseguir...”.
Essa pequena amostra creio dar conta de sintetizar todos os poemas do livro apresentado, por tanto fiquemos por aqui. Não sem antes ressaltar que na minha opinião como leitor – se esse livro (O Porto submerso) não é o maior clássico da literatura tocantinense, está entre eles sem dúvida. De modo que nós tocantinenses não podemos deixar de reconhecer e prestar as devidas reverências a esse poeta e escritor – e a maior reverência que podemos fazer a um poeta e escritor é ler e discutir sua obra – e aqui não estou falando apenas do livro “O Porto submerso”.
Pedro Ferreira Nunes – É Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins. Também se arrisca a escrever poemas entre outras coisas.
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Referências
Tierra, Pedro. O Porto submerso. Brasília: Edição do autor, 2005.
Tierra, Pedro. Quem sou eu. Disponível em: http://pedrotierracultura.blogspot.com/?m=1. Acesso em: 30 mar. 2020.
Revista Prosa Verso e Arte. Pedro Tierra – poemas. Disponível em: https://www.revistaprosaversoearte.com/pedro-tierra-poemas/. Acesso em: 30 mar. 2020.
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