sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Lajeado: pelo respeito à soberania popular expressada nas eleições do dia 06 de outubro de 2024

Por muito tempo colocou-se na conta de Maquiavel a ideia de que para se manter no poder o governante deve utilizar todos os meios ao seu dispor. Ainda que estes sejam questionáveis do ponto de vista ético. Mas quem estuda criticamente a filosofia política do pensador florentino compreende que não é bem assim. O que Maquiavel salienta a partir dos conceitos de virtu e fortuna é que o governante deve agir com inteligência para manter o poder e não de qualquer forma para que tenha sua cabeça degolada pelo povo.

Lembrei dessa questão ao saber da manobra que estão fazendo para mudar o resultado das eleições municipais para Câmara de Vereadores de Lajeado no dia 06 de outubro de 2024.

Em se tratando de política lajeadense não podemos dizer que seja surpresa. Mas não deixa de ser surpreendente vê o que são capazes de fazer para se manter no poder. Ainda que isso signifique passar por cima da soberania popular expressada por meio dos votos depositados nas urnas.

Tal atitude mostra a mediocridade dessas figuras que não pensam na população lajeadense mas somente nos seus interesses. E que com a derrota do Tércio para Márcia acabaram encontrando uma conjuntura favorável que possibilitou a manipulação de criaturas miseráveis - facilmente descartadas quando já não lhes forem úteis.

Não, não nos iludamos. Não dá para apelar para consciência dos envolvidos. Pois eles não as tem. É como aquele personagem da saga dos senhor dos aneis - Gollum (Sméagol) - corrompido pelo anel do poder.

Eles nos amaldiçoaram… Nos chamaram de assasino… Nos amaldiçoaram, e nos jogaram fora!... E nós choramos precioso; onde estar o tal assasino?.... E nos esqueceu do gosto de pão, do barulho das árvores ao redor do vento.. E nós esqueceu até: do nosso nome... Meeeu preecciossoooooo......

—Gollum em O Retorno do Rei

Qual o legado que essas figuras que estiveram mais de um mandato na Câmara de Vereadores de Lajeado deixaram? O resultado da votação do dia 06 de outubro de 2024 é a resposta para essa pergunta. Se tivessem tido, sobretudo nos últimos quatro anos, uma boa atuação certamente seriam facilmente reeleitos ou eleitos.

Quanto a nós que desejamos melhores dias para a querida cidade de Lajeado, esperamos que a soberania popular seja respeitada - que aqueles que foram eleitos nas urnas possam cumprir o seu mandato. E se ao final dele não corresponderem aos anseios da população, que o povo soberanamente, eleja novos representantes.

A estes que tentam manter o poder a qualquer custo, podem até conseguir. Mas ficaram para a história política de Lajeado como traidores da vontade do povo. E pagaram alto por isso. A vitória da Márcia Reis nas condições que ela foi eleita deveria ser um exemplo. Mas não dá para esperar de gente medíocre uma postura diferente.

Começamos com Maquiavel, concluímos com Rousseau. Este filósofo fala da soberania inalienável do povo. Ou seja, do fato de que o poder não pertence a uma figura específica, mas ao povo - que elege aqueles que deverão representá-lo, mas isso não significa abrir mão dessa soberania. Diante de tal manobra que em última análise vai contra a soberania popular, não podemos ficar de braços cruzados. Pelo contrário, devemos nos mobilizar e lutar para que nossa soberania seja respeitada.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

sábado, 7 de dezembro de 2024

Relato de Experiência: Ensino de Filosofia e Educação em Direitos Humanos

Área de Proteção Ambiental Serra do Lajeado 

Uma educação que se propõe libertadora não pode se furtar em trabalhar a temática dos direitos humanos na sala de aula. Foi a partir dessa compreensão que trabalhamos, na perspectiva do materialismo histórico-dialético, o tema na trilha de aprofundamento vozes da juventude: passado e presente para um futuro diferente. No contexto de uma pesquisa participante, de caráter qualitativa, no programa de mestrado profissional da Universidade Federal do Tocantins  (PROF-FILO).

A questão dos direitos humanos não é alheia a educação formal. Pelo, contrário. Há diferentes documentos que orientam esse ensino. Só para citar um exemplo, destacamos o Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNH3) de 2009, que propõem trabalhar os direitos humanos na educação básica numa perspectiva transversal tendo como obejtivo a (2009) “formação de sujeitos de direito, priorizando as populações historicamente vulnerabilizadas”.


Nosso locus

As atividades foram desenvolvidas no Colégio Estadual Nossa Senhora da Providência – localizado em Lajeado – cidade que faz parte da Área de Proteção Ambiental Serra do Lajeado. Com estudantes do Ensino Médio  (1° e 2° Série do Ensino Médio) que participam da Trilha Vozes da Juventude. O perfil dos estudantes é de indivíduos oriundos das classes populares – servidores públicos, autônomos, pequenos agricultores e pescadores (na sua grande maioria em situação de vulnerabilidade). Além de viverem numa área de proteção ambiental também tiveram sua vida modificada com o impacto da construção da Usina Hidrelétrica Luiz Eduardo Magalhães. 


O que são direitos humanos 

Nosso ponto de partida não poderia ser outro se não começar por entender o que são direitos humanos. Sobretudo diante de uma visão distorcida que se tem acerca dos mesmos. Sobretudo no Brasil – onde a temática é muito ligada a área da segurança pública – como reflexo da violência policial sustentada por discursos como “bandido bom é bandido morto”, “gente de bem”, “direitos humanos é direito de bandido” entre outros.

Mas quando analisamos que a inserção da temática dos direitos humanos no Brasil se deu no contexto da resistência contra os crimes cometidos pelo Estado durante a Ditadura Civil-Militar é compreensível que aja todo um discurso que busca justificar a violação desses direitos. Sobretudo por parte daqueles que deveriam garantir a sua efetividade – os agentes públicos. 

Diante disso não é possível falar em direitos humanos sem falar em política. Pois a sua efetividade passa necessariamente por uma compreensão da política como meio para se alcançar o bem comum. Também não é possível falar em direitos humanos sem falar em ética. Ou seja, em quais valores se funda a sociedade. No caso da brasileira, de acordo com a Constituição Federal de 1988, um dos seus fundamentos é a dignidade humana. E o que são os direitos humanos se não a garantia da dignidade humana?!


Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável  (ODS)

A garantia da dignidade humana passa pela construção de uma cultura de respeito ao outro. Como também de um conjunto de ações que permitam aos individuos viverem com dignidade independe da sua origem social. É nesse sentido que caminha os objetivos para o desenvolvimento sustentável elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU) que estabelece um conjunto de metas a serem alcançados até 2030 pelo conjunto das nações que a compõe. Entre estas está o Brasil.

Foi a partir desses objetivos que buscamos trabalhar a temática dos direitos humanos em sala de aula. E a partir daí mostrar que não é uma questão alheia a realidade que muitos vivem – uma realidade de violação de direitos, mas por falta de compreensão não buscam mudar tal realidade.

Ao todo a ONU estabeleceu 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável  (ODS). Optamos por trabalhar apenas 7 – aqueles mais condizentes com a realidade que os estudantes estão inseridos – e que nos permitia o maior aprofundamento em cada um deles:

(ODS 1) Erradicação da Pobreza; 

(ODS 4) Educação de qualidade; 

(ODS 6) Água limpa e saneamento básico; 

(ODS 8) Trabalho e crescimento econômico;

(ODS 11) Cidades e comunidades sustentáveis; 

(ODS 12) Consumo e produção sustentável;

(ODS 13) Combate às alterações climáticas. 


Metodologia e Didática 

Optamos por desenvolver as aulas a partir de uma metodologia problematizadora, tendo como fundamentação teórica o materialismo histórico-dialético. Que nada mais é do que uma Filosofia da práxis. O ponto de partida é sempre o entendimento do estudante sobre o problema em análise. A partir daí busca-se um aprofundamento a partir de exercícios diversos. É então que entra a didática pautada sobretudo no diálogo. É através do diálogo que buscamos compreender o problema tanto a partir de uma perspectiva filosófica quanto científica. 

Um aspecto interessante dessa perspectiva didático-metodológica é que a sala se transforma numa espécie de oficina experimental. Ou seja, é a partir da dinâmica da sala de aula que o processo vai sendo construído. Óbvio que temos todo um planejamento e organização. De modo que toda a experimentação não é aleatória, não é um improviso sem sentido. Mas no sentido de compreender que trabalhar a partir de uma perspectiva histórico-dialética é que não existe fórmula prévias de como fazer. Ou como diria belchior – “é caminhando que se faz o caminho” e assim fizemos.


O resultado

Desde o início tínhamos a proposta de elaborar um material didático sobretudo diante da escacez, tanto a nível regional como nacional, de publicações que subsidiasse o professor na sala de aula. Pensávamos numa cartilha. O problema é que não tínhamos em o que nos inspirar. 

A partir de um questionamento a ideia passou a ser uma cartilha ilustrada pelos próprios estudantes. O ineditismo da proposta – pelo menos na nossa visão – não nos dava nenhum norte de como fazê-la. E assim iniciamos o trabalho. No final das contas a cartilha foi o menor dos nossos problemas. Sua confecção foi uma consequência natural do trabalho desenvolvido em sala. Na medida que este ia se desenvolvido a cartilha ia tomando corpo.

Eis ai portanto o resultado do nosso trabalho ao longo de dois bimestres. E esperamos com ele não só chamar atenção para a problemática da necessidade da efetividade da educação em direitos humanos. Mas também disponibilizar um material didático, desenvolvido a partir da realidade da sala de aula, para quem queira assumir esse desafio que é trabalhar a educação em direitos humanos numa realidade – que muitas vezes – nega esses direitos.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Desafios para valorização dos povos indígenas no Tocantins

Fiquei pensando nesse problema durante um bate-papo etnocultural com o Célio Kanela - Diretor de Proteção aos Indígenas, da Secretaria dos Povos Originários e Tradicionais do Tocantins (SEPOT). Realizado no dia 11 de Novembro no Colégio Santa Rita de Cássia. Ainda que breve, o bate-papo nos mostrou o quanto desconhecemos os povos indígenas e os desafios que eles enfrentam.

A fala do Célio Kanela iniciou com o questionamento acerca de quantos povos indígenas encontramos no Estado do Tocantins. Para em seguida apresentar quem são e onde estão localizados. Até 2021, o governo do Tocantins reconhecia 9 povos: Karajá, Xambioá, Javaé (que forma o povo Iny) e ainda os Xerente, Apinajè, Krahô, Krahô-Kanela, Avá-Canoeiro (Cara Preta) e Pankararu. Com uma população, segundo o IBGE, acima de 14 mil indígenas. Para Célio a realidade é outra: o Tocantins possui atualmente 16 etnias, incluindo aqueles que recentemente migraram da Venezuela.

Outro ponto que certamente é de desconhecimento da população em geral é em relação à localização dos povos indígenas. Célio ressaltou que além das aldeias há um quantitativo significativo de indígenas vivendo na zona urbana. Destacando que dos 139 municípios tocantinenses, 125 têm indígenas. E a partir daí questionou quais as políticas públicas, criadas pelo poder público municipal, voltadas para essa população, existem nessas localidades.

Célio Kanela nos apresentou os municípios onde há maior presença de indígenas com Tocantínia no topo, onde mais de 54% da sua população é de indígenas. Os demais são: Goiatins, Tocantinópolis, Lagoa da Confusão, Formoso do Araguaia, Itacajá, Pium, Gurupi, Palmas e Maurilândia do Tocantins.

O que se observa em relação às políticas públicas é que tanto o governo Federal (na saúde) como o Estadual (na educação) têm tido uma preocupação e agido concretamente nesse sentido. Mas quando vamos para os municípios que é onde as pessoas vivem não encontramos tais políticas. Podemos pegar como exemplo o município de Palmas onde há um número significativo de indígenas. Qual a política existe voltada para esse público?

A nível regional a criação da Secretaria dos Povos Originários e Tradicionais do Tocantins (SEPOT), seguindo a estrutura do Governo Federal, é certamente uma grande conquista. Ainda mais pelo fato dessa secretaria ser comandada pelos próprios indígenas. Pois não tem ninguém com maior propriedade para falar em nome dos povos indígenas se não os indígenas.

Isso foi certamente um dos aspectos que tornaram o bate-papo tão significativo para aqueles que participaram dele. Durante a fala do Célio Kanela foi possível perceber o interesse e curiosidade dos participantes no que estava sendo dito. O interesse se dá porque é algo que faz parte da nossa matriz cultural, ou seja, uma herança que todos nós carregamos de alguma forma. E a curiosidade porque se houve muitas coisas acerca dos hábitos e costumes dos indígenas, mas que não correspondem à realidade. O que pudemos observar durante a fala do Célio Kanela - que nos apresentou brevemente a característica desses povos, ressaltando a língua, rituais bem como modo de organização.

Certamente são muitos os desafios para valorização dos povos indígenas no Tocantins. Entre estes o conhecimento da cultura e de sua história, história escrita por eles. Nesse sentido, a educação cumpre um papel fundamental. Por muitos anos, e ainda hoje, as escolas têm apresentado uma imagem caricata do indigena. Como se este tivesse parado no tempo do descobrimento (invasão). Isso precisa mudar. Precisamos dar voz aos próprios indígenas - pois ninguém melhor do que eles em mostrar a realidade que vivem.

Foi isso que fez o Célio Kanela - que na sua intervenção final questionou o discurso de que os povos indígenas representam uma ameaça ao desenvolvimento econômico do território em que habitam. Pelo contrário, os territórios onde estão localizados as comunidades indígenas são verdadeiros santuários preservados, propícios para o turismo ecológico. Por outro lado, ele não deixou de apontar as ameaças, representadas sobretudo por um modelo de produção agropecuário predatório que ameaça os territórios indígenas e a sua biodiversidade.

Enfim, foi um bate-papo muito agradável em que aprendemos muito. Que esse aprendizado possa contribuir para que tenhamos um olhar mais solidário aos povos indígenas que habitam esse território. Ao contrário daquele que encontramos em obras como História do Tocantins (1989), do Osvaldo Rodrigues Póvoa, onde os indígenas são retratados como indolentes. Nesse sentido, políticas públicas de valorização dos povos indígenas e seus territórios são fundamentais.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

sábado, 30 de novembro de 2024

Vladimir Safatle: Alfabeto das Colisões

Que é isso, meu caro Safatle! Essa foi a frase que me veio à cabeça lendo o “alfabeto das colisões", do Vladimir Safatle. Numa linguagem direta, o filósofo traz um olhar incômodo sobre o cotidiano e, a nós mesmos, que parecemos, em que pese o discurso contrário, termos nos acomodado com as coisas tal como são. Ao longo da leitura sua reflexão vai despertando em nós diferentes emoções que vão do riso ao choro. Isso mesmo, acredito que  é impossível não chorar diante do texto que fecha o livro (como termina o alfabeto).

Safatle é um dos intelectuais brasileiros mais ativos na última década. Com uma produção vasta sobretudo na esfera acadêmica que vai da política à estética. Mas que não foge do debate público por meio de artigos em jornais, revistas, entre outros. Algumas das suas obras publicadas são: Dar corpo ao impossível: O sentido da dialética a partir de Theodor Adorno (2019), Só mais um esforço… (2017), O circuito dos afetos: Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo (2015), Cinismo e falência da crítica (2008).

Em alfabeto das colisões, na minha análise, o objeto do filósofo é a linguagem. Através de textos escritos no estilo de crônicas, dialogando com o conto e a poesia, ele nos mostra como a nossa linguagem vai sendo moldada não só para que nos expressemos de determinada forma, mas também que nos comportemos de determinada forma. Cada texto é representado por uma letra do alfabeto, mas que não segue a ordem estabelecida de A a Z. São 24 ao todo que perpassam por diferentes assuntos: filosofia, identidade, amor, sexo, música, cinema, arquitetura entre outros. A publicação é de 2024, e tem como responsável a ubu - que preparou uma edição de extrema qualidade. Com destaque para as imagens que estão no contexto de reflexão do filósofo.

Numa espécie de subtítulo, Vladimir Safatle define seu alfabeto das colisões de “filosofia prática em modo crônico”. Para mim, é exatamente isso. Reflexões filosóficas no estilo de crônicas. Com essa estratégia o filósofo entrega uma obra para o público em geral. Que não terá dificuldade de compreender sua escrita durante a leitura.

Eu particularmente aprecio bastante este tipo de escrita. E acredito, partindo da minha experiência, que quando nos afastamos da estrutura acadêmica não tornamos o texto menos filosófico. Pelo contrário. Afinal de contas, os clássicos da filosofia não são produtos de mestrados e doutorados.

Um dos trechos que mais me afetaram durante a leitura é do texto intitulado de mercadoria, onde encontramos o seguinte trecho: “nós falamos a linguagem deles, por isso, mesmo quando vencemos, são eles que vencem”. E traz como exemplo o discurso acerca do empreendedorismo como forma de emancipação.

“As quebras são nosso destino porque somos seres em relação. Não há como evitar quebras porque procuramos colocar em relação corpos com tempos distintos”.

O trecho acima é do texto que abre o alfabeto com a letra Q (quebras). Que trás uma crítica sobre como os manuais de ética apontam para um horizonte impossível, ou seja, de relações perfeitas. Contra essa perspectiva Safatle nos lembra que é impossível não sair de uma relação quebrado. Isso me lembrou de um trecho de uma canção da Legião Urbana: “agimos certo sem querer, foi só o tempo que errou…”.

Na sequência temos a letra F (filosofia), onde o filósofo questiona a origem da palavra filosofia, que segundo a tradição advém da junção de duas palavras gregas: philo (amor ou amizade) mais sophia (sabedoria). Tendo assim como significado amor ou amizade a sabedoria ou, ao saber. Para Safatle: “o que a fez aparecer foi a raiva. Uma raiva da doxa, raiva do senso comum, da maneira como ordinariamente falamos e organizamos nossa experiência.”

Não é nosso objetivo aqui abordar ainda que de forma breve todos os textos que compõem a obra. Mas chamar atenção para a escrita do filósofo bem dos objetos da sua crítica. Avancemos por tanto para a letra X onde encontramos o texto (incógnita):

“Um dos dispositivos fundamentais de definição do horizonte da época à qual pertencemos está vinculado ao advento de um tipo muito específico de fala. Para nós, talvez ela seja a mais natural de todas as falas. No entanto, foi necessária uma modificação estrutural em nossas formas de vida para que tal fala emergisse e, principalmente, para que ela ganhasse tamanha importância. Trata-se do que entendemos por “falar de si”.

A crítica de Safatle é acerca da ideia de que falar de si seriam formas de expressão de emancipação política. Desse modo, ele propõe o sentido contrário. Ou seja, a supressão do eu como possibilidade para uma transformação política.

O texto que fecha o seu alfabeto traz a letra Z (como terminar o alfabeto). Ou seja, curiosamente fechando com a letra que tradicionalmente fecha o alfabeto. Nesse texto encontramos uma espécie de conto sobre um gato - que não é propriamente sobre o gato. Mas justamente acerca daquilo que é abordado no primeiro texto. Desse modo é como se o filósofo emendasse uma ponta na outra. Criando uma espécie de espiral. 

“seu negócio era tecer linhas, criar um território que ia da perna da criança  à cama do casal, da cama à porta, da porta à cadeira da sala, da cadeira da sala ao sol que o esperava no parapeito da janela, assim em movimento contínuo que teciam também os dias em uma grande malha uniforme. Em silêncio, sem ninguém perceber, ele tecia uma malha densa de fios que envolviam todas as pessoas da casa, e seu trabalho ele fazia com afeto e rigor”.

A resposta acerca da continuidade dessa história e o que ela simboliza não será dada aqui. Que isso sirva de estímulo para que adquiram e leiam a obra.

Para concluir, quem compreende minimamente a lógica de funcionamento da sociedade que vivemos não pode de modo algum se acomodar pois do contrário estará sendo condescendente com a ordem estabelecida. Mas que condições temos para subverter essa ordem? O primeiro passo é se incomodar. E esse papel o Vladimir Safatle faz muito bem. O alfabeto das coalizões não é água com açúcar, mas uma dose de conhaque que desce queimando. Mais do que necessário para os tempos que vivemos.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

O filme diário de um jornalista bêbado: Imprensa e poder

Uma entrevista recente do Fernando Haddad (Ministro da Fazenda do Governo Lula) em que ele fala sobre o sacrifício que todos devem fazer no ajuste fiscal, incluindo a imprensa que é fartamente beneficiada com isenções fiscais. Me fez lembrar do filme diário de um jornalista bêbado (2011), mais um exemplo que coloca em xeque o mito da neutralidade da imprensa.

Na trama, Paul, um jornalista estadunidense é contratado para escrever num periódico, ameaçado de ser fechado, em Porto Rico. Imediatamente um empresário tenta recrutá-lo para que escreva favoravelmente a seus projetos no jornal. Convencendo a opinião pública e pressionando o governo a fazer concessões para que os projetos saiam do papel. Em troca disso, o jornalista terá abertas as portas da alta sociedade porto-riquenha. E sair da situação de miséria que se encontra.

O filme dirigido por Bruce Robinson e estrelado por Johnny Depp é uma adaptação do romance Rum: Diário de um jornalista bêbado (1998), do escritor e jornalista estadunidense Hunter Thompson. E trás uma dose de memórias já que quando Thompson escreveu a obra contava com 22 anos e morava em San Juan (Porto Rico).

No decorrer do filme as concepções éticas do jovem jornalista vão sendo testadas.  Hal Sanderson (Aaron Eckhart) surge como o diabo surgiu para Jesus Cristo no deserto prometendo-lhe tudo. Mas nesse caso, Paul (Johnny Depp) está longe de ser um santo, é um amante de bebidas alcoólicas e mulheres. E acaba se apaixonando justamente pela mulher de Hal Sanderson - Chenault (Amber Heard). Ou seja, parece o perfil de alguém fácil de ser comprado. Mas há um ponto que faz de Paul alguém difícil de ser dobrado. Ele não está ali por necessidade. E quando você não é refém de uma situação ou de um lugar é mais fácil de você se libertar.

A forma com que Paul se refere ao Presidente Estadunidense (Nixon), mostra que a sua ida para Porto Rico está ligado a um descontentamento com a política do republicano a frente da casa branca:

- Imagina passar a vida toda mentindo. Meu Deus, nunca foi pior! A única coisa pior é sabermos que um dia surgirá um canalha sujo que o fará parecer o liberal.

No entanto, ele perceberá que quem dá as cartas em Porto Rico não são indivíduos diferentes daqueles que ele abomina. Durante um jantar na casa de Hal, ele percebe isso durante um diálogo com um dos empresários e sua esposa que faz parte dos esquemas de corrupção:

- Paul tem um ponto de vista meio liberal. Diz a senhora.

- Liberal não existe. Um liberal é um comunista universitário com ideias de negro. Responde o empresário.

Haddad durante o seu discurso apelando para a sensibilidade da imprensa parece se esquecer que estas são empresas que visam o lucro e não o bem comum. Esperar que o discurso da grande mídia seja contrário ao interesse da classe dominante parece ser  um tanto ingênuo. Há certamente jornalistas tal como Paul com suas convicções éticas, contrário a colocar na conta do povo trabalhador os cortes dos ajustes fiscais. Mas a partir do momento que estes profissionais fazem parte de uma empresa não terão liberdade para dizer o que pensam. E caso tenham, as retaliações certamente virão tal como retratado no diário do jornalista bêbado.

Além das reflexões que suscitam, o filme é divertido, nos brindando com situações hilárias. Ninguém melhor do que Johnny Depp para incorporar esse jornalista bêbado num país caribenho. Alguma semelhança com o seu famoso Jack Sparrow? Talvez a capacidade de se colocar em encrenca e improvisar. Mas aqui o temos numa atuação mais contida. Mas não menos brilhante. 

Temos uma boa atuação do elenco no geral. A fotografia e a trilha sonora também não deixam a desejar. De modo que o fato de não ter feito sucesso comercial não diminui o seu valor. Talvez esse fracasso, além das questões pessoais envolvendo o relacionamento de Johnny e Amber na vida real, seja a mensagem do filme sobre os bastidores da relação entre imprensa e poder - uma relação que alguém como Fernando Haddad certamente conhece bem. E portanto não deveria esperar uma postura contrária. Mas vindo de alguém que acha que é possível conciliar os interesses do mercado com as pautas sociais e ambientais não é muito surpreendente.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

O Sistema de Gerenciamento da Educação e a saúde mental do Professor

Em 2024 os servidores da educação da Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins, em especial os professores, tiveram acesso a uma nova versão do Sistema de Gerenciamento da Educação (SGE) - ferramenta que concentra todos os dados e informações acerca do fluxo escolar como matrículas, frequência e os índices de aprovação e reprovação. Mas também os planos de cursos, de aula, competências, habilidades e objetos de conhecimento trabalhados pelos professores em sala de aula. Ou seja, uma ferramenta importante para quem gere a educação no Tocantins. Pois é a partir dos dados fornecidos pelos profissionais que estão em sala de aula que se pode ter um diagnóstico da realidade da educação pública do Tocantins e a partir daí planejar ações de enfrentamento aos problemas detectados, como por exemplo, em relação a evasão escolar e o índice de aprendizagem.

O principal responsável por alimentar o sistema é o professor que está na regência da sala de aula. Devendo portanto dedicar parte do seu tempo para esse fim. A questão é que a dinâmica escolar nem sempre possibilita que isso seja feito a contento. Obrigando, não raramente, o professor de fazer isso no seu tempo que deveria ser de descanso. Algo que facilitaria é se tivéssemos uma ferramenta que ajudasse - o que não é o caso da nova versão - que parece ter sido feita estrategicamente para complicar a vida de quem está na sala de aula. A versão anterior de fato já estava ultrapassada. Porém, imaginava-se que a mudança seria para melhor. Não foi o que ocorreu, infelizmente. Como consequência temos uma ferramenta que ao invés de otimizar o trabalho docente tem o tornado mais penoso. Ainda mais num contexto de deficiência do serviço de internet nas escolas.

Independente disso, como também do fato dos professores não terem passado por formação. Pela instabilidade do sistema e as suas constantes atualizações. Há prazos a serem cumpridos. E quando não são, a cobrança vem de forma enfática. Inclusive com ameaça de notificação entre outros.

Marcuse (1973) é um crítico do desenvolvimento tecnológico porque observa que esse desenvolvimento ao invés de contribuir para libertação dos indivíduos acaba tendo um efeito contrário. E é isso que observamos no caso da nova versão do sistema de gerenciamento escolar (SGE). Uma ferramenta que deveria contribuir com o nosso trabalho docente acaba se tornando algo nocivo que afeta a saúde mental.

O trabalho burocrático é certamente uma das partes mais estressantes do fazer docente. E acaba afetando a sala de aula. Pois enquanto o professor está perdendo tempo preenchendo coisas burocráticas está deixando de lado o estudo e o planejamento de atividades que de fato iria impactar na qualidade das aulas. Quase sempre é um trabalho repetitivo, preenchendo coisas que não fará nenhuma diferença no processo de ensino-aprendizagem. 

Desde o seu lançamento no início do ano letivo, a ferramenta já passou por alguns ajustes. E o que se ouve é que estes ajustes continuarão. O que evidencia a má escolha realizada por quem adquiriu o produto. Enquanto isso, quem está na ponta está pagando a conta. Essa questão me fez lembrar de um pensamento há alguns anos ao ouvir uma colega reclamar da educação, sobretudo referente às exigências burocráticas.

- Se a burocracia mata a educação. Matemos a burocracia então.

Hoje acrescentaria. Ou matamos a burocracia ou ela nos matará. O índice de brasileiros com sentimentos negativos referente ao trabalho é enorme, como aponta pesquisa divulgada recentemente do State of the Global Workplace 2024. Que isso evolua para um adoecimento mental é mais do que óbvio. Também não faltam dados que mostram essa realidade, como, por exemplo, o divulgado pelo INSS, de 2023, que aponta um crescimento de quase 40% no afastamento de trabalhadores decorrentes de problemas como ansiedade e depressão. Os levantamentos também apontam que esse é um dos principais problemas que tem levado ao afastamento dos professores da sala de aula.

Engana-se quem pensa que o adoecimento mental dos professores está ligado apenas a sala de aula. A relação entre professor e aluno certamente não é fácil. Sobretudo num contexto em que a educação não é mais vista como um instrumento de mudança - tanto pessoal como social. E tanto a família como a sociedade passam por uma crise de valores.  Mas, mais desgastante do que a sala de aula é certamente as demandas burocráticas que são cobradas do professor. E o pior, é que se observa, que essas exigências não tem como fim melhorar o processo de ensino-aprendizagem, mas justificar a existência de determinadas estruturas burocráticas.

Dito isso, infelizmente não vislumbramos uma mudança dessa realidade. Sobretudo porque ouvir quem está no chão da escola parece não estar no radar de quem pensa a educação no Tocantins. Além disso, quem está no chão da escola não está muito disposto a fazer um enfrentamento para que seja ouvido.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Poema: Doce de buriti


 Para Maria Lucia, em memória 

Das delícias dessa terra,
existe uma especial.
Seu sabor é indescritível, 
coisa fenomenal.

Se feito por Maria Lúcia, 
melhora ainda mais.
Ela sabe o ponto certo,
ela sabe como faz.

O fruto tem que ser bom,
tem que ser da estação. 
Se não for do tempo certo,
não vingará não. 

De preferência que seja,
da chácara do Vô Chó. 
Feito no fogão a lenha,
não há coisa melhor. 

Depois de qualquer refeição, 
sempre cai bem.
É a melhor sobremesa,
não tem para ninguém. 

Oh doce de buriti,
tu és especial.
Dás delícias dessa terra,
não há nada igual.

Pedro Ferreira Nunes. Casa da Maria Lúcia. Lajeado-TO.  Inverno de 2019.