O fato de Bergoglio ter se tornado o maior líder espiritual dos católicos e ter transcendido esse espaço por sua postura consequente em defesa dos direitos humanos e de uma cultura de paz. Não o torna imortal - pelo menos, não fisicamente. Por que então tanta comoção diante do seu falecimento? Talvez porque esse evento nos mostra que ninguém, por mais importante que seja, escapará ao seu destino. E isso faz com que olhemos para nós mesmos, para vida que estamos levando. Para as memórias que deixaremos quando chegar a nossa hora - do nosso legado.
Diante da comoção da morte do Papa Francisco lembrei do Nietzsche. Estranho não?! Esse filósofo alemão talvez tenha sido quem fez a crítica mais contundente ao cristianismo - em especial a Igreja Católica. Aliás, é uma coisa que alguns críticos do Nietzsche não entendem, a sua crítica nunca foi direcionada ao Cristo, mas a instituição criada em seu nome. Nosso filósofo ressaltava a grandeza de Jesus Cristo, dizendo que ele havia sido o único cristão genuíno - que vivia conforme aquilo que pregava. Já dos seus seguidores não podíamos dizer o mesmo.
Mas analisando a trajetória do Papa Francisco (Mario Bergoglio) e a sua postura como líder espiritual dos cristãos católicos. Me pareceu que ele seria digno de ser considerado por Nietzsche como um cristão assim como Jesus. A coerência entre aquilo que ele defendia e as suas ações se complementavam de maneira rara. Isso certamente foi algo que mexeu com muita gente não-cristã. Que reconhece na figura do Papa Francisco mais do que um líder espiritual - o exemplo de um ser humano que conseguiu superar a vivência medíocre que nós nos submetemos.
Nietzsche também é um dos filósofos que nos ajuda a ver a morte com outros olhos. Mostrando como ela faz parte da nossa existência. Ele fala em morte perpétua para explicar, segundo Scarlett Marton, que não há vida sem morte e vice-versa. Compreender isso e agir a partir de suas convicções, sem remorsos, é o que deve ser feito.
Foi assim que fez o Papa Francisco. Por mais discordância que tenhamos em relação ao que prega o cristianismo/catolicismo, não podemos deixar de reconhecer isso. Ele viveu conforme seus ideais mostrando que discursos que não estão coerente com a prática não devem ser levados em consideração. Não era perfeito. Assim como nenhum ser humano é. Mas fora certamente um ser extraordinário. Como tantos outros que tivemos ao longo da história.
“Não tenham medo da vida, por favor! Tenham medo da morte, da morte da alma, da morte do futuro, do fechamento do coração. Disto vocês devem ter medo. Mas da vida não, a vida é bela. A vida é para ser vivida e para doá-la aos outros” (Papa Francisco)
Diversos especialistas apontam que a filosofia de Nietzsche sempre foi uma filosofia em defesa de uma vida ativa. E o que é a frase acima do Papa Francisco se não uma defesa intransigente da vida ativa. Se há algo que devemos temer não é a morte física. Pois esta é inevitável. Mas a morte do nosso espírito, ou seja, daquilo que acreditamos, da nossa capacidade de sonhar e de amar.
Talvez possamos fazer um paralelo entre a morte do Papa Francisco e a morte de Deus em Nietzsche, provocada por nós mesmos. Em sua obra A Gaia Ciência, nosso filósofo diz: “Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então”.
A comoção diante da morte do Papa Francisco tem uma dose de remorso por parte dos cristãos. Pois eles têm consciência, sobretudo os Cardeais, que não vivem uma vida coerente com o evangelho que pregam. Que a morte do seu líder possa contribuir para que mudem. O que acho difícil.
Por Pedro Ferreira Nunes - Mestre em Filosofia pela UFT e Professor da Educação Básica na Rede Estadual de Ensino do Tocantins.