sábado, 30 de novembro de 2024

Vladimir Safatle: Alfabeto das Colisões

Que é isso, meu caro Safatle! Essa foi a frase que me veio à cabeça lendo o “alfabeto das colisões", do Vladimir Safatle. Numa linguagem direta, o filósofo traz um olhar incômodo sobre o cotidiano e, a nós mesmos, que parecemos, em que pese o discurso contrário, termos nos acomodado com as coisas tal como são. Ao longo da leitura sua reflexão vai despertando em nós diferentes emoções que vão do riso ao choro. Isso mesmo, acredito que  é impossível não chorar diante do texto que fecha o livro (como termina o alfabeto).

Safatle é um dos intelectuais brasileiros mais ativos na última década. Com uma produção vasta sobretudo na esfera acadêmica que vai da política à estética. Mas que não foge do debate público por meio de artigos em jornais, revistas, entre outros. Algumas das suas obras publicadas são: Dar corpo ao impossível: O sentido da dialética a partir de Theodor Adorno (2019), Só mais um esforço… (2017), O circuito dos afetos: Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo (2015), Cinismo e falência da crítica (2008).

Em alfabeto das colisões, na minha análise, o objeto do filósofo é a linguagem. Através de textos escritos no estilo de crônicas, dialogando com o conto e a poesia, ele nos mostra como a nossa linguagem vai sendo moldada não só para que nos expressemos de determinada forma, mas também que nos comportemos de determinada forma. Cada texto é representado por uma letra do alfabeto, mas que não segue a ordem estabelecida de A a Z. São 24 ao todo que perpassam por diferentes assuntos: filosofia, identidade, amor, sexo, música, cinema, arquitetura entre outros. A publicação é de 2024, e tem como responsável a ubu - que preparou uma edição de extrema qualidade. Com destaque para as imagens que estão no contexto de reflexão do filósofo.

Numa espécie de subtítulo, Vladimir Safatle define seu alfabeto das colisões de “filosofia prática em modo crônico”. Para mim, é exatamente isso. Reflexões filosóficas no estilo de crônicas. Com essa estratégia o filósofo entrega uma obra para o público em geral. Que não terá dificuldade de compreender sua escrita durante a leitura.

Eu particularmente aprecio bastante este tipo de escrita. E acredito, partindo da minha experiência, que quando nos afastamos da estrutura acadêmica não tornamos o texto menos filosófico. Pelo contrário. Afinal de contas, os clássicos da filosofia não são produtos de mestrados e doutorados.

Um dos trechos que mais me afetaram durante a leitura é do texto intitulado de mercadoria, onde encontramos o seguinte trecho: “nós falamos a linguagem deles, por isso, mesmo quando vencemos, são eles que vencem”. E traz como exemplo o discurso acerca do empreendedorismo como forma de emancipação.

“As quebras são nosso destino porque somos seres em relação. Não há como evitar quebras porque procuramos colocar em relação corpos com tempos distintos”.

O trecho acima é do texto que abre o alfabeto com a letra Q (quebras). Que trás uma crítica sobre como os manuais de ética apontam para um horizonte impossível, ou seja, de relações perfeitas. Contra essa perspectiva Safatle nos lembra que é impossível não sair de uma relação quebrado. Isso me lembrou de um trecho de uma canção da Legião Urbana: “agimos certo sem querer, foi só o tempo que errou…”.

Na sequência temos a letra F (filosofia), onde o filósofo questiona a origem da palavra filosofia, que segundo a tradição advém da junção de duas palavras gregas: philo (amor ou amizade) mais sophia (sabedoria). Tendo assim como significado amor ou amizade a sabedoria ou, ao saber. Para Safatle: “o que a fez aparecer foi a raiva. Uma raiva da doxa, raiva do senso comum, da maneira como ordinariamente falamos e organizamos nossa experiência.”

Não é nosso objetivo aqui abordar ainda que de forma breve todos os textos que compõem a obra. Mas chamar atenção para a escrita do filósofo bem dos objetos da sua crítica. Avancemos por tanto para a letra X onde encontramos o texto (incógnita):

“Um dos dispositivos fundamentais de definição do horizonte da época à qual pertencemos está vinculado ao advento de um tipo muito específico de fala. Para nós, talvez ela seja a mais natural de todas as falas. No entanto, foi necessária uma modificação estrutural em nossas formas de vida para que tal fala emergisse e, principalmente, para que ela ganhasse tamanha importância. Trata-se do que entendemos por “falar de si”.

A crítica de Safatle é acerca da ideia de que falar de si seriam formas de expressão de emancipação política. Desse modo, ele propõe o sentido contrário. Ou seja, a supressão do eu como possibilidade para uma transformação política.

O texto que fecha o seu alfabeto traz a letra Z (como terminar o alfabeto). Ou seja, curiosamente fechando com a letra que tradicionalmente fecha o alfabeto. Nesse texto encontramos uma espécie de conto sobre um gato - que não é propriamente sobre o gato. Mas justamente acerca daquilo que é abordado no primeiro texto. Desse modo é como se o filósofo emendasse uma ponta na outra. Criando uma espécie de espiral. 

“seu negócio era tecer linhas, criar um território que ia da perna da criança  à cama do casal, da cama à porta, da porta à cadeira da sala, da cadeira da sala ao sol que o esperava no parapeito da janela, assim em movimento contínuo que teciam também os dias em uma grande malha uniforme. Em silêncio, sem ninguém perceber, ele tecia uma malha densa de fios que envolviam todas as pessoas da casa, e seu trabalho ele fazia com afeto e rigor”.

A resposta acerca da continuidade dessa história e o que ela simboliza não será dada aqui. Que isso sirva de estímulo para que adquiram e leiam a obra.

Para concluir, quem compreende minimamente a lógica de funcionamento da sociedade que vivemos não pode de modo algum se acomodar pois do contrário estará sendo condescendente com a ordem estabelecida. Mas que condições temos para subverter essa ordem? O primeiro passo é se incomodar. E esse papel o Vladimir Safatle faz muito bem. O alfabeto das coalizões não é água com açúcar, mas uma dose de conhaque que desce queimando. Mais do que necessário para os tempos que vivemos.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

O filme diário de um jornalista bêbado: Imprensa e poder

Uma entrevista recente do Fernando Haddad (Ministro da Fazenda do Governo Lula) em que ele fala sobre o sacrifício que todos devem fazer no ajuste fiscal, incluindo a imprensa que é fartamente beneficiada com isenções fiscais. Me fez lembrar do filme diário de um jornalista bêbado (2011), mais um exemplo que coloca em xeque o mito da neutralidade da imprensa.

Na trama, Paul, um jornalista estadunidense é contratado para escrever num periódico, ameaçado de ser fechado, em Porto Rico. Imediatamente um empresário tenta recrutá-lo para que escreva favoravelmente a seus projetos no jornal. Convencendo a opinião pública e pressionando o governo a fazer concessões para que os projetos saiam do papel. Em troca disso, o jornalista terá abertas as portas da alta sociedade porto-riquenha. E sair da situação de miséria que se encontra.

O filme dirigido por Bruce Robinson e estrelado por Johnny Depp é uma adaptação do romance Rum: Diário de um jornalista bêbado (1998), do escritor e jornalista estadunidense Hunter Thompson. E trás uma dose de memórias já que quando Thompson escreveu a obra contava com 22 anos e morava em San Juan (Porto Rico).

No decorrer do filme as concepções éticas do jovem jornalista vão sendo testadas.  Hal Sanderson (Aaron Eckhart) surge como o diabo surgiu para Jesus Cristo no deserto prometendo-lhe tudo. Mas nesse caso, Paul (Johnny Depp) está longe de ser um santo, é um amante de bebidas alcoólicas e mulheres. E acaba se apaixonando justamente pela mulher de Hal Sanderson - Chenault (Amber Heard). Ou seja, parece o perfil de alguém fácil de ser comprado. Mas há um ponto que faz de Paul alguém difícil de ser dobrado. Ele não está ali por necessidade. E quando você não é refém de uma situação ou de um lugar é mais fácil de você se libertar.

A forma com que Paul se refere ao Presidente Estadunidense (Nixon), mostra que a sua ida para Porto Rico está ligado a um descontentamento com a política do republicano a frente da casa branca:

- Imagina passar a vida toda mentindo. Meu Deus, nunca foi pior! A única coisa pior é sabermos que um dia surgirá um canalha sujo que o fará parecer o liberal.

No entanto, ele perceberá que quem dá as cartas em Porto Rico não são indivíduos diferentes daqueles que ele abomina. Durante um jantar na casa de Hal, ele percebe isso durante um diálogo com um dos empresários e sua esposa que faz parte dos esquemas de corrupção:

- Paul tem um ponto de vista meio liberal. Diz a senhora.

- Liberal não existe. Um liberal é um comunista universitário com ideias de negro. Responde o empresário.

Haddad durante o seu discurso apelando para a sensibilidade da imprensa parece se esquecer que estas são empresas que visam o lucro e não o bem comum. Esperar que o discurso da grande mídia seja contrário ao interesse da classe dominante parece ser  um tanto ingênuo. Há certamente jornalistas tal como Paul com suas convicções éticas, contrário a colocar na conta do povo trabalhador os cortes dos ajustes fiscais. Mas a partir do momento que estes profissionais fazem parte de uma empresa não terão liberdade para dizer o que pensam. E caso tenham, as retaliações certamente virão tal como retratado no diário do jornalista bêbado.

Além das reflexões que suscitam, o filme é divertido, nos brindando com situações hilárias. Ninguém melhor do que Johnny Depp para incorporar esse jornalista bêbado num país caribenho. Alguma semelhança com o seu famoso Jack Sparrow? Talvez a capacidade de se colocar em encrenca e improvisar. Mas aqui o temos numa atuação mais contida. Mas não menos brilhante. 

Temos uma boa atuação do elenco no geral. A fotografia e a trilha sonora também não deixam a desejar. De modo que o fato de não ter feito sucesso comercial não diminui o seu valor. Talvez esse fracasso, além das questões pessoais envolvendo o relacionamento de Johnny e Amber na vida real, seja a mensagem do filme sobre os bastidores da relação entre imprensa e poder - uma relação que alguém como Fernando Haddad certamente conhece bem. E portanto não deveria esperar uma postura contrária. Mas vindo de alguém que acha que é possível conciliar os interesses do mercado com as pautas sociais e ambientais não é muito surpreendente.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

O Sistema de Gerenciamento da Educação e a saúde mental do Professor

Em 2024 os servidores da educação da Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins, em especial os professores, tiveram acesso a uma nova versão do Sistema de Gerenciamento da Educação (SGE) - ferramenta que concentra todos os dados e informações acerca do fluxo escolar como matrículas, frequência e os índices de aprovação e reprovação. Mas também os planos de cursos, de aula, competências, habilidades e objetos de conhecimento trabalhados pelos professores em sala de aula. Ou seja, uma ferramenta importante para quem gere a educação no Tocantins. Pois é a partir dos dados fornecidos pelos profissionais que estão em sala de aula que se pode ter um diagnóstico da realidade da educação pública do Tocantins e a partir daí planejar ações de enfrentamento aos problemas detectados, como por exemplo, em relação a evasão escolar e o índice de aprendizagem.

O principal responsável por alimentar o sistema é o professor que está na regência da sala de aula. Devendo portanto dedicar parte do seu tempo para esse fim. A questão é que a dinâmica escolar nem sempre possibilita que isso seja feito a contento. Obrigando, não raramente, o professor de fazer isso no seu tempo que deveria ser de descanso. Algo que facilitaria é se tivéssemos uma ferramenta que ajudasse - o que não é o caso da nova versão - que parece ter sido feita estrategicamente para complicar a vida de quem está na sala de aula. A versão anterior de fato já estava ultrapassada. Porém, imaginava-se que a mudança seria para melhor. Não foi o que ocorreu, infelizmente. Como consequência temos uma ferramenta que ao invés de otimizar o trabalho docente tem o tornado mais penoso. Ainda mais num contexto de deficiência do serviço de internet nas escolas.

Independente disso, como também do fato dos professores não terem passado por formação. Pela instabilidade do sistema e as suas constantes atualizações. Há prazos a serem cumpridos. E quando não são, a cobrança vem de forma enfática. Inclusive com ameaça de notificação entre outros.

Marcuse (1973) é um crítico do desenvolvimento tecnológico porque observa que esse desenvolvimento ao invés de contribuir para libertação dos indivíduos acaba tendo um efeito contrário. E é isso que observamos no caso da nova versão do sistema de gerenciamento escolar (SGE). Uma ferramenta que deveria contribuir com o nosso trabalho docente acaba se tornando algo nocivo que afeta a saúde mental.

O trabalho burocrático é certamente uma das partes mais estressantes do fazer docente. E acaba afetando a sala de aula. Pois enquanto o professor está perdendo tempo preenchendo coisas burocráticas está deixando de lado o estudo e o planejamento de atividades que de fato iria impactar na qualidade das aulas. Quase sempre é um trabalho repetitivo, preenchendo coisas que não fará nenhuma diferença no processo de ensino-aprendizagem. 

Desde o seu lançamento no início do ano letivo, a ferramenta já passou por alguns ajustes. E o que se ouve é que estes ajustes continuarão. O que evidencia a má escolha realizada por quem adquiriu o produto. Enquanto isso, quem está na ponta está pagando a conta. Essa questão me fez lembrar de um pensamento há alguns anos ao ouvir uma colega reclamar da educação, sobretudo referente às exigências burocráticas.

- Se a burocracia mata a educação. Matemos a burocracia então.

Hoje acrescentaria. Ou matamos a burocracia ou ela nos matará. O índice de brasileiros com sentimentos negativos referente ao trabalho é enorme, como aponta pesquisa divulgada recentemente do State of the Global Workplace 2024. Que isso evolua para um adoecimento mental é mais do que óbvio. Também não faltam dados que mostram essa realidade, como, por exemplo, o divulgado pelo INSS, de 2023, que aponta um crescimento de quase 40% no afastamento de trabalhadores decorrentes de problemas como ansiedade e depressão. Os levantamentos também apontam que esse é um dos principais problemas que tem levado ao afastamento dos professores da sala de aula.

Engana-se quem pensa que o adoecimento mental dos professores está ligado apenas a sala de aula. A relação entre professor e aluno certamente não é fácil. Sobretudo num contexto em que a educação não é mais vista como um instrumento de mudança - tanto pessoal como social. E tanto a família como a sociedade passam por uma crise de valores.  Mas, mais desgastante do que a sala de aula é certamente as demandas burocráticas que são cobradas do professor. E o pior, é que se observa, que essas exigências não tem como fim melhorar o processo de ensino-aprendizagem, mas justificar a existência de determinadas estruturas burocráticas.

Dito isso, infelizmente não vislumbramos uma mudança dessa realidade. Sobretudo porque ouvir quem está no chão da escola parece não estar no radar de quem pensa a educação no Tocantins. Além disso, quem está no chão da escola não está muito disposto a fazer um enfrentamento para que seja ouvido.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Poema: Doce de buriti


 Para Maria Lucia, em memória 

Das delícias dessa terra,
existe uma especial.
Seu sabor é indescritível, 
coisa fenomenal.

Se feito por Maria Lúcia, 
melhora ainda mais.
Ela sabe o ponto certo,
ela sabe como faz.

O fruto tem que ser bom,
tem que ser da estação. 
Se não for do tempo certo,
não vingará não. 

De preferência que seja,
da chácara do Vô Chó. 
Feito no fogão a lenha,
não há coisa melhor. 

Depois de qualquer refeição, 
sempre cai bem.
É a melhor sobremesa,
não tem para ninguém. 

Oh doce de buriti,
tu és especial.
Dás delícias dessa terra,
não há nada igual.

Pedro Ferreira Nunes. Casa da Maria Lúcia. Lajeado-TO.  Inverno de 2019.

domingo, 10 de novembro de 2024

A música do Aureny I

O filósofo alemão Friedrich Nietzche diz que sem música a vida seria um erro. E seguindo esse raciocínio disse: “e aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam ouvir a música”. Essa frase me faz imaginar o quanto não é triste a vida daqueles que não podem ouvir a música. Corroborando com a visão do autor, de entre outros, “ O crepúsculo dos ídolos”, não consigo imaginar a minha vida sem música.

Por algum tempo, sobretudo no período da adolescência, o que me importava numa canção era a letra e o ritmo. Leitor de poesia desde a infância era natural que eu buscasse aqueles artistas que tinham uma força poética maior nas suas composições. Com o tempo fui me interessando mais pela música - identificar uma linha de baixo, o groove da bateria, um solo de guitarra. E até outros instrumentos como teclado e metais. Foi a partir daí que compreendi a grandeza de um The Beatles, por exemplo. Ou um Pink Floyd. O que não me fez deixar de apreciar uma letra poética. Ou ainda, canções pobres musicalmente mas subversivas.

A música está presente no meu cotidiano desde quando eu sequer tinha consciência disso. E com o tempo percebi que elas se tornaram o elo de ligação com um momento da minha vida. Há determinadas canções que quando ouço me remete há uma época passada, há um determinado lugar. A partir daí comecei a pensar que cada lugar tem uma música. Assim, quando ouvimos essa música somos levados a esse lugar, mesmo que ele já não exista. 

No entanto, nem todos vivem o lugar da mesma forma. De modo que essa música sempre depende da ótica de cada um. Ou seja, a música que me remete a Miracema da minha infância não é a mesma que remete a Miracema da infância do meu irmão Paulo. A música que marcou o meu período no colegial não é a mesma do meu amigo Joe. E daí por diante. Ou seja, a música do lugar está relacionada às nossas vivências pessoais.

Pensando nisso fiquei imaginando qual será a música do Aureny I - qual canção, ou canções, irá me fazer recordar desses dias quando eu já não estiver por aqui? Uma coisa é certo será um blues rock, pois nunca ouvi tanto esse estilo quanto tenho ouvido ultimamente. Em especial Saco de Ratos, Bebados Habilidosos e Celso Blues Boy.

Não sei porque, o Aureny me remete a uma zona boêmia de uma cidade grande como São Paulo - um lugar um tanto marginalizado, mas apreciado por amantes da noite dispostos a se aventurar por becos escuros atrás de álcool e sexo. Justamente aquilo que é retratado nas canções dos artistas citados.

“Na casa da luz vermelha
Só tem dor e solidão
Vejo tantas almas tristes
E mesmo assim estão sorrindo pra mim.
Cartão esquecido
Que a sorte abandonou
Quem chega aqui está perdido
Sem abrigo e sem amor
Mas nem conseguem entender.
Que nessa beira de estrada
É um jeito triste de viver
Na sala cheia de fumaça, ninguém vê
Que estou chorando por você
Chorando por você
Por você…”

Não me entendam mal, não estou dizendo que o Aureny I é um cabaré. Pelo menos, não no sentido que as pessoas geralmente imaginam, como um lugar sem regras. Mas eu não diria que o retrato que o Celso Blues Boy apresenta na sua canção (na casa da luz vermelha) seja muito distante do que encontramos nas ruas do Aureny I: almas tristes que apesar dos pesares sorriem para mim.

Talvez eu mesmo seja uma alma triste que nunca nega um sorriso para quem quer que seja. O artista tem sua razão em dizer que esse é um jeito triste de viver. Mas eu diria que tem lá sua beleza. E daqui há algum tempo isso ficará mais nítido. Ou não, né. Vai saber. Por enquanto essa canção é para mim a música do Aureny I. E para você? Qual é a música do lugar onde você vive?

Pedro Ferreira Nunes - é apenas um rapaz latino-americano, que gosta de ler, escrever, correr e ouvir rock n roll.

terça-feira, 5 de novembro de 2024

Resenha: o homem unidimensional, Herbert Marcuse

Quando você ler um livro que foi escrito há alguns anos e tem a impressão de que ele foi escrito hoje, que dizer que você está diante de um clássico. Pelo menos, é uma ideia que eu corroboro, e que me veio à cabeça quando estava lendo “o homem unidimensional”, do filósofo alemão Herbert Marcuse. A minha impressão ao ler a obra completa é que o problema ao qual o filósofo se dedica é: numa sociedade administrada por uma racionalidade tecnológica, em que os indivíduos são levados a abrir mão da sua liberdade em troca de conforto, é possível vislumbrar mudanças qualitativas?

Antes de adentrarmos a obra, conheçamos o nosso filósofo. Herbert Marcuse nasceu em Berlim (Alemanha), no ano de 1898. Sua formação se deu nas Universidades de Berlim e Freiburg. Lecionou nas Universidades de Columbia, Harvard e Brandeis. Integrou a famosa escola de Frankfurt tendo tido uma enorme contribuição na resistência ao regime nazista e na popularização da teoria crítica. Tornando-se uma referência para a chamada nova esquerda. Além da obra em análise, ele publicou: Eros e civilização (1957), Cultura e sociedade (1970), A dimensão estética (1977) entre outros.

“O homem unidimensional: a ideologia da sociedade industrial” é de 1964, ou seja, em 2024 completa 50 anos da sua publicação. E trás uma profunda análise das sociedades desenvolvidas industrialmente e a importância da teoria crítica da sociedade como uma trincheira de resistência a um projeto totalitário caracterizado por novas formas de controle.

A obra é organizada por seções composta por capítulos. Segundo a seguinte lógica: na primeira seção o objeto é a sociedade. Na segunda é o pensamento unidimensional. A terceira é acerca de possíveis alternativas. A partir dessa sequência podemos perceber a linha de raciocínio do filósofo. Ou seja, primeiro ele faz um diagnóstico da sociedade contemporânea, mais especificamente as mais desenvolvidas industrialmente como os Estados Unidos da América (EUA). No segundo momento ele analisa como o pensamento é moldado fazendo com que os indivíduos se comportem de determinada maneira. E no terceiro momento ele aponta para possíveis alternativas, que na sua visão, passam pela defesa da teoria crítica como um contraponto ao projeto dominante.

Vale a pena ressaltar o texto introdutório da 1ª edição escrita por Marcuse intitulada de “a paralisia da crítica: sociedade sem oposição.” Que já dá o tom do que iremos encontrar no decorrer da obra. Ou seja, um diagnóstico de uma sociedade autoritária que impõe o seu projeto de dominação não mais pelo uso da força mas pela introjeção de falsas necessidades. Com isso o nosso filósofo ressalta que nessa conjuntura a liberdade é transformada num poderoso instrumento de dominação. Diante disso é importante lembrar de Karl Marx quando ele nos diz que não há liberdade verdadeiramente quando não podemos escolher entre duas alternativas concretas.

“Nós vivemos e morremos racionalmente e produtivamente. Nós sabemos que a destruição é o preço do progresso, assim como a morte é o preço da vida, que a renúncia e o esforço são pré-requisitos para gratificação e o prazer, que os negócios têm que continuar, e que as alternativas são utópicas. Essa ideologia pertence ao aparato social estabelecido; ela é requisito para seu funcionamento contínuo e faz parte de sua racionalidade”.

O trecho acima nos dá uma ideia da escrita do Marcuse. Ou seja, um texto acessível. Óbvio que temos consciência de que para quem não é da filosofia haverá uma certa dificuldade em relação a compreensão de determinados conceitos. Mas creio que isso não é limitador para que o público no geral possa ler e compreender a obra. Sobretudo a caracterização da sociedade contemporânea e como sua lógica de funcionamento forma indivíduos submissos.

Nesse contexto é possível vislumbrar alternativas? Para um materialista histórico dialético tal como Marcuse sempre há alternativas. E na sua concepção a alternativa passa pela restauração do pensamento crítico. Não num sentido moral, como percebemos muitas vezes, sobretudo na atualidade. Mas se opondo negativamente a uma consciência feliz positiva.

Enfim, não é nosso objetivo fazer uma análise profunda dessa obra aqui. Mas apenas resenha-lo brevemente, salientando a sua importância e relevância. E a partir daí recomendar a sua leitura. Por tanto encerramos por aqui com um verso do Maiakovski que acredito representar o espírito com o qual Marcuse encerra o livro: “é preciso arrancar alegria ao futuro”.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Diálogos em sala de aula

- Qual o sentido da gente estudar tanto para depois virar professor e ganhar um salário desses?

Esse questionamento ouvi numa aula de filosofia esses dias por parte de um estudante. A minha resposta imediata é que para mim fazia muito sentido. Pois no contexto em que vivemos o salário que eu ganho me dá uma condição de vida superior a maioria dos brasileiros. Sem falar que a medida que eu continuasse me qualificando poderia melhorar o meu ganho. 

- De onde eu venho. O lugar que estou hoje me deixa com muito orgulho. Sem falar que eu gosto do que faço. Acordo todos os dias e venho dar aula com prazer.

Compreendi a provocação do estudante como um movimento que existe de desqualificação do fazer docente na educação básica. Um movimento que parte, muitas vezes, dos próprios professores que desencorajam os estudantes a fazer uma licenciatura. Tanto que diferentes levantamentos apontam que é uma minoria aqueles jovens que se dispõem ser professor. Entre aqueles que entram na universidade para cursar uma licenciatura o indice de evasão é alarmante. E aqueles que desistem quando conhecem a realidade de uma sala de aula não são poucos.

Não vou aqui romantizar a realidade. De fato não é um trabalho fácil. Sobretudo num contexto em que a educação parece ter se tornado algo supérfluo. As condições de trabalho nem sempre são as melhores. E os vencimentos estão longe de ser aquilo que merecemos pelo trabalho que fazemos. 

Mesmo assim, com o salário que ganhamos temos uma situação privilegiada em relação a maioria da classe trabalhadora. E não digo isso para que nos conformemos. Mas para que tenhamos consciência de que mudar as condições atuais do nosso fazer profissional, bem como a sua valorização, passa por essa compreensão. E a partir daí buscarmos fortalecer a profissão e não aceitar a sua desqualificação. 

Eu gostei da provocação do estudante. E fiz questão de dizer isso. Falei que quanto mais houvesse questionamentos por parte deles mais dinâmicas seriam as aulas. Óbvio, que esses questionamentos deveriam ser no contexto do que estávamos discutindo. Foi então que na mesma linha, outro estudante questionou qual era o sentido dele ter que ir todo dia para a escola pois já estava cansado daquela rotina.

A minha resposta foi: - o sentido quem tem que dá é você. A resposta quem tem que dá é você. Para deixar claro que não se tratava de uma mau resposta. Expliquei o motivo.

- Eu posso fazer todo um discurso lindo aqui sobre a importância do estudo. Mas vai ser o que eu penso. Vai ser o meu sentido em relação a educação a partir da minha experiência. Que como já ficou evidente na resposta anterior é inegável. Eu posso até ti convencer. Mas no final das contas vai ser o que eu penso. O que estou querendo dizer é que a vida é sua meu caro. E quem tem que encontrar sentido pra ela é você. O meu papel aqui será problematizar. Quem sabe ajudá-los a encontrar esse sentido.

Pela reação dele não era a resposta que esperava. Provavelmente pensava que eu faria um discurso tentando convencê-lo do contrário. No entanto percebi que ele compreendeu a minha colocação. Ou seja, nós precisamos assumir a responsabilidade pelas nossas escolhas. Pois quem arcará com as consequências seremos nós. Ora, não podemos jogar para os outros a responsabilidade de dar sentido a nossa existência. E quanto mais cedo aprendermos isso melhor.

Pedro Ferreira Nunes –  É professor de Filosofia na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins