Por Pedro Ferreira Nunes
Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela UFT.
Qual a origem da desigualdade entre os homens? É em resposta a essa questão feita pela academia de Dijon que o filósofo Jean-Jacques Rousseau compôs em 1753 esse discurso - onde ele defende que a origem da desigualdade está relacionada a perca da liberdade do homem ao sair do Estado de Natureza para o Estado Cívil.
Nascido em Genebra no ano de 1712, Jean-Jacques Rousseau é um dos filósofos modernos mais conhecidos e reverenciados na contemporaneidade, sobretudo no campo educacional, graças ao seu clássico “Emílio ou Da Educação” de 1762. Outra das suas obras não menos importante é “O Contrato social” também publicado no ano de 1762. Mas que no entanto não foram bem recebidas quando de suas publicações – condenadas tanto pela academia, por autoridades políticas e também pela igreja. E para evitar o cárcere Rousseau teve que mudar de país. Morreu em 1778, aos 66 anos, deixando importantes obras que nos ajuda a refletir sobre a nossa condição humana, entre elas esse “discurso sobre a desigualdade...”.
A chave para compreendermos essa obra está na passagem do Estado de Natureza para o Estado Cívil. Nessa linha o discurso é dividido em duas partes. Na primeira parte o foco de Rousseau é a compreensão do homem, pois segundo ele não é possível compreender a fonte de desigualdade entre os homens, sem se conhecer o próprio homem (2001, p. 9). E para conhecer o homem é preciso ir nas suas origens que está no Estado de Natureza. A segunda parte o foco do nosso filósofo será a questão da desigualdade entre os homens propriamente. Desigualdade que nasce quando “cada um começa a olhar os outros e a querer ser olhado por sua vez” (2001, p.33).
Para o nosso filósofo “a estima pública tem um preço. Aquele que canta ou dança melhor, o mais belo, o mais feio, o mais forte, o mais destro ou o mais eloquente, torna-se o mais considerado”. E ai temos “o primeiro passo para desigualdade e para o vício, ao mesmo tempo: dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo e, de outro, a vergonha e a inveja; e a fermentação causada por esses novos fermentos produziu, enfim, compostos funestas à felicidade e à inocência” (2001, p. 33).
Para Rousseau (2001, p.12) há duas espécies de desigualdade na espécie humana: a primeira é a “natural ou física, por que é estabelecida pela natureza, e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades de espírito, ou da alma; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou política, por que depende de uma espécie de convenção, e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens”. Em relação a primeira não há que se buscar a sua fonte, pois ela se auto explica. Também não há que tentar saber se há uma ligação essência entre essas duas desigualdades. Para o nosso filósofo o problema que ele se propõe a refletir nesse discurso é “de marcar no progresso das coisas o momento em que, sucedendo o direito à violência, a natureza foi submetida à lei” (2001, p.13). Para tanto é necessário ir ao Estado de Natureza e a partir daí remontar a história da humanidade desde os seus primórdios.
Primeira parte
Rousseau (2001) nos leva ao mundo onde impera a lei da natureza – onde o homem convive ao lado dos outros animais buscando satisfazer suas necessidades. Forjado pela natureza apenas aqueles que conseguem se adaptar a lei natural sobreviverá, tornando-se fortes e robustos. Os outros perecem, numa espécie de seleção natural. Ao forjar indivíduos fortes e robustos “com tão poucas fontes de males, o homem no estado de natureza não tem, pois, necessidade de remédios, e ainda menos de médicos” (2001, p. 16). Eis ai em resumo como nosso filósofo caracteriza o homem do estado de natureza do ponto de vista físico. Mas e do ponto de vista metafísico moral?
Em relação a essa questão o que o caracteriza inicialmente é sua capacidade, que compartilha com outros animais, de sentir, querer e não querer, desejar e temer. Isso “até que novas circunstâncias lhe causem novos desenvolvimentos [...] os únicos bens que conhece no universo são a sua nutrição, uma fêmea e um repouso; os únicos males que teme são a dor e a fome”. E a morte? Em relação a morte, Rousseau ressalta que “jamais o animal saberá o que é morrer, e o conhecimento da morte e dos seus terrores foi uma das primeiras aquisições que o homem fez afastando-se da condição animal” (2001, p. 18-19).
A partir daí Rousseau (2001) fala sobre o processo de aquisição da língua. Um processo que se deu ao longo de vários anos até que se fundasse um dialeto comum que exprimisse os anseios do homem e fosse compartilhado pelos demais. “Quantos conhecimentos foram necessários para encontrar os números, as palavras abstratas, os algarismos, e todos os tempos dos verbos, as partículas, a sintaxe, ligar as proposições, os raciocínios, e formar toda lógica do discurso” (2001, p. 23).
Um ponto importante ressaltado por Rousseau é a sua compreensão do homem no estado de natureza como um amoral. A esse respeito ele afirma “não tendo entre si nenhuma espécie de relação moral nem de deveres conhecidos, não podiam ser bons nem maus, nem tinham vícios nem virtudes”. A partir dessa compreensão o nosso filósofo deixa evidente o seu desacordo com Hobbes, que compreendia que o homem é mau por natureza. Para Rousseau “os selvagens não são maus, precisamente porque não sabem o que é ser bom. Com efeito, não é nem o desenvolvimento das luzes, nem o freio da lei, mas a calma das paixões e a ignorância do vício que os impedem de fazer o mal”.
Ainda nessa linha, Rousseau ressalta que “Hobbes não percebeu e que, tendo sido dado ao homem para suavizar em certas ocasiões a ferocidade do seu amor próprio ou o desejo de se conservar antes do nascimento desse amor, tempera o ardor que ele tem por seu bem-estar com uma repugnância inata de ver sofrer seu semelhante” (2001, p. 24). Essa repugnância inata se manifesta na forma de piedade. Nosso filósofo considera a piedade uma virtude natural do homem – uma virtude que ele define como o desejo de que alguém não sofra e que seja feliz. Não é portanto a razão que impede o homem de fazer o mal, pelo contrário, é através da razão que se comete muita atrocidade. Nessa linha ele nos diz: “há muito tempo que o gênero humano não mais existiria se a sua conservação tivesse dependido exclusivamente dos raciocínios dos que o compõem” (2001, p. 26).
Para concluir essa primeira parte o filósofo abordará uma das paixões que leva o homem a fazer o mal. Entre essas paixões ele enfatiza o amor – o amor que leva a dependência de um indivíduo de outro. Ao se transformar num ardor impetuoso, torna-se funesto aos homens. O que não ocorre no estado de natureza onde os homens são livres e independentes.
Segunda parte
Rousseau começa por nos falar da origem do estado civil – “o primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas bastantes simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil” (2001, p. 29). Nosso filósofo ressalta que se houvesse encontrado oposição teria se evitado muito mal. No entanto, ele compreende que a constituição da propriedade e por conseguinte da sociedade civil, não se deu da noite para o dia, mas como fruto de um longo processo.
E um primeiro passo nesse longo processo foi a formação da família, por ocasião de uma primeira revolução, “onde já nasceram, talvez, muitas rixas e combates [...] cada família se torna uma pequena sociedade tanto mais unida quanto o apego recíproco a liberdade eram os seus únicos laços” (2001, p. 31-32). A medida que o tempo passa vão abandonando a vida nômade, fixam num determinado lugar e buscam cada vez mais ter comodidades. E sem saber criam as primeiras fontes dos males que lhes afligiram.
Surgem idéias e sentimentos – o homem está cada vez mais domesticado e assim “cada um começa a olhar os outros e a querer ser olhado por sua vez, e a estima pública tem um preço. Aquele que canta ou dança melhor, o mais belo, o mais forte, o mais destro ou o mais eloquente, torna-se o mais considerado. E foi esse o primeiro passo para a desigualdade e para o vício, ao mesmo tempo: dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo e, de outro, a vergonha e a inveja; e a fermentação causada por esses novos fermentos produziu, enfim, compostos funestos à felicidade e à inocência” (2001, p. 33).
Para o nosso filósofo “ser e parecer tornaram-se duas coisas inteiramente diferentes; e dessa distinção, surgiram o fausto imponente, a astúcia enganadora e todos os vícios que constituem o seu cortejo” (2001, p. 35). E assim o homem que no estado de natureza era livre e independente, está cada vez mais submetidos a uma situação de servidão. E para se livrar dos grilhões produzidos por eles mesmos, o que faziam era cada vez mais se embrenhar num caminho sem volta arrastando outros tantos – “todos correram para as suas cadeias de ferro, acreditando assegurar a própria liberdade” (2001, p. 37).
A partir daí Rousseau passa a falar da constituição do poder político. E ele não poupa críticas a este. Sobretudo por que o poder político é constituído a partir da compreensão de que o homem tem uma tendência natural para servidão – o que contribui para o aumenta cada vez maior da desigualdade entre os homens.
De acordo com nosso filósofo “se seguirmos o progresso da desigualdade nessas diferentes revoluções, veremos que o estabelecimento da lei e do direito de propriedade foi seu primeiro termo, a instituição da magistratura o segundo, e que o terceiro e último foi a mudança do poder legítimo em poder arbitrário. De sorte que a condição de rico e de pobre foi autorizada pela primeira época, a de poderoso e fraco pela segunda, e pela terceira a de senhor e escravo, que é o último grau de desigualdade, o termo ao qual chegam finalmente todos os outros, até que novas revoluções dissolvem completamente o governo ou o aproximam da instituição legítima” (2001, p. 43-44).
Por que os cidadãos se deixam dominar por esse estado de coisas? Por uma cega ambição que os tornam submissos. Se fosse o contrário, se não abrissem mão da sua condição de indivíduos livres, nenhum político conseguiria domina-los. Rousseau ressalta que “a desigualdade se estende sem dificuldade entre as almas ambiciosas e covardes” (2001, p. 43). Isto é, o terreno propício para o cultivo da desigualdade é aquele onde não há liberdade. Onde não há liberdade prevalece a desigualdade. A falta de liberdade é portanto fundamental para a manutenção da desigualdade.
Para Rousseau “se vemos um punhado de poderosos e de ricos no pináculo das grandezas e da fortuna, enquanto a multidão rasteja na obscuridade e na miséria, é porque, sem mudar de estado, cessariam de ser felizes se o povo cessasse de ser miserável” (2001, p.44). Eis ai mais um traço repugnante dessa sociedade, a felicidade de alguns depende da miséria de milhares. Por essas e outras que nosso filósofo vê uma profunda diferença entre o homem selvagem (estado de natureza) e o homem policiado (estado civil) – “o primeiro só respira o repouso e a liberdade; só quer viver e ficar ocioso” o outro sempre ativo, “agita-se, atormenta-se sem cessar para buscar ocupações ainda mais laboriosas; trabalha até à morte, corre mesmo em sua direção para se pôr em estado de viver, ou renúncia á vida para adquirir a imortalidade; faz a corte aos grandes que odeia e aos ricos que despreza; Nada poupa para obter a honra de o servir; gaba-se orgulhosamente de sua baixeza e de sua proteção; e vaidoso de sua escravidão, fala com desdém daqueles que não têm a honra de a partilhar” (2001, p. 45).
Por essas breves linhas dá para perceber a atualidade do discurso do Rousseau sobre a origem da desigualdade entre os homens – desigualdade que se aprofundou e, olhando para o contexto atual, parece ter alcançado o seu ápice. E como alerta Rousseau onde há desigualdade, não há liberdade. Mas aparentemente isso não é problema para parcela significativa da população que não vê problema em abrir mão da liberdade em troca de conforto e de uma falsa segurança – falsa segurança pois nunca se estará verdadeiramente seguro sob a tutela de um poder arbitrário.
Ainda que se possa questionar a crença rousseauneane no bom selvagem, no homem bom por natureza. Na espécie de paraíso que ele concebe ao falar do estado de natureza e para explicar a sua concepção de homem. Não se pode ignorar as importantes reflexos que ele faz sobre as instituições criadas pelos homens que ao invés de propiciar o bem comum, acaba sendo uma armadilha para aprisiona-lo e por conseguinte aumentar mais ainda a desigualdade entre os homens.
Para finalizar
Rousseau é um dos filósofos (assim como Marx, Nietzsche e Foucault) que está na prateleira daqueles que tem uma escrita acessível, o que facilita sobremaneira a leitura, tornando-a prazerosa. Mesmo para aqueles que não tem muita familiaridade com textos filosóficos. E esse livro particularmente, mais ainda – que pode ser facilmente encontrado no formato pdf para download gratuito na internet. Não há portanto desculpa para não lê-lo. Que esse texto seja um estímulo a mais para que você minha cara e meu caro, possa fazê-lo.
“A liberdade é como esses alimentos sólidos e suculentos, ou esses vinhos generosos, próprios para nutrir e fortificar os temperamentos robustos a eles habituados, mas que inutilizam, arruinam, embriagam os fracos e delicados, que a ele não estão afeitos.”
Jean-Jacques Rousseau
REFERÊNCIA
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens. Disponível em: http://www.livrogratis.com.br.