quinta-feira, 18 de abril de 2019

Cidade Solidão: Inocentes e o papel da arte

O filósofo franckfurtiano Herbert Marcuse no final da década de 1960 chamava atenção para a importância da arte como a única linguagem capaz de resistir ao projeto autoritário de dominação de uma sociedade unidimensional, através da introjeção de uma racionalidade tecnológica. Ele dizia que “em um mundo em que o sentido e a ordem, o “positivo”, têm que ser impostos por todos os meios possíveis de repressão, as artes por si mesmas assumem uma posição política: a posição do protesto, da repulsa e da recusa”.

A banda de Punk Rock Paulista Inocentes que tem na sua trajetória clássicos como “Pátria Amada”, “Garotos do subúrbio”, “Miséria e Fome”, “Intolerância”, “Rotina” entre outras. Seguem essa linha nos seus trabalhos – do protesto, da repulsa e da recusa. E agora no seu mais novo material – o EP Cidade Solidão – não é diferente. Um trabalho que assume uma posição de protesto como fica evidente nas letras das canções “Donos das ruas” e “Fortalece”. Como também de repulsa e recusa ao establishment como em “Cidade Solidão”, “Escombros” e “Terceira guerra” cover de outra lenda do punk brasileiro, a banda Fogo Cruzado.

Desse modo, Cidade Solidão segue a pegada dos trabalhos anteriores da banda, mas com uma sintonia cada vez maior entre os quatro integrantes: Clemente  (voz e guitarra), Ronaldo (Guitarra), Anselmo (Baixo) e Nonô  (Bateria). Essa é considerada a formação clássica da banda que está tocando junta há quase 30 anos. 

Nesse novo trabalho a banda Inocentes reafirma a sua verve subversiva com refrãos como “Os donos das ruas! Os donos das ruas! Querem mais que diversão! Os donos das ruas! Os donos das ruas! Tem o futuro em suas mãos”. Diante disso poderiamos questionar: quem são os donos das ruas? As ruas tem dono? Bem, se as ruas tem um dono, esse dono é o povo. E mais ainda a juventude que é a sua vanguarda – que tem nas mãos o poder de resistir ao avanço da agenda conservadora tanto no Brasil como em outras partes do mundo. Mas para tanto precisa sair da bolha virtual em que se encontra e tomar as ruas para se fazer ouvir e poder dizer – “as ruas são nossas outra vez!!!”.

Em “Fortalece” temos uma bela mostra da capacidade poética do Clemente em compor letras belas. Já nas primeiras frases ele manda o recado: “Tudo aquilo que me faz chorar. Tudo aquilo que me faz sofrer. Fortalece”. Adiante a letra diz “o mundo vai girar, e tudo vai mudar. E nada mais será, como está.  Sua hora vai chegar “. Filosofando um pouco podemos dizer que ai esta um bom exemplo de como fazer uma leitura da realidade a partir do método dialético – que vê as coisas em movimento e não como algo estático. Ora se hoje estamos por baixo, não significa que não podemos mudar essa realidade.

A faixa que dá título ao EP “cidade solidão” não segue a mesma vibe das outras duas canções inéditas do disco. O recado da letra é um tanto pessimista: “Eu vejo o futuro, pelo retrovisor. Nosso tempo já se foi, ele acabou”. Aqui não há dialética, mas um grito de desespero diante de um mundo que parece está caminhando para um grande precipício – com os interesses individuais se sobrepondo aos interesses coletivos.  É compreensivo o tom pessimista, ainda mais quando analisamos a realidade que nos cerca. Por outro lado podemos dizer que essa canção nos alerta para condição de isolamento que nos encontramos nas cidades, sobretudo num contexto de domínio das redes sociais, condição essa que levará ao nosso fim, se não formos capazes de romper com essa solidão, que nos isola e nos enfraquece.

“Escombros” segue a linha pessimista da faixa anterior. “A Cidade perturbada. Fria, morta e fálica. Com seu véu de pó e fumaça. A felicidade nunca chega. Sempre está por vir. Persegui-se a vida, a vida inteira “. Essa é uma releitura de uma canção de autoria da própria banda, gravada em 1996, que saiu no álbum Ruas. E comparando com a canção anterior (cidade solidão) percebemos que a vida na cidade, sobretudo nos grandes centros, não mudou tanto assim, talvez para pior. “A fé louca e cega, da multidão desgovernada. Mas há quem não crê em nada. Nas carcaças de concreto. O passado deixa marcas. Há coisas que nem o tempo apaga”. A partir desse trecho da canção se compreende o por que a banda Inocentes decidiu regrava-lá. Ela descreve de forma inconteste o período que estamos vivendo no Brasil. 

Por fim os Inocentes nos brinda com um cover da banda Fogo Cruzado, “Terceira guerra “. Uma canção com um refrão que no fundo é um alerta: “o mundo vai acabar, o mundo vai acabar”. A canção composta na década de 1980, mostra-se atual, sobretudo quando vemos figuras da estirpe de um Donald Trump na presidência dos EUA e a ascensão da extra direita mundo afora, inclusive no Brasil com Bolsonaro.  Desse modo, se essa trupe continuar dando as cartas não é nenhum exagero falar que o mundo vai acabar. Ainda que para nós, a plebe.

Em Cidade Solidão os Inocentes seguem fiéis a sua trajetória de  não fazer concessão ao mercado – produzindo músicas descartáveis que são consumidas e rapidamente esquecidas. Musicas que servem para a imposição de uma visão positiva da sociedade, onde não cabe questionar e nem criticar, mas aceitar o domínio do status quo.  A banda Inocentes vai na contramão, chamando atenção para os aspectos negativos dessa sociedade e apontando para necessidade de resistência ao domínio do status quo. E com isso eles reafirmam a visão Marcuseana acerca do papel da arte como uma linguagem revolucionária com um imenso poder libertador das potencialidades dos indivíduos de resistirem ao domínio dessa sociedade unidimensional. 

Ainda em relação ao papel da arte, Marcuse defendia que esta poderia contribuir sobretudo no desenvolvido da consciência e da inconsciência para podermos ver as coisas que não víamos ou que não nos permitiam ver, falar e ouvir uma linguagem que não ouvíamos e não falamos ou que não são permitidas de ouvir e de falar. Podemos dizer portanto que Cidade Solidão, da banda punk paulista Inocentes, cumpre esse papel. Como deve ser todo trabalho artístico que não se rende ao domínio do capital e a racionalidade tecnológica. 

Pedro Ferreira Nunes – é “apenas um rapaz latino americano, sem dinheiro no Banco, sem parentes importantes e vindo do interior “.

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