terça-feira, 15 de abril de 2025

Resenha: Rodox e o seu álbum de estreia - Estreito

Há um tempo que não faço as minhas resenhas das coisas que ando ouvindo. Então vamos lá. Esse eu ouvi por acaso. E não poderia deixar de escrever pois é certamente um dos melhores discos de rock dos anos 2000. O que me fez pensar que nada como o tempo para que a gente mude o nosso olhar sobre determinadas coisas.

Antes de falarmos do Rodox e seu álbum de estreia precisamos falar sobre o acontecimento que levou ao surgimento do grupo - a saída do Rodolfo Abrantes da banda Raimundos. Para os desavisados, a Raimundos é uma banda que surgiu em Brasília e tomou o Brasil de assalto com sucesso como Mulher de Fases, A mais pedida, Eu quero ver o oco, Puteiro em João Pessoa entre outros. E era composta por: Rodolfo (Vocal), Digão (Guitarra), Canisso (Contrabaixo) e Fred (bateria). A saída do vocalista pegou os fãs de surpresa, sobretudo porque a banda estava no auge. Mais ainda o motivo, sua conversão ao protestantismo cristão.

Ao montar a banda Rodox, integrada por DJ Bob (efeitos), Fernando Schaefer (bateria), Marcos Adamuy (guitarra), Pedro Nogueira (guitarra) e Patrick Laplan (baixos), Rodolfo mostrou que continuaria no rock, mas agora ao contrário das letras escrachadas dos Raimundos no melhor estilo sexo, drogas e rock in roll. Certamente teríamos letras com mensagens evangelizadoras.

E acredito que foi exatamente isso que afastou tanto eu como muitos outros do som da banda. No decorrer dos anos já até me deparei com algum vídeo de apresentação do Rodox em programas como o Musical, do Gastão Moreira na Cultura. E no Bem Brasil, com o Wandi Doratiotto. E não me pareceu tão ruim. Mas nunca me animei a ouvir um disco deles.

Só recentemente, é que por acaso ouvi o álbum de estreia da banda - estreito (2002). E não me pareceu nada mau. É um excelente disco de rock do ponto de vista musical. Quanto às letras, e foi isso que mais me surpreendeu, não é uma pregação. Óbvio, tem muita referência a bíblia. Mas é sobretudo letras que refletem um estado de espírito de alguém que conseguiu superar seus demônios. Com isso consegue se sobrepor ao meio gospel, pois estamos falando de uma condição que é inerente ao ser humano. Só o que muda dependendo de cada um é no que nos agarramos para encarar a nossa condição de seres finitos.

O nome do álbum é de uma das canções que compõem o disco - estreito. Um hardcore ala Nega Jurema. Mas com uma reflexão acerca de escolhas e de caminhos.

O caminho que escolhi é o estreito
Até parece duro e espinhoso, mas é reto e perfeito
A verdade cai na Terra como uma bomba
A mágoa leva a consciência feito uma tromba d'água.

Além dessa temos: olhos abertos; Não lembro mais; De uma só vez; Ao lado do sol; Continuar de pé; Cego de Jericó; Dia quente; Três Reis; Quem tem coragem não finge; Horário Nobre; Quem dá mais.

Na faixa Três Reis temos a participação do Marcelo Falcão (O Rappa) e Xis (Rapper). Eu vejo o inimigo no espelho/Meu sangue no joelho/É sempre para me lembrar/Que os vultos e vozes que chegam devagar/Inofensivos como coelhos/São piores que a serpente do mal.

Em estreito, Rodolfo mostra que ele era de fato a mente criativa dos Raimundos. Após a sua saída a banda sobreviveu aos trancos e barrancos. Mas nunca conseguiu produzir algo relevante. Continua fazendo shows sobretudo a partir do legado construído na era Rodolfo. Já o Rodox também não teve vida longa. Rodolfo acabou seguindo uma linha cada vez mais pop - que já observamos nesse disco em faixas como: Quem tem coragem não finge.

O que impede de andar pra frente
É a direção que escolheu
Se um abismo separa a gente
Quem fez a escavação não fui eu
Eu sei que gente que tem coragem não finge
Que nada disso aconteceu…

Não precisamos ser evangélicos para apreciar a poesia dessa letra. E não, não seremos convertidos se ouvirmos estreito (2002) do Rodox. No qual percebemos uma influência do Link Park, tanto na estética do grupo como nas músicas que se intercalam entre um vocal suave e gritado. Por tanto, se você aprecia música de qualidade, em especial rock in roll, não se arrependerá. Dá o play e aprecie fumando um palheiro e tomando uma cerveja.

Pedro Ferreira Nunes - é apenas um rapaz latino americano, que gosta de ler, escrever, correr e ouvir rock in roll.

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Foucault e “Las Meninas”: Uma Interpretação Possível

Ao analisar a famosa obra de arte “Las Meninas” do pintor espanhol Velázquez, no capitulo I, do seu livro “As palavras e as coisas” publicado em 1966. Foucault parece esta seguindo a teoria apresentada por Gadamer na sua obra “Verdade e método” publicado em 1960. Onde ele aborda a relação entre estética e hermenêutica. Para Gadamer (1960) é preciso ver a obra de arte como se estivéssemos vendo o mundo diante de nós. Vendo a obra de arte como o mundo e não como um objeto, ela deixa de ser meramente perceptível para se tornar conhecimento. E nos parece que é exatamente este conselho que Foucault tenta seguir, inclusive chamando atenção inicialmente para o aspecto do olhar. Dependendo de qual perspectiva que você visualiza determinada coisa, alguns aspectos se tornaram visíveis e outros invisíveis. 

Eis, portanto um primeiro ponto importante acerca dessa interpretação de Foucault da obra “Las Meninas”, a visibilidade e a invisibilidade através do olhar. E a partir dai algumas questões surgem. O que olhar nos revela? O que nos omite? Outra questão importante é o fato de que somos condicionados a ver não aquilo que queremos. Ainda que achemos que estamos vendo o que queremos, quando no fundo estamos vendo exatamente o que o autor quer que vejamos. Podemos dizer também que Foucault está preocupado com a maneira que vemos determinadas coisas e de como as interpretamos.

Segundo Foucault (2006) nenhum olhar é estável, ou antes, no sulco neutro do olhar que traspassa a tela perpendicularmente, o sujeito e o objeto, o espectador e o modelo invertem seu papel ao infinito. E assim Foucault levanta um tema central na filosofia – a relação entre sujeito e objeto. Uma questão fundamental no campo da teoria do conhecimento. E pelo posicionamento do autor, claramente ele toma partido por uma visão materialista. Sobretudo quando reconhece que o sujeito se faz na relação concreta com o objeto. Porém sem negar a subjetividade. Foucault trás o aspecto do olhar para nos mostrar como a relação entre sujeito e objeto não se dá tão claramente, pelo contrário, muitas vezes gera confusão, pois, “não sabemos quem somos nem o que fazemos. Somos vistos ou vemos?” (Foucault, 1966). 

Tal fato se dá por que nosso olhar é condicionado a enxergar apenas aquilo que nos dá a ser enxergado. “Olhamos-nos olhados pelo pintor e tornados visíveis aos seus olhos pela mesma luz que no-lo faz ver. E, no momento em que vamos nos apreender transcritos por sua mão como num espelho, deste não podemos surpreender mais que o insipido reverso. O outro lado de um reflexo”. (Foucault, 1966). Quando nos libertamos desse olhar podemos perceber o que antes não víamos, o que antes era invisível. E é o próprio artista que nos oferece essa visibilidade através de um espelho. O espelho trás a luz o que antes era invisível. Podemos dizer que aqui o autor esta falando sobre as quebras de paradigmas. Por outro lado ele ressalta que “essa invisibilidade que ele supera não é a do oculto: não contorna o obstáculo, não desvia a perspectiva, endereça-se ao que é invisível ao mesmo tempo pela estrutura do quadro e por sua existência como pintura”. Foucault chama atenção para o limite das teorias filosóficas hegemônicas. Como também das artes plásticas no sentido de desvelar completamente as estruturas por trás das coisas.

Logo para Foucault é necessário um novo olhar sobre as coisas, um olhar estruturalista – corrente filosófica da qual ele fazia parte. E o que é o estruturalismo? De acordo com Japiassú (2001) trata-se de uma “doutrina filosófica que considera a noção de estrutura fundamental como conceito teórico e metodológico”. Ainda de acordo com Japiassú (2001) “o método estruturalista de investigação científica foi estabelecido pelo linguista suíço Ferdinand de Saussurre (1857-1913), que afirma ver na linguagem "a predominância do sistema sobre os elementos, visando extrair a estrutura do sistema através da análise das relações entre os elementos" (E. Benveniste). A linguística, desse modo teria por objeto não a descrição empírica das línguas. Mas a análise do sistema abstrato que constitui as relações linguísticas. Lévi-Strauss aplicou o método estruturalista no estudo dos mitos e das relações de parentesco nas sociedades primitivas, tornando as estruturas sociais como modelos a serem descritos, estabelecendo assim o sentido da cultura em questão”. Foucault busca seguir o mesmo caminho. É justamente isso que ele tenta fazer ao analisar o quadro “Las Meninas” do pintor espanhol Velázquez. E que ficará mais claro na segunda parte quando ele introduz a questão da palavra e a relação da linguagem com a pintura.

Seguindo essa linha uma primeira questão apontada pelo autor é a diferença entre o que se vê e o que se diz. Logo a tarefa da linguagem nessa sua relação com o visível é ir desvelando o que não esta tão explicito assim. Foucault dá ênfase ao papel do espelho nesse processo. Segundo o autor (1966) “o espelho, por um movimento violento, instantâneo e de pura surpresa, vai buscar, à frente do quadro, aquilo que é olhado mas não visível”. Seria, portanto esse o papel do filósofo estruturalista? A Concepção metodológica estruturalista é utilizada em diversas ciências (linguística, antropologia, psicologia etc.) que tem como procedimento a determinação e a análise de estruturas. De acordo com Japiassú (2001) “pode-se considerar o estruturalismo como uma das principais correntes de pensamento, sobretudo nas ciências humanas, em nosso século”. Tal importância se dá justamente por essa busca dos estruturalistas em tornar o invisível, visível.

Foucault utiliza bem a concepção metodológica estruturalista para explicar a sua interpretação da obra “Las Meninas”. “há, pois, dois centros que podem organizar o quadro” e seguindo afirma que “essas linhas sagitais são convergentes, segundo um ângulo muito agudo, e o ponto de seu encontro, saindo da tela, fixa à frente do quadro, mais ou menos lá de onde o olhamos. Ponto duvidoso, pois que não o vemos; ponto, porém, inevitável e perfeitamente definido, pois que é prescrito por essas duas figuras mestras e confirmado ainda por outros pontilhados adjacentes que nascem do quadro e que também dele escapam”. (Foucault, 1966). Novamente Foucault chama atenção para o fato do artista buscar direcionar o nosso olhar o que não percebemos se não compreendermos toda a estrutura utilizada pelo autor para confecciona-la. E é isso que Foucault tenta fazer ao afirmar que há dois pontos centrais que se convergem bem como três olhares que se cruzam.

Retomemos aqui uma comparação entre a interpretação de “Las Meninas” por Foucault e a relação entre hermenêutica e estética por Gadamer. Gadamer é contrario a consciência estética que se fundamenta nessa concepção metódica, numa espécie de “autocerteza subjectiva”. Ele criticará a visão acerca dessa experiência estética – da afirmação de que não existe conteúdo na obra de arte, na separação que se faz entre forma e conteúdo. Foucalt parece concordar, tanto que para iniciar a sua obra “As palavras e as coisas” se utilizará da interpretação de uma pintura para mostrar a relação infinita entre linguagem e imagem. E que portanto é necessário uma abordagem estruturalista para compreender essa questão. 

É importante chamar atenção para questão da representação. Para Foucault ((1966) “a representação pode se dar como pura representação”. Como saber então se se trata ou não de uma representação da representação? O caminho é buscar a estrutura das coisas. E para tanto é preciso se utilizar dos diversos tipos de linguagem, não só a palavra escrita.

Por fim para nós fica evidente o aspecto da importância do olhar que Foucault trás na sua interpretação. Outra questão importante é acerca do que é visível e do que é invisível. Sendo que a relação do olhar com o que é visível e invisível muda a nossa perspectiva de como vemos determinada coisa bem como o significado ao que damos a essa coisa. A partir dai ele falará do espelho como algo que surge nos dando a possibilidade de ver o que antes não conseguíamos ver, sobretudo quando torna o invisível, visível. Nos parece que este é exatamente o papel da corrente filosófica estruturalista, revelar o que esta invisível – o que se dá através da linguagem.

Referências Bibliográficas

FOUCALT, Michel. As palavras e as Coisas. Capitulo I – “Las Meninas”. 1º Ed. Editora Martins Fontes. 1966.

JAPIASSÚ, Hilton; Marcondes, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3º Edição. Jorge Zahar Editor – Rio de Janeiro; 2001.

PALMER, Richard E. Hermenêutica. – Tradução de Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Edições 70 – Lisboa/Portugal: 1969. Págs. 167 a 196.

*Por Pedro Ferreira Nunes - Mestre em Filosofia pela UFT e Professor da Educação Básica na Rede Estadual de Ensino do Tocantins. 

sábado, 5 de abril de 2025

Conversas na madrugada : Meu vício

Por mais que John tentasse afastar-se de Luna, não conseguia. Quando ela surgia diante dele tudo que ele havia planejado para resistir á sedução dela ia por água abaixo. Para John tal relação era muito próxima da que um viciado tem com a cocaína ou outra droga qualquer – alguns minutos de prazer extremo e o resto do tempo de profunda depressão. O relacionamento com Luna terminantemente não fazia bem para John. Ela era uma droga pela qual ele era extremamente viciado. E por mais que ele tentasse superar este viciou, não estava conseguindo. Quando ele conheceu Suzy, e no auge de sua relação com ela chegou a pensar que Luna não fazia mais parte da sua vida, no entanto ele estava redondamente enganado – ele podia conhecer muitas mulheres, apaixonar-se por elas, mas era Luna a única com o poder de fazê-lo fazer coisas que ele não queria.

Muitas vezes John agia de forma dura com a Luna, tratava-a friamente. No entanto ela sabia que aquilo tudo era apenas da boca pra fora. Que quando ele se rendia mostrava-se o amante sensacional que era. Uma pessoa carinhosa e amorosa, inteligente, amigo e companheiro inseparável. John era uma das raras pessoas naquele lugar com quem você podia ter uma ótima conversa. Era um sonhador, o que não podia ser diferente sendo o aspirante a poeta que era. E o seu jeito diferente de ser fazia dele uma ótima companhia para todos ali. Quando Luna estava se sentindo sozinha, precisando de alguém que de fato lhe desse carinho, e não apenas pau como os outros caras com quem ela se relacionava. Não pensava duas vezes corria para os braços de John, pois ele era seu porto seguro. Onde podia se atracar com segurança após as aventuras que vivia.

- Preciso conversar contigo John.

- Quando?

- Agora, pode ser?

- Sim. Mas é só conversar mesmo né?

- Vamos para um lugar mais tranquilo.

- Ok.

John estava com seus amigos tocando violão, tomando cachaça e fumando tabaco. Era assim que eles passavam as frias noites lajeadense. Como também pensando em planos mirabolantes para mudar a cidade, planos que já mais sairiam do papel. Depois que Suzy decidiu afastar-se dele, ele também não pretendia reatar seu romance com Luna. Mas não quis resistir a conversar com ela. Mesmo imaginando o que Luna queria com ele.

- E então, como você esta? Dá ultima vez que nos falamos você me tratou tão mal, não quis nem conversa comigo.

- Eu ti tratei mal? Ora você some, depois aparece, dai diz que quer ficar comigo, depois me manda ir se ferrar, diz que sou ruim de cama. E ai fui eu que ti tratei mal?

- Ah, John você sabe que falei tudo aquilo só da boca pra fora. Só pra ti provocar por que você me tratou com a maior frieza, aliás, é assim que você tem me tratado ultimamente. E não sei o porquê disso. Já que a gente se gosta tanto.

- Você insiste numa estória que já deu o que tinha que dá. Por que não aceitarmos que o nosso relacionamento não tem futuro. Que ultimamente a gente só tem se magoado. Que a nossa paixão já não é mais como antes.

- Será mesmo? Acho que você só está falando isso da boca pra fora. Você é louco por mim que sei, eu sou louca por ti, pode não parecer, mas sou sim. A gente se dá tão bem quando você tira essa mascara de durão que não tem nada a ver contigo.

- A gente não dá mais certo como namorado. Não vou dizer que não é bom ficar contigo. O problema é depois quando você vai embora. Quando fico sozinho morrendo de saudades suas e você por ai com outros.

- John amor a dois sufoca. Nos lembremos dos ensinamentos do Raul – se eu ti amo e tu me amas, um amor a dois profana, o amor de todos os mortais... Às vezes a gente precisa dá um tempo um do outro para viver novas experiências com outras pessoas. O importante é quando a gente se reencontra a chama da nossa paixão reacende bem maior que antes. E também eu nunca ti proibi de ficar com outras, desde que não seja nada sério. Desde que você volte para mim.

- Eu não consigo viver assim Luna. E mesmo gostando de ti, eu prefiro abrir mão desse amor a viver em um relacionamento que não me faz bem. E quando em um relacionamento um dos dois não está contente é melhor terminar... Antes que vire ódio.

- Então o que você quer é ser o meu dono? Ter exclusividade sobre mim?

- Não, não estou ti pedindo isso.

- Ora como não. Isso que é um relacionamento tradicional.

- Eu não estou propondo uma relação de posse, mas sim de cumplicidade. Mas vejo que isso é impossível entre nós.

- Ok. John. A partir de hoje serei apenas sua. Vamos morar juntos, nos casar e ter filhos. Que tal?

- Não é assim não. As coisas não funcionam assim de uma hora para outra.

- Como não? Não é isso que você quer?

- Mas não assim do dia pra noite. A gente precisa estabelecer um processo de confiança entre nós.

- Você não confia em mim?

- Você tem me dado algum motivo para que eu ti dê confiança?

- Para ficarmos juntos temos que esquecer o que passou.

- Isso não. Temos que aprender com o passado, já que não podemos apaga-lo.

- Tá certo.

- E também você não pode prometer o que não pode cumprir;

- Então o que você quer?

John não soube responder a Luna. O fato é que ele já não sabia o que queria com ela.

Pedro Ferreira Nunes - é apenas um rapaz latino americano, que gosta de ler, escrever, correr e ouvir rock in roll.

domingo, 30 de março de 2025

Conto: Mais perto do inferno que do céu

Com uma canção da banda Bêbados habilidosos na cabeça e álcool nas veias, ele sai à noite pelas ruas à procura de aventura. O desejo de deitar com uma mulher era maior que o medo da criminalidade que assola os becos da cidade. E onde ter o que procurava senão nos braços de uma dama da noite.

Aquele ambiente não era estranho para ele, ainda que nunca havia estado num lugar assim. Como podia ser? Certamente era pelos filmes, pelos livros e pelas músicas que ouvia - que contava estórias daquele local e dos seus frequentantes. Dentre essas, o blues rock da banda Saco de Ratos e o blues da banda Bêbados habilidosos eram suas preferidas.

A noite estava só começando para ela. Mais uma noite longa que não sabia como seria. Se ia aparecer clientes, se seriam amáveis ou escrotos, se pagaria para ela umas doses de whisky com energético, se faria um programa, dois ou mais. Quanto mais melhor, pois significava dinheiro na conta. E quanto mais dinheiro melhor, as despesas suas não eram poucas.

Mãe solo de três filhos, um deles com apenas dois anos de idade. Já está na prostituição há uns bons anos. Mas como a maioria dali, sonha um dia sair daquela vida. Para tanto investe parte dos seus recursos e tempo num curso universitário. Para aguentar as longas jornadas no cabaré, sobretudo aos finais de semana, só regada a álcool. Especialmente whisky e energético - se o peão não tem muita grana, ela se contenta com cerveja. Ao contrário das suas colegas que marcam ponto ali, ela não se mete com a cocaína e nem com a maconha.

Ele chegou, pediu uma cerveja. Ela foi até ele e perguntou se queria companhia. Ele respondeu positivamente e lhe ofereceu um copo. Ela perguntou se ele autorizava um energético. Ele autorizou. Ela pediu música. Ele mandou ela colocar o que quisesse ouvir na máquina. Ele sorriu quando começou a ouvir as músicas que ela colocara. Ela quis saber por que. Ele disse que não era o tipo de música que costumava ouvir. Ela havia intuído desde de que ele chegara ali, não era o tipo de pessoa que frequentava aquele ambiente. Parecia inclusive um gringo. Ele sorriu e perguntou o nome dela.

-Aiko.

De fato ela lembrava uma japonesa. Só lembrava. Por que sua origem era bem brasileira. Ele sabia que era o nome de guerra (como dizem) dela. E não se importou com o fato dela não dizer nome verdadeiro. Pois afinal de contas não era ingênuo ao ponto de não saber o que estava acontecendo ali. Mas não precisava também ser desagradavel. Tratá-la como um objeto que estava ali para lhe servir. Ele não estava com pressa. Ainda que no outro dia tivesse compromisso. Mas se tivesse duas horinhas de sono seria o suficiente para estar pronto para o trabalho.

Ela percebeu que ele não estava com pressa. Então se colocou à disposição para ouvi-lo. Não seria o primeiro cliente que faria as vezes de uma psicóloga. Já havia perdido a conta de quantos homens haviam passado por ali querendo apenas falar das suas agruras. No final talvez nem o levasse para cama. Se desse lucro para o cabaré já era alguma coisa.

Ele não era um desses, tinha uma vida muito bem resolvida. Estava ali apenas para se divertir. Viver uma experiência nova. Sair da rotina. Ela percebeu. Percebeu inclusive que ele inteligentemente virara o jogo, pois logo era ela que estava falando das suas agruras. Ele tinha essa capacidade. Passava uma confiança e tranquilidade que fazia com que seus interlocutores se sentissem à vontade para falar da vida pessoal.

Boa conversa regada a cerveja. Assim a noite ia avançando. A música não ajudava muito, mas a companhia estava agradável. Agradável também eram os beijos dela. Ela sabia como seduzir. Ele não sairia dali sem fazer um programa. E ela faria de um jeito que ele se tornaria cliente. Ele lembrou de estórias de homens que tinham perdido tudo com prostitutas. Teve medo. Será que viciaria naquilo? Não. Era por demais racional para se deixar seduzir loucamente por aquela mulher e aquele ambiente. Nesse momento veio na sua cabeça um blues da bêbados habilidosos:

“Eu tô bem mais perto do inferno 
Do inferno que do céu
O único carinho que eu tive
Foi, foi de uma puta num bordel
Eu cansei, cansei de acordar sozinho 
Num quarto de hotel
Ao lado de uma garrafa vazia…”

Eles foram para o quarto e fizeram sexo. Depois se despediram com um abraço, um beijo e ele levando o número do celular dela. Num gesto de que aquela seria a primeira de muitas que voltariam a se encontrar.

Pedro Ferreira Nunes - é apenas um rapaz latino americano, que gosta de ler, escrever, correr e ouvir rock in roll.

terça-feira, 25 de março de 2025

Crônica: Miracema já não é mais a mesma

Chácara dos meus Avós
Os lugares não mudam. O que muda somos nós. Creio que é isso que quer dizer Rubens Alves quando diz que não devemos voltar a um lugar que tanto amamos esperando encontrá-lo da mesma forma de outrora. Ele dirá que iremos nos decepcionar pois o que queremos no fundo é encontrar com o tempo. E aquele tempo já não existe mais. A não ser na nossa memória.

Ao longo da nossa vida alguns lugares vão se tornando muito especiais para nós. À medida que a idade avança creio que aqueles da nossa infância vão ganhando mais relevo ainda. Pelo menos este é o meu caso. A ponto de se um dia o senhor do tempo vier propor um dia no passado em troca de uns 10 anos a menos de vida eu certamente optaria por um dia da minha infância. 

Esse dia muito provavelmente seria no final do ano quando toda a família se reunia na chácara dos meus avós maternos. Ou quando íamos para o Lajeadinho nos juntar à família de Dona Rosalina. Ou uma tarde na baixa preta quando chegávamos da escola e íamos jogar bola no campo de terra e voltávamos ensopados da chuvinha que dera.

Ah, o que foram aqueles dias, não posso descrever com palavras. Por mais que eu tente sempre faltará algo. Mas posso tentar resumir tudo numa palavra: vida. Era a vida se revelando em cada detalhe. Na preparação da comida, nos enfeites da árvore de natal cuidadosamente elaborada por Vovó. Nas brincadeiras, nos sorrisos, nos abraços.

“Eu era alegre como um rio
Um bicho, um bando de pardais
Como um galo, quando havia
Quando havia galos, noites e quintais…”

Esses versos do Belchior expressam fielmente o sentimento que traz as lembranças da minha infância.

O Lajeadinho já não existe, hoje está submerso pelo lago da Usina Hidrelétrica Luiz Eduardo Magalhães. A chácara sim. Mas já não é a mesma. Assim como a baixa preta. Miracema não é mais a mesma. A festa agropecuária, os festejos de nossa senhora de Fátima no bairro Correntinho. Não são mais as mesmas as festas juninas. O grupo império da baixa preta. O estádio castanheirão já não recebe nos seus gramados o saudoso duelo entre o Miracema Esporte Clube e o Tocantins Esporte Clube. Quanta dor sinto ao passar em frente as ruínas do Iracema Club palco de tantos carnavais. E o mercadão então. O que fizeram com o mercadão? A banquinha de revista na praça Derocy Morais. O lavacara.

Os meus primeiros anos no Colégio Estadual José Damascena Vasconcelos. Da professora Marlene. Nunca me esqueci da professora Marlene. Aí professora Marlene. Que bela era a professora Marlene. Foi a primeira das muitas professoras pelas quais me apaixonei. Meus colegas da escola primária. Por onde andam? Fernanda, Marcos, Patricia, Marcelo, Adriele, Priscila, Fatima. Já não me recordo de todos. Alguns deles ainda se recordam de mim? O menino tímido que buscava passar despercebido.

“Pedro, pedroca.
nariz de taboca.
Trocou a mulher
por um saco de pipoca”.

Dona Rosa gostava de declamar esse versinho para mim. Colocando o meu apelido de “Que troca”. Oh Dona Rosa. Saudades da senhora. Saudades de mamãe. De irmos lavar roupa na fonte. Na verdade, a meninada gostava mesmo era de tomar banho, lavar roupa era só um detalhe.

Hoje quando ando pelas ruas de Miracema sinto um certo estranhamento. Busco em cada esquina me reencontrar. Mas me lembro que eu já não sou eu. Como vou encontrar com algo que já não existe? Como doí Miracema, como doí.

Pedro Ferreira Nunes - é apenas um rapaz latino-americano, que gosta de ler, escrever, correr e ouvir rock n roll.

quinta-feira, 20 de março de 2025

Um diálogo entre Filosofia e Projeto de Vida a partir da obra A Caverna, de José Saramago

Imagine a seguinte situação: De repente aquilo ao qual você se dedicou como fonte de subsistência já não é mais útil para a sociedade. Quando se é mais jovem a situação não é tão traumática já que você pode aprender um novo ofício e se dedicar a ele. Mas de todo modo é preciso força de vontade para recomeçar e romper com os grilhões do modo de produção capitalista.

Essa situação hipotética é a premissa do romance “a caverna” do escritor português José Saramago. Na obra, Cipriano Algor é oleiro e produz utensílios de cerâmica (pratos, copos, xícaras entre outros), com a ajuda da sua filha (Marta), e fornece para o centro comercial da cidade. Enquanto seu genro Marçal Gacho trabalha como guarda neste mesmo local. Cipriano é viúvo e já passa dos 60 anos de idade. A idade avançada e a necessidade de sobrevivência se impõe de determinada forma que parece colocá-lo numa situação sem alternativas.

Cipriano recebe o aviso do chefe de vendas de que o centro comercial irá diminuir a aquisição dos seus produtos, podendo inclusive encerrar totalmente o contrato. O que faz com que o desejo de Marta e Marçal, de que vá morar com eles, quando o genro for promovido a guarda residente do centro comercial, se torne irreversível. É possível imaginar o quanto isso não é difícil para alguém que sempre morou num determinado lugar tendo herdado do pai, que herdou do seu avô, o ofício de oleiro.

Enquanto fica num compasso de espera, Marta apresenta uma ideia no qual ele se agarra com todas as forças. - E se ao invés de produzir utensílios cerâmicos de cozinha, produzissem outra coisa? Mas o que se só sabemos produzir isso? Questiona-se Cipriano. A filha diz bonecos para decoração. A princípio parece absurdo, mas logo eles se jogam nessa missão que se torna cada vez mais séria. Sobretudo quando apresentam a proposta ao chefe de vendas do centro comercial e este faz uma encomenda de 1200 peças.

Os problemas não serão poucos, fazendo-os se questionarem se conseguiram produzir os bonecos e entregar a encomenda. Por outro lado, a qualquer momento Marçal Gacho pode aparecer dizendo que foi promovido e terão que ir morar no centro. Com isso tanto esforço seria infrutífero. Outros dilemas vão surgindo para Cipriano como a possibilidade de um amor com uma viúva mais jovem que ele e a amizade com o cachorro Achado.

A forma como o José Saramago desenvolve a narrativa é fascinante e faz com que a gente se prenda na leitura esperando saber o que vai acontecer com esses personagens. Enquanto isso somos presenteados com reflexões filosóficas acerca da vida.

“A vida é assim, está cheia de palavras que não vale a pena, ou que valeram e já não valem, cada uma que ainda formos dizendo tirará o lugar a outra mais merecedora, que o seria não tanto por si mesma, mas pelas consequências de tê-la dito”.

No trecho acima o autor ressalta que há momentos em que o silêncio é melhor do que qualquer palavra. Não adianta discutir aquilo que já foi discutido. As coisas estão dadas, o que resta agora é agir. Por onde começar então? Pelo princípio, evidentemente. Mas ele nos lembra:

“o princípio nunca foi a ponta nítida e precisa de uma linha, o princípio é um processo lentíssimo, demorado, que exige tempo e paciência para se perceber em que direção que ir…”.

Pai e filha têm uma relação singular. Apesar da diferença de idade discutem em pé de igualdade. E é dessas discussões que coloca em confronto diferentes perspectivas sobre as coisas que colhemos ótimas reflexões:

“Terá que ler doutra maneira… cada um inventa a sua, a que lhe for própria, há quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir mais além da leitura, ficam pegados à página, não percebem que as palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para chegar à outra margem, a outra margem é o que importa”. Diz Cipriano. E Marta responde: “a não ser que esses tais rios não tenham duas margens, mas muitas, que cada pessoa que lê seja, ela, a sua própria margem, e que seja sua, e apenas sua, a margem a que terá que chegar”.

O título da obra vai para além do episódio que irá fazer com que o que parecia inevitável seja superado (a descoberta da caverna de Platão nas escavações de ampliação do centro comercial). Assim, como o filósofo grego, a narrativa de Saramago enfatiza todo o tempo a importância do conhecimento inteligível. Cipriano, Marta, Marçal e inclusive Achado (o cachorro), pensam. E por pensarem filosoficamente não aceitam o mesmo destino daqueles que estão na caverna.

Lendo essa obra me ocorreu o quanto é fundamental o diálogo entre filosofia e projeto de vida. Pois não é possível, na minha avaliação, pensar num projeto de vida sem reflexão. Do contrário, há o risco de cair num engodo que leva à frustração

- como é o caso do discurso de autoajuda proferido pelos sofistas de plantão (coaches).

Saramago em algumas entrevistas ressalta que nunca vivemos tanto na caverna de Platão como no contexto atual. E isso nos leva a fazer escolhas que nos torna prisioneiros dessa situação. Nesse sentido, é preciso pensar em projetos de vida que rompam com essa lógica. Para tanto, a filosofia é indispensável.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

sábado, 15 de março de 2025

Poema: Noites interioranas


Noites interioranas
Lembranças de tempos atrás.
Noites interioranas
Tempos que não voltam mais.

Seu Disomo prepara as tralhas
E vai para o rio pescar.
É noite enluarada
Os “moelas” vão passar.

Dona Eurides no girau
Prepara o que comer.
Curimatá fresquinha
Frita no óleo de dendê.

Dona Caetana na vazante
Alegre colhe feijão.
A colheita tá sendo boa
Melhor que no ultimo verão.

O Bida preparou a bucheira
Foi esperar cotia.
Lá no brejo do Anísio
Só volta no fim do dia.

Seu Josias subiu pros mares
Atrás dos cardumes de jaús.
Na pescaria passada
Não pegou nem baiacu.

Ei que lá vem dona Julia
Caminhando com seu bastão.
Trazendo na sua sacola
Estórias de assombração.

Seu Raimundo passou aqui
Trouxe doce de buriti.
Pense num doce gostoso
Como esse nunca vi.

Vamos brincar no terreiro
A lua tá tão bonita.
Pegar manga de leite
No quintal da Tia Dica. 

Quando raiar o dia
Vamos pra casa da Tia Gaida. 
Aprender o ABC
Para ser alguém na vida.

Já tá chegando agosto
É mês da padroeira.
Vai ter festa na cidade
E o forró é de primeira.

A caboclada se agita
Desce lá paro mercadão.
Comprar roupas novas
Para festa no sertão.

O sanfoneiro é de primeira
Vem das bandas das pedreiras.
Quando ele abre o fole
Dança a cidade inteira.

Abre o fole sanfoneiro
Que o povo que dançar.
Essa festa só acaba
Quando o dia raiar.

E assim segue a vida 
Nesse nosso interior.
Vida de muito trabalho
Mas também de muito amor.

Segue a vida e alguns se vão
Só nos restam as lembranças.
Da minha mocidade
Do meu tempo de criança.

Lembranças daqueles
Que aqui já não estão.
Hoje descansam em paz
Sementes plantadas ao chão.

Pedro Ferreira Nunes. Casa da Maria Lúcia. Lajeado-TO.