“Eu não consigo entender,
que nessa imensa nação.
Ainda é matar ou morrer,
por um pedaço de chão.”
Pedro Munhoz
Em abril de 1996, 19 trabalhadores rurais sem terra foram assassinados pela Polícia Militar do Pará, quando ocupavam uma rodovia como parte de uma jornada de luta pela terra no Estado. O episódio que obteve repercussão Internacional ficou conhecido como “o massacre de Eldorado do Carajás. E a partir de então o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) passaram a realizar anualmente no mês de abril o “Abril vermelho” – uma jornada de luta nacional em memória daqueles 19 trabalhadores rurais assassinados na luta por reforma agrária – uma bandeira de luta que continua necessária.
Esse ano de 2020, devido as medidas de contenção da pandemia de COVID-19, o abril vermelho não poderá ser celebrado como nos anos anteriores – com ocupações, bloqueio de rodovias e marchas. Mas não podemos deixar de lembrar desse episódio que mostra a violência por parte do Estado brasileiro (á serviço das elites agrárias) contra o campesinato pobre e os trabalhadores rurais. Lembrar desse episódio se torna ainda mais importante devido o momento político em que vivemos – Com o país governado por um presidente que não só é contrário a reforma agrária, como também incentiva a violência contra as populações tradicionais e trabalhadores sem terra.
O discurso do Sr. Jair Bolsonaro contra as populações pobres do campo que ousam desafiar as elites agrárias do país não é novidade. Esse discurso há vários anos vem sendo usado para justificar a violência utilizada por parte dos “donos da terra” contra as populações marginalizadas no meio rural brasileiro. A novidade agora é o discurso partir de um agente público (do Estado), que deveria, teoricamente, ser um poder mediador no conflito. Tal postura trás consequências gravíssimas, a medida que funciona como uma espécie de carta branca para que se cometa crimes contra quem ousa desafiar o poder do latifúndio no Brasil.
Diante disso, chamo atenção para importância de compreendermos esse discurso, que não é o discurso de um indivíduo, mas de uma classe que busca manter e ampliar o seu domínio territorial no meio rural brasileiro e impor determinado modelo de desenvolvimento.
Nessa linha, uma autora que nos ajuda a compreender o discurso que permeia o conflito pela terra no Brasil, é a Luciana Miranda Costa, que na sua pesquisa de mestrado, que deu fruto ao livro “Discurso e conflito – Dez anos de luta pela terra em Eldorado do Carajás”, aborda essa temática.
No livro a autora busca através da análise do discurso de posseiros e fazendeiros, compreender as relações políticas e sociais no conflito por terras numa das regiões com maior índice de violência no campo (a região que ficaria famosa com a repercussão do massacre de 19 trabalhadores rurais sem terra). Para tanto a autora realiza entrevista com ambos os lados do conflito, e a partir de um referencial teórico de autores como o filósofo francês Michel Foucault, analisa o discurso dos atores envolvidos.
Costa (1999) ressalta que nessa perspectiva de análise a ênfase está no dizer e nas condições de produção desse dizer – devendo portanto levar em consideração o contexto em que o agente do discurso está inserido e a sua posição social. Desse modo o discurso revela quem é o indivíduo – que se constrói e constrói a imagem do outro através do discurso.
Lendo a tese da autora dois pontos me chamaram atenção nos discursos de posseiros e fazendeiros. O primeiro é a tentativa de justificar as ações de violência como forma legítima de autopreservação diante da ausência do Estado em cumprir o seu papel de mediador do conflito. E o segundo, que está relacionado com o primeiro, é a busca por convencer quem estaria com a razão (quem é a vítima e quem é o criminoso).
A partir daí, percebe-se que as posições das partes em conflitos são antagônicas. Os fazendeiros vêem os posseiros como criminosos que invadem propriedade privada. E os posseiros, por sua vez, dizem que criminosos são os fazendeiros que invadem terras devolutas – que portanto são públicas.
Diante de posições antagônicas, onde não se abre espaço para o diálogo, o que resta então é a lei da bala. E se tem bala de lá, tem bala de cá também. Só ai o Estado entra em cena – quando muito sangue já fora derramado. Mas até que tudo se apaziguasse foram dez anos de conflitos com muitas mortes – a maioria do lado dos posseiros, mas os fazendeiros também tiveram suas perdas.
Quem conhece minimamente a história da luta pela terra no Brasil sabe que a violência como instrumento para impor domínio sobre um determinado território não é uma exceção. É só analisarmos o relatório de conflitos no campo realizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) lançado anualmente. Essa violência aumenta na medida em que o Estado se ausenta dessas áreas ou então busca resolver o conflito como caso de polícia e não de política. E no livro “Discurso e conflito – Dez anos de luta pela terra em Eldorado do Carajás” podemos perceber o que acontece quando o Estado opta por intervir no conflito como se fosse um caso de polícia – a violência aumenta e o conflito se antagoniza mais ainda.
Olhando para o contexto atual, é o que temos observado – o aumento da violência no campo. Ainda mais diante de uma postura extremamente hostil, por parte do governo de extrema direita comandando o país, contra os povos pobres do campo. Esse discurso reforça as ações de violência dos “donos da terra” contra quem ousa desafiar o seu domínio. Esses agora se sentem seguros para impor suas vontades as populações pobres do campo, pois se sentem representados, e sabem que podem contar com a cumplicidade do governo federal.
Mas engana-se quem acredita que isso resolverá os conflitos por terra, que esse aumento da violência inibirá a luta por reforma agrária, pelo contrário. Como já dissemos mais violência gerará mais violência. Por enquanto tudo vai bem por que as mortes, por exemplo de indígenas, tem ocorrido apenas de um dos lados do conflito. Mas é bom não se iludirem achando que será sempre assim.
Pedro Ferreira Nunes – é Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins.
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