quarta-feira, 20 de maio de 2020

O conto “o matadouro” e a violência como método de governo

A atual situação política no Brasil me fez recordar o conto “o matadouro” escrito no século XIX pelo escritor argentino Esteban Echeverría. Nessa importante obra da literatura latino-americana podemos perceber para onde caminhamos quando a violência se torna método de governo – todos os conflitos são resolvidos não por uma discussão racional mas pela violência.

Ao descrever esses conflitos Echeverría ressalta que “a cena representada no matadouro era para ser vista, não escrita”. Não sendo possível ele nos legou essa narrativa na qual podemos imaginar a cena que vai se tornando real na medida que olhamos para o contexto político que estamos vivendo hoje no Brasil. Assim, ele a descreve:

“De um lado, dois rapazes se adestravam no manejo da faca, trocando horrendas cutiladas e espadeiradas; do outro, quatro já adolescentes, discutiam a cutiladas o direito à tripa gorda e ao mondongo que roubaram de um açougueiro; e não longe deles um bando de cachorros, já magros pela forçada abstinência, peleava da mesma maneira para saber com quem ficaria um fígado envolto em lama”.

Nessa cena podemos perceber o homem e  o cachorro reduzidos ao mesmo patamar. O homem quando decide resolver os conflitos políticos e sociais através da violência acaba se rebaixando a condição de um cachorro. Echeverría diz que era assim que as coisas funcionavam no seu país sob a ditadura do sangüinário Rosas. E aqui está o ponto Central para se compreender o conto “o matadouro” – a situação política na Argentina nesse período. 

Mais do que relatar os acontecimentos de um certo dia num matadouro em Buenos Aires, Echeverría denúncia a situação política no seu país marcado pela perseguição e violência do grupo no poder contra os opositores. Desse modo ao mesmo tempo que ele fala do matadouro como o lugar onde se sacrificavam os gados que alimentavam o terço da população que tinha o privilégio de comer carne naquela cidade. Ele também estava se referindo ao seu país dividido politicamente entre federalistas e unitários. 

“O aspecto do matadouro, a distância, era grotesco, cheio de animação. Quarenta e nove reses estavam estendidas sobre suas peles, e cerca de duzentas pessoas pisavam o solo de lama regado com o sangue de suas artérias. Ao redor de cada rés se sobressaía um grupo de figuras humanas de tez e raça distintas”.

Echeverría começa falando da situação de calamidade em Buenos Aires com a abstinência de carne. Situação que se agrava com as chuvas torrenciais que derrama sua fúria sobre a cidade impedindo o funcionamento do matadouro. A igreja se coloca a favor da abstinência sobretudo por se tratar do período de quaresma. E vê as chuvas como um castigo aos pecadores que zombam da fé. Do outro lado os médicos alertam “que, se a carência de carne continuasse, metade da população perderia os sentidos por estarem os estômagos acostumados à sua seiva animadora”. Ele continua: 

“Era de notar o contraste entre estes tristes prognósticos da ciência e os anátemas lançados dos púlpito pelos padres contra toda espécie de nutrição animal e promiscuidade... originou-se daí, uma espécie de guerra interna entre os estômagos e as consciências”.

Com a chuva indo embora e os prognósticos por parte da igreja acerca do fim do mundo não se realizando e com o surgimento de alguns tumultos nos quais o governo enxergava o dedo de revolucionários. Por mais acordo que “o restaurador” (como era denominado o ditador) tinha com a igreja, decidiu-se por uma exceção – matar 50 novilhos para alimentar os velhos e as crianças. 

Seria mais um dia de matança como outro qualquer se não fosse o fato de que o último novilho a ser sacrificado era na verdade um touro – coisa que era proibida por ali. Mas diante da escassez de carne o fiscal responsável deixou passar. O touro resistiu como pode mas não teve um destino diferente dos outros. Não conseguiu escapar da fúria do Matasiete – ídolo daquela gente pela fama de ser matador de unitários.

“Está emperrado e arisco como um unitário...

Ao ouvir esta palavra mágica todos, a uma só voz, exclamaram:

- Morram os selvagens unitários!

- Levem os f... da p... para o vesgo.

- Sim, para o vesgo, que é homem de c... para pelear com os unitários. O matambre para o Matasiete, degolador de unitários! Viva o Matasiete!”

Eis ai um lugar governado pela violência, a violência é a resposta para tudo. Não há diálogo pois o outro é visto como um selvagem. Sendo um selvagem não tem alma e se não tem alma pode ser exterminado. Nesse lugar quanto mais violento for, mais poder terá perante os demais. Alguns podem achar que é apenas discurso e por tanto se deve relativizar algumas declarações. Não vêem ou não querem enxergar o caminho perigoso que estamos seguindo quando aceitamos como normal o culto a torturadores e outros criminosos.

“Em dois tempo, o maldito touro foi esquartejado e pendurado na carreta. Matasiete colocou o matambre sob a pele de suas provisões e se preparou para partir. A matança estava concluída às doze, e a pequena populaça que a presenciou até o fim se retirava em grupos a pé e a cavalo, ou puxando a cilha de alguns volumes de carne”.

Mas a história não acaba aí. Para encerrar, Echeverría nos mostra do que essa gente é capaz quando não encontra limite.

De repente um açougueiro avistou ao longe um jovem vindo á cavalo e imediatamente alertou os demais dizendo se tratar de um unitário. Daí não é difícil imaginar o destino daquele pobre miserável que caíra na mão daquela corja, que tinha como herói Matasiete.

“Matasiete era homem de poucas palavras e muita ação. Tratando-se de violência, de agilidade, de destreza no machado, na faca ou no cavalo, não falava, agia... – Viva Matasiete! Exclamou toda aquela populaça, caindo em tropeu sobre a vítima como urubus-caçadores rapaces sobre os ossos de um boi devorado pelo tigre”.

Falando do nosso contexto político atual, virou praxe as reações indignadas, através de notas públicas e declarações em redes sociais, contrária as declarações do Sr. Jair Bolsonaro. Sinceramente não sei se fico mais indignado com o que diz o presidente ou com essas reações. Por acaso esperavam outra postura de alguém com todo o histórico que tem o Sr. Bolsonaro? Não sejamos tão ingênuos assim. Não esperemos uma postura democrática de alguém que cultua a ditadura militar e que tem como herói os mais sanguinários ditadores que pisaram o continente americano.

É preciso mais do que notas públicas e declarações indignadas nas redes sociais para barrar o projeto de nação que essa corja no poder tem em mente. Se não essas reações acabam servindo apenas como álibi para justificar os ataques a democracia – o governo Bolsonaro se coloca como vítima, como alguém que está sendo perseguido por desafiar o “sistema”. Com isso inflama no seu exército de seguidores o ódio contra qualquer um que ousa contrapo-ló. E o método de ação desses seguidores não é outro se não a violência – de início no ambiente virtual. Mas enganasse quem acha que parará por ai. Pois quando a violência se torna um método de governo o destino da nação não será outro se não se transformar num matadouro. 

Em “o  matadouro” Esteban Echeverría nos alerta: “naquele tempo, os açougueiros devoradores do matadouro eram os apóstolos que propagava, empunhando vara e punhal, a federação do ditador Rosas, e não é difícil imaginar que federação sairia de suas cabeças e cutelos”. Hoje no Brasil temos um governo que tem como apóstolos milicianos (que são uma espécie de açougueiros de gente), e não é dificil imaginar o tipo de nação que querem construir.

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário