Quando falamos em ação estamos no terreno da moral. Este é um tema clássico dentro do pensamento filosófico. E a compreensão do que é agir moralmente vai mudando ao longo da história como reflexo das mudanças sofridas pela sociedade. Desse modo, dependendo da perspectiva filosófica a questão moral terá uma determinada resposta. Por exemplo, na perspectiva clássica (socrática/platônica e Aristotélica) é agir virtuosamente. Já na modernidade Kant defende uma perspectiva imanente onde agir moralmente é um dever. Não vamos adentrar nessa questão. Nos interessa aqui dois pontos: Primeiro, a moral como reflexo dos nossos costumes. Segundo, a moral como construção histórica.
No conto “Numa e Ninfa” temos um casal que vive de aparência. Ele um bacharel de Direito Medíocre que se torna Juiz e depois deputado – graças a influência da família dela – foi exatamente por isso que ele lutou por esse casamento. Já ela por falta de alternativa melhor. Como deputado não era menos medíocre. Até que numa determinada ocasião, graças a ajuda dela, conseguiu mudar a visão da sociedade sobre ele. Ela escrevia os seus discursos, ele decorava e repetia. Tornou-se uma referência. Enquanto isso na intimidade sua esposa mantinha um caso com um primo. Ao descobrir o fato não pensou duas vezes – além do escândalo público seria o fim da sua carreira política. Então preferiu o silêncio. Temos assim uma relação movida pela mentira e a traição – que não são problemas desde que seus interesses não sejam contrariados. No caso dele, ser um político respeitado graças aos discurso escrito por ela.
“O homem que sabia Javanês” é um clássico do nosso autor. Sem dúvidas um dos seus textos mais conhecido. Figura entre os melhores contos da América Latina, segundo a Coletânea homônima de 2008 organizada pelo Flávio Moreira da Costa. Na estória o personagem principal lê num anúncio de jornal que estão precisando de um Professor de língua Javanesa. Mesmo sem saber nada ele se candidata para vaga. Estuda um pouco acerca do idioma, o suficiente para ludibriar as pessoas. Na verdade foi a falta de conhecimento dos demais que o fez chegar aonde chegará. No final ao convidar o seu interlocutor para se tornar um bacteriologista eminente, é como se disse, nesse país você pode ser o que quiser. Não por mérito, mas pela ignorância dos demais. Aqui temos um sujeito que tem na mentira uma aliada importante. Essa não é um problema desde que eu alcance os meus interesses.
Lima Barreto volta a sua carga crítica ao ser humano em geral, mas as pessoas do interior recebem uma carga maior. De certo modo isso é reflexo de uma mentalidade conservadora que encontramos nessas localidades – e pela sua origem interiorana ele deve ter sentido isso na própria pele. Lima Barreto percebeu que os conservadores se caracterizam por um moralismo extremado – e isso o incomoda sobre maneira. Pois o moralismo significa um comportamento patológico – onde o discurso e a ação estão separados. Um bom exemplo é o conto “O feiticiero e o deputado”.
Um homem se muda para uma cidade interiorana, compra uma casa e passa a se dedicar a horticultura. Quem vive no interior sabe bem o impacto da chegada de algum estranho. Logo o nosso personagem recebeu a alcunha de feiticiero. Lima Barreto com seu sarcasmo afiadissimo escreve: certa vez a ativa policial local, em falta do que fazer, chamou-o a explicações. Não julguem que fosse negro. Parecia até branco e não fazia feitiços”. Mas não teve jeito, contínuo sendo considerado um feiticeiro e alvo de diversas especulações que certamente o fazia sofrer. Mas nada que o fizesse partir. Até que um dia um deputado visitando a cidade foi convidado por correligionários a conhecer a casa do feiticiero. Chegando lá reconheceu aquela figura – que tinha cido seu colega. Bastou isso para que a visão de todos ali mudasse – aqueles que o mau dizia logo mudaram o discurso. Temos aqui a hipocrisia como elemento importante – a hipocrisia é uma das característica dos moralistas.
Continuamos no interior, agora na cidade de Tubiacanga. Estamos falando do conto “Nova Califórnia” – mais uma obra prima desse grande autor. Aqui temos mais um personagem que se muda para uma cidade interiorana causando um grande alvoroço. Ao contrário do conto anterior, nesse todos sabem quem é a figura – um químico famoso com trabalhos publicados em diversas revistas científicas. De modo que ao invés de suspeitas o que ele conseguiu foi admiração. Vivendo isolado, se dedicando as suas pesquisas – aquilo lhe era indiferente. Certo dia aparece na farmácia causando o espanto de todos ali. Chama o farmacêutico em particular e lhe fala de uma grande descoberta que fizera (transformar osso em ouro) e queria que o farmacêutico juntamente com mais duas testemunhas presenciasse o experimento. O que acontece a partir daí reflete muito bem o moralismo dominante na nossa sociedade.
O químico desapareceu de Tubiacanga do dia para noite. O que também começou a desaparecer foram os ossos dos mortos do cemitério local. Esse segundo fato revoltou a todos. Ora, para uma cidade conservadora (e cristã) era um sacrilégio violar o descanso dos mortos – um discurso que mudou totalmente quando descobriram quem eram os ladrões de ossos e a que se destinava. A guerra que se estabeleceu a partir daí na busca por ossos é ao mesmo tempo cômico e trágico.
Lendo os contos do Lima Barreto não pude deixar de notar semelhança com o Bolsonarismo. Para entendermos o fenômeno do Bolsonarismo é importante compreender que ele não se deu da noite para o dia – E nem que se encerrará após uma derrota eleitoral. Tal fenômeno é a expressão de uma moralidade patológica com raízes históricas na nossa sociedade como bem podemos observar a partir da leitura dos contos do Lima Barreto.
Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. Atualmente é Professor da Educação Básica no CENSP-Lajeado.
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