Ainda há ouvidos para o belo – foi isso que me veio á cabeça quando li a notícia que em plena pandemia de COVID-19 a nova música do Bob Dylan (Murder most foul) tinha chegado ao topo da billboard, fato inédito na sua carreira. “Murder most foul” não é uma música qualquer, ela tem quase 17 minutos de duração – o que vai na contramão do formato música-canção imposto pelo mercado, e que tem dominado essa indústria na contemporaneidade. Daí a minha surpresa diante do fato de que em tempos onde a mediocridade domina o meio musical haja ouvidos receptivos para “murder most foul”.
É verdade que se tratando de Bob Dylan não é nenhuma novidade canções que tenham uma longa duração. “Desoletion Row”, lançada em 1965, com quase 12 minutos de duração (11 minutos e 21 segundos), “Hurricane”, lançada em 1975, com quase 9 minutos de duração (8 minutos e 33 segundos) e “Like a Rolling Stone”, lançada em 1965, com seus 6 minutos de duração, são alguns exemplos. No entanto, nenhuma dessas se aproxima dos 16 minutos e 57 segundos de “Murder Most Foul”.
Além da duração outro elemento importante é o ritmo. Ao contrário das canções que citei acima (que têm uma pegada mais Rock in roll), “Murder Most Foul” segue uma linha mais sombria – uma espécie de trilha sonara de filme de catástrofe. Bob Dylan mais do que cantar recita. Recita versos sobre o assasinato do presidente norte-americano, John Kennedy. E as consequências a partir desse acontecimento.
“Era um dia escuro em Dallas/em novembro de 63./Um dia que viverá na infâmia./O presidente Kennedy estava... sendo levado ao matadouro,/como um cordeiro sacrificial”.
Assim ele começa a sua estória embalada por um piano, cordas e percussão ao fundo. E a partir daí é como se ele nos pegasse na mão e nos levasse a uma viagem pela cultura norte-americana através da música – uma viagem melancólica por “uma nação que teve a alma arrancanda e começou a entrar numa lenta decadência”. Uma decadência que acelerou a passos largos com a chegada de Trump ao poder, certamente.
“Nos últimos cinquenta anos,/eles procuraram por isso./Liberdade, oh liberdade,/Liberdade sobre mim./Eu odeio ti dizer, senhor,/mas apenas homens mortos são livres...”.
É certamente uma espécie de canto torto, um a palo seco, diria Belchior. Por tanto é de se admirar que uma obra dessas tenha encontrado tantos ouvidos receptivos.
Tal fato talvez seja explicado pelo momento de isolamento pelo qual estamos passando devido a pandemia de COVID-19. O isolamento nos devolveu o tempo que nos é roubado pelo capital. Tempo que é fundamental para podermos apreciar uma canção como “Murder Most Foul”. Enfatize-se aqui o termo apreciar, o qual oponho a consumir. Pois estamos falando de uma obra de arte daqueles que devem ser apreciadas. E apreciar algo exige de nós uma atenção exclusiva.
Ainda nessa linha, o momento que estamos vivendo nos deu a possibilidade de voltarmos para o nosso interior e refletirmos – Refletirmos sobre a vida, sobre a solidariedade, sobre o conhecimento, sobre a política entre outras questões. E essa canção do Dylan acaba contribuindo nesse processo de reflexão.
Por outro lado, talvez a minha surpresa seja pelo fato de que o meu olhar parte de uma realidade onde o que domina é a chamada música “sertaneja” (com suas letras descartáveis contando sempre a mesma estória). Nessa realidade, certamente, Dylan não obteria o êxito que alcançara chegando ao top 1 da Billboard. Para se ter uma ideia veja quais são as lives de artistas mais assistidas no Brasil nesse período de isolamento. Olhando para nossa realidade, é de fato impressionante vê a receptividade a “Murder Most Foul” – o que mostra que a verdadeira arte e os verdadeiros artistas ainda resistem. E é justamente a resistência que caracteriza os grandes artistas como Bob Dylan.
Para o filósofo Adolfo Sánchez Vázquez (2010) “quem diz criação diz então rebelião” na medida em que não se sujeita aos interesses de uma sociedade que banaliza as relações e coisifica os seres humanos. Desse modo, o artista que não abre mão da sua liberdade de criação, atua sobretudo no sentido de escapar da coisificação da existência. Por isso a arte é necessária, pois ela é, de acordo com Vázquez, “um dos caminhos mais valiosos para reconquistar, testemunhar e prolongar a verdadeira riqueza humana”, sobretudo em tempos onde estamos ameaçados mais do que nunca pela desumanização.
É desse tipo de arte que se trata a canção “Murder most foul”, por isso da nossa felicidade diante da boa receptividade por parte do público. Por isso da minha felicidade em poder falar – ainda há ouvidos para o Belo! Pena que artistas como Bob Dylan estão cada vez mais escassos.
Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins.
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