Essa situação hipotética é a premissa do romance “a caverna” do escritor português José Saramago. Na obra, Cipriano Algor é oleiro e produz utensílios de cerâmica (pratos, copos, xícaras entre outros), com a ajuda da sua filha (Marta), e fornece para o centro comercial da cidade. Enquanto seu genro Marçal Gacho trabalha como guarda neste mesmo local. Cipriano é viúvo e já passa dos 60 anos de idade. A idade avançada e a necessidade de sobrevivência se impõe de determinada forma que parece colocá-lo numa situação sem alternativas.
Cipriano recebe o aviso do chefe de vendas de que o centro comercial irá diminuir a aquisição dos seus produtos, podendo inclusive encerrar totalmente o contrato. O que faz com que o desejo de Marta e Marçal, de que vá morar com eles, quando o genro for promovido a guarda residente do centro comercial, se torne irreversível. É possível imaginar o quanto isso não é difícil para alguém que sempre morou num determinado lugar tendo herdado do pai, que herdou do seu avô, o ofício de oleiro.
Enquanto fica num compasso de espera, Marta apresenta uma ideia no qual ele se agarra com todas as forças. - E se ao invés de produzir utensílios cerâmicos de cozinha, produzissem outra coisa? Mas o que se só sabemos produzir isso? Questiona-se Cipriano. A filha diz bonecos para decoração. A princípio parece absurdo, mas logo eles se jogam nessa missão que se torna cada vez mais séria. Sobretudo quando apresentam a proposta ao chefe de vendas do centro comercial e este faz uma encomenda de 1200 peças.
Os problemas não serão poucos, fazendo-os se questionarem se conseguiram produzir os bonecos e entregar a encomenda. Por outro lado, a qualquer momento Marçal Gacho pode aparecer dizendo que foi promovido e terão que ir morar no centro. Com isso tanto esforço seria infrutífero. Outros dilemas vão surgindo para Cipriano como a possibilidade de um amor com uma viúva mais jovem que ele e a amizade com o cachorro Achado.
A forma como o José Saramago desenvolve a narrativa é fascinante e faz com que a gente se prenda na leitura esperando saber o que vai acontecer com esses personagens. Enquanto isso somos presenteados com reflexões filosóficas acerca da vida.
“A vida é assim, está cheia de palavras que não vale a pena, ou que valeram e já não valem, cada uma que ainda formos dizendo tirará o lugar a outra mais merecedora, que o seria não tanto por si mesma, mas pelas consequências de tê-la dito”.
No trecho acima o autor ressalta que há momentos em que o silêncio é melhor do que qualquer palavra. Não adianta discutir aquilo que já foi discutido. As coisas estão dadas, o que resta agora é agir. Por onde começar então? Pelo princípio, evidentemente. Mas ele nos lembra:
“o princípio nunca foi a ponta nítida e precisa de uma linha, o princípio é um processo lentíssimo, demorado, que exige tempo e paciência para se perceber em que direção que ir…”.
Pai e filha têm uma relação singular. Apesar da diferença de idade discutem em pé de igualdade. E é dessas discussões que coloca em confronto diferentes perspectivas sobre as coisas que colhemos ótimas reflexões:
“Terá que ler doutra maneira… cada um inventa a sua, a que lhe for própria, há quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir mais além da leitura, ficam pegados à página, não percebem que as palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para chegar à outra margem, a outra margem é o que importa”. Diz Cipriano. E Marta responde: “a não ser que esses tais rios não tenham duas margens, mas muitas, que cada pessoa que lê seja, ela, a sua própria margem, e que seja sua, e apenas sua, a margem a que terá que chegar”.
O título da obra vai para além do episódio que irá fazer com que o que parecia inevitável seja superado (a descoberta da caverna de Platão nas escavações de ampliação do centro comercial). Assim, como o filósofo grego, a narrativa de Saramago enfatiza todo o tempo a importância do conhecimento inteligível. Cipriano, Marta, Marçal e inclusive Achado (o cachorro), pensam. E por pensarem filosoficamente não aceitam o mesmo destino daqueles que estão na caverna.
Lendo essa obra me ocorreu o quanto é fundamental o diálogo entre filosofia e projeto de vida. Pois não é possível, na minha avaliação, pensar num projeto de vida sem reflexão. Do contrário, há o risco de cair num engodo que leva à frustração
- como é o caso do discurso de autoajuda proferido pelos sofistas de plantão (coaches).
Saramago em algumas entrevistas ressalta que nunca vivemos tanto na caverna de Platão como no contexto atual. E isso nos leva a fazer escolhas que nos torna prisioneiros dessa situação. Nesse sentido, é preciso pensar em projetos de vida que rompam com essa lógica. Para tanto, a filosofia é indispensável.
Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).
Nenhum comentário:
Postar um comentário