Safatle é um dos intelectuais brasileiros mais ativos na última década. Com uma produção vasta sobretudo na esfera acadêmica que vai da política à estética. Mas que não foge do debate público por meio de artigos em jornais, revistas, entre outros. Algumas das suas obras publicadas são: Dar corpo ao impossível: O sentido da dialética a partir de Theodor Adorno (2019), Só mais um esforço… (2017), O circuito dos afetos: Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo (2015), Cinismo e falência da crítica (2008).
Em alfabeto das colisões, na minha análise, o objeto do filósofo é a linguagem. Através de textos escritos no estilo de crônicas, dialogando com o conto e a poesia, ele nos mostra como a nossa linguagem vai sendo moldada não só para que nos expressemos de determinada forma, mas também que nos comportemos de determinada forma. Cada texto é representado por uma letra do alfabeto, mas que não segue a ordem estabelecida de A a Z. São 24 ao todo que perpassam por diferentes assuntos: filosofia, identidade, amor, sexo, música, cinema, arquitetura entre outros. A publicação é de 2024, e tem como responsável a ubu - que preparou uma edição de extrema qualidade. Com destaque para as imagens que estão no contexto de reflexão do filósofo.
Numa espécie de subtítulo, Vladimir Safatle define seu alfabeto das colisões de “filosofia prática em modo crônico”. Para mim, é exatamente isso. Reflexões filosóficas no estilo de crônicas. Com essa estratégia o filósofo entrega uma obra para o público em geral. Que não terá dificuldade de compreender sua escrita durante a leitura.
Eu particularmente aprecio bastante este tipo de escrita. E acredito, partindo da minha experiência, que quando nos afastamos da estrutura acadêmica não tornamos o texto menos filosófico. Pelo contrário. Afinal de contas, os clássicos da filosofia não são produtos de mestrados e doutorados.
Um dos trechos que mais me afetaram durante a leitura é do texto intitulado de mercadoria, onde encontramos o seguinte trecho: “nós falamos a linguagem deles, por isso, mesmo quando vencemos, são eles que vencem”. E traz como exemplo o discurso acerca do empreendedorismo como forma de emancipação.
“As quebras são nosso destino porque somos seres em relação. Não há como evitar quebras porque procuramos colocar em relação corpos com tempos distintos”.
O trecho acima é do texto que abre o alfabeto com a letra Q (quebras). Que trás uma crítica sobre como os manuais de ética apontam para um horizonte impossível, ou seja, de relações perfeitas. Contra essa perspectiva Safatle nos lembra que é impossível não sair de uma relação quebrado. Isso me lembrou de um trecho de uma canção da Legião Urbana: “agimos certo sem querer, foi só o tempo que errou…”.
Na sequência temos a letra F (filosofia), onde o filósofo questiona a origem da palavra filosofia, que segundo a tradição advém da junção de duas palavras gregas: philo (amor ou amizade) mais sophia (sabedoria). Tendo assim como significado amor ou amizade a sabedoria ou, ao saber. Para Safatle: “o que a fez aparecer foi a raiva. Uma raiva da doxa, raiva do senso comum, da maneira como ordinariamente falamos e organizamos nossa experiência.”
Não é nosso objetivo aqui abordar ainda que de forma breve todos os textos que compõem a obra. Mas chamar atenção para a escrita do filósofo bem dos objetos da sua crítica. Avancemos por tanto para a letra X onde encontramos o texto (incógnita):
“Um dos dispositivos fundamentais de definição do horizonte da época à qual pertencemos está vinculado ao advento de um tipo muito específico de fala. Para nós, talvez ela seja a mais natural de todas as falas. No entanto, foi necessária uma modificação estrutural em nossas formas de vida para que tal fala emergisse e, principalmente, para que ela ganhasse tamanha importância. Trata-se do que entendemos por “falar de si”.
A crítica de Safatle é acerca da ideia de que falar de si seriam formas de expressão de emancipação política. Desse modo, ele propõe o sentido contrário. Ou seja, a supressão do eu como possibilidade para uma transformação política.
O texto que fecha o seu alfabeto traz a letra Z (como terminar o alfabeto). Ou seja, curiosamente fechando com a letra que tradicionalmente fecha o alfabeto. Nesse texto encontramos uma espécie de conto sobre um gato - que não é propriamente sobre o gato. Mas justamente acerca daquilo que é abordado no primeiro texto. Desse modo é como se o filósofo emendasse uma ponta na outra. Criando uma espécie de espiral.
“seu negócio era tecer linhas, criar um território que ia da perna da criança à cama do casal, da cama à porta, da porta à cadeira da sala, da cadeira da sala ao sol que o esperava no parapeito da janela, assim em movimento contínuo que teciam também os dias em uma grande malha uniforme. Em silêncio, sem ninguém perceber, ele tecia uma malha densa de fios que envolviam todas as pessoas da casa, e seu trabalho ele fazia com afeto e rigor”.
A resposta acerca da continuidade dessa história e o que ela simboliza não será dada aqui. Que isso sirva de estímulo para que adquiram e leiam a obra.
Para concluir, quem compreende minimamente a lógica de funcionamento da sociedade que vivemos não pode de modo algum se acomodar pois do contrário estará sendo condescendente com a ordem estabelecida. Mas que condições temos para subverter essa ordem? O primeiro passo é se incomodar. E esse papel o Vladimir Safatle faz muito bem. O alfabeto das coalizões não é água com açúcar, mas uma dose de conhaque que desce queimando. Mais do que necessário para os tempos que vivemos.
Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).