Ideias para adiar o fim do mundo (2019) é uma das obras mais interessantes desse indígena do povo Krenak (localizado na região do Vale do Rio Doce, Minas Gerais) que há várias décadas levanta sua voz em defesa dos povos originários. Filósofo, escritor, ativista do meio ambiente. Ailton Krenak teve sua trajetória coroada recentemente ao se tornar o primeiro indígena a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL). É de sua lavra também títulos como: Futuro Ancestral (2022), A vida não é útil (2020), O lugar onde a terra descansa (2000).
Como um bom filósofo, o ponto de partida de Krenak é o questionamento. E o questionamento que desencadeia a sua reflexão sobre a possibilidade de adiarmos o fim do mundo é acerca do conceito de humanidade.
“Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente alienados do mínimo exercício de ser? A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos”.
O trecho acima mostra, digamos, o método do Krenak, alicerçado na tradição oral dos povos indígenas. Temos ao longo das páginas de ideias para adiar o fim do mundo uma conversa, um diálogo. De modo que o nosso filósofo dialoga com a tradição filosófica ocidental mas mantendo a sua identidade. Sua escrita é de fácil compreensão, não fugindo da polêmica.
No trecho acima chamaria sobretudo atenção para esse processo de desenraizamento no qual somos submetidos. Sobretudo os povos das águas e das florestas que são expulsos dos seus territórios para dar lugar à monocultura. O filósofo faz uma analogia bem interessante do conceito de humanidade com um liquidificador. Ou seja, para você ser considerado humano precisa abrir mão das suas raízes e se dissolver na massa. Os povos indígenas e africanos sabem muito bem disso, pois sentiram na pele durante o processo de formação da nação brasileira.
Krenak conta que o título da obra surgiu como uma provocação. Ele fora convidado para uma palestra na Universidade de Brasília (UNB) e ao ser questionado qual seria o título da sua exposição disse: Ideias para adiar o fim do mundo. Desse modo, a origem dessa obra é um conjunto de várias palestras que ele deu tanto no Brasil como em outros países.
“Estar com aquela turma me fez refletir sobre o mito da sustentabilidade, inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza. Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso — enquanto seu lobo não vem —, fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza”.
Nesse outro trecho de ideias para adiar o fim do mundo, Krenak defende sua concepção da natureza - a ideia de um organismo do qual todos nós fazemos parte. Opondo-se portanto à visão da natureza como uma máquina presente no pensamento de filósofos como René Descartes.
Um ponto interessante acerca deste livro é a visão do ser humano como um ser parasitário. Uma discussão que vai ganhar evidência com a pandemia de COVID-19.
“O que aprendi ao longo dessas décadas é que todos precisam despertar, porque, se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda”.
Durante a pandemia de COVID-19 até se cogitou a possibilidade de uma mudança de paradigma no sentido de uma sociedade pautada na solidariedade e na cooperação. Mas não é isso que estamos vendo. Certamente o Ailton Krenak e outros pensadores que fazem esse alerta são classificados de catastrofistas. Mas a realidade mostra cada vez mais quem está com a razão. Ainda que essa palavra razão seja bastante ligada ao conceito de humanidade.
Mas enfim. Não é nosso objetivo aqui fazer uma análise aprofundada da obra em questão. Mas apenas apresentá-la fazendo algumas pontuações. Ideias para adiar o fim do mundo é na minha compreensão um livro clássico de filosofia. Mas não se trata de uma tentativa de imitar pensadores europeus. Certamente Krenak não despreza a filosofia ocidental de matriz europeia. Mas não se limita a ela. Buscando a fundamentação do seu pensamento na sua ancestralidade.
“Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista.”
Isso me fez lembrar de um documentário (Tocantins - Rio Afogado) tocantinense do Hélio Brito que mostra o impacto sociocultural da construção de Usinas Hidrelétricas ao longo do leito do rio. Com a construção da Usina Hidrelétrica Luiz Eduardo Magalhães o rio Tocantins para muitos já não é mais o rio Tocantins e sim o lago de Palmas - onde o interesse comercial se sobrepõem a vida.
Krenak nos questiona qual o mundo estamos deixando para o futuro e qual o que gostaríamos de receber. Será se nossas ações são coerentes com o que dizemos? Para o nosso filósofo não é possível pensar em adiar o fim do mundo enquanto nos colocarmos como algo fora da natureza, como se não fizéssemos parte dela.
Enfim, já era para ter encerrado lá atrás. Mas me empolguei um pouco. Concluo portanto convidando-os a ler ideias para adiar o fim do mundo. No meu caso, além de lê-lo, nos últimos anos, tornei-o um dos livros que faz parte da bibliografia das minhas aulas de Filosofia. Por isso, super recomendo.
Por Pedro Ferreira Nunes - Mestre em Filosofia pela UFT e Professor da Educação Básica na Rede Estadual de Ensino do Tocantins.