quarta-feira, 10 de abril de 2024

Sobre os afetos e a importância da sua compreensão

O que faz com que os indivíduos ajam de uma determinada forma, em situações e contextos determinados? Eis um problema que diversos pensadores buscaram responder ao longo da história. A partir dessas reflexões uma questão chama atenção: O poder dos afetos – uma questão que se tornou um ponto central nas diferentes teorias no campo da ética. 

Antes de falarmos do poder dos afetos, precisamos defini-los. Salientando que em Filosofia nem sempre há uma única compreensão de determinados conceitos. Desse modo optaremos de início pela definição dada pelo filósofo holandês Baruch Espinoza, que compreende afetos como (2014, p. 38) “afecções do corpo que aumentam ou diminuem, ajudam ou limitam, a potência de agir deste corpo e ao mesmo tempo as ideias destas afecções”.

A partir dessa definição percebemos que existem afetos que nos fazem bem, e outros que nos fazem o contrário. Desse modo devemos agir buscando conservar os afetos que aumentam ou ajudam a nossa potência de agir e destruir aqueles que limitam ou diminuem a nossa potência de agir. Que afetos seriam esses? 

De acordo com o nosso filósofo existem três afetos primários, a saber: Alegria, Tristeza e Desejo. Sendo que é a partir deles que se originam os demais, como por exemplo, o amor, o ódio, a esperança, o medo entre outros. 

As afecções que derivam da tristeza seriam aquelas que diminuem ou limitam a nossa potência de agir, já as que se originam da alegria ajudam ou aumentam a nossa potência de agir. E as afecções originadas do desejo também são da mesma natureza, por exemplo, a audácia é apontada pelo nosso filósofo como (2014, p. 68) “o desejo que leva alguém a fazer algo correndo um perigo que seus iguais teriam medo de suportar”. O contrário da covardia, “que se diz de alguém cujo desejo é limitado pelo temor de um perigo que seus iguais ousam suportar”. Desse modo percebemos que o primeiro seria um desejo que ajuda ou aumenta a nossa potência de agir, e a covardia seria o contrário. 

É importante ressaltar que para Espinoza mente e corpo não são substâncias separadas. Pelo contrário, pois segundo o nosso filósofo (2014, p. 41) “a primeira coisa que constitui a essência da mente é a ideia de um corpo existente em ato”. Desse modo mente e corpo são unos. Uma compreensão que o afastará não só do racionalismo do filósofo francês Descartes, como também da ética cristã - que defendiam uma visão dualista em que mente e corpo eram substâncias separadas, sendo que a mente deveria comandar o corpo. Chamamos atenção para esse ponto pelo fato de que a compreensão que o nosso filósofo tem acerca de determinados afetos, é diferente da compreensão que a cultura ocidental, fortemente influenciada pelo cristianismo, tem. Um exemplo é a respeito da Esperança, que veremos mais à frente.

Antes de Baruch Espinoza, Aristóteles no período clássico, também buscou compreender os afetos e apresentou uma definição dos mesmos. Para o filósofo grego afetos são sentimentos acompanhados de prazer ou dor. Logo podem provocar bons ou maus encontros.

Aparentemente pode se pensar que a compreensão acerca dos afetos Aristotélica vai na mesma linha da Espinozana. Mas não é bem assim. Para Aristóteles a classificação de uma paixão entre boa ou má não se dá a priori como em Espinoza. Mas sim a partir dá forma que a sentimos. O que significa dizer que o problema não é o afeto, mas o modo como somos afetados. Por exemplo, em relação a cólera, para Aristóteles (1991, p. 33) seria considerado mal “se a sentimos de modo violento ou demasiado fraco, e boa se a sentimos moderadamente”.

Um aspecto importante na compreensão do Aristóteles acerca dos afetos é que estes fariam parte da nossa natureza. E sendo parte da nossa natureza não tem como nega-los. Pois (1991, p. 34) “sentimos cólera e medo sem nenhuma escolha da nossa parte”. Mas se não temos esse poder de escolher se seremos afetados ou não, e por quais afetos, temos condição de modera-los. E é nesse ponto que tanto a perspectiva Ética de Aristóteles como do Baruch Espinoza entra em concordância, isto é, ambos defendem que é possível moderar – agindo racionalmente – as afecções. Aristóteles dirá (1991, p. 36),


Tanto o medo como a confiança, o apetite, a ira, a compaixão, e em geral o prazer e a dor, podem ser sentidos em excesso ou em grau insuficiente; e, num caso como no outro, isso é um mal. Mas senti-los na ocasião apropriada, com referência aos objetos apropriados, para com as pessoas apropriadas, pelo motivo e da maneira conveniente, nisso consiste o meio-termo e a excelência característica da virtude (ARISTÓTELES, 1991, p. 36).


Baruch Espinoza por sua vez salienta que sem conhecer a origem e natureza dos afetos será impossível agir de forma racional. Para o filósofo holandês antes de jugarmos as ações dos homens a partir das suas afecções, devemos sim buscar compreendê-los. 


Nada há que possa ser atribuído a um vício da natureza, pois a natureza é sempre a mesma e sua virtude e potência de agir são sempre em qualquer lugar as mesmas, isto é, as leis e regras da natureza, segundo as quais tudo acontece e passa de uma forma a outra, são as mesmas sempre e em qualquer lugar (ESPINOZA, 2014, p. 38).  


A partir da análise do que Aristóteles e Baruch Espinoza falam sobre os afetos podemos fazer algumas conclusões: Primeiro, que estamos falando de algo que faz parte da natureza. E como parte da natureza que somos não podemos escolher ser afetados ou não por eles. Segundo, o modo como somos afetados pelos afetos determinam as nossas ações. Isto é, se serão ações virtuosas ou viciosas. Terceiro, é possível agir evitando, ou moderando, os afetos que nos proporcionam maus encontros. Ou seja, que limita ou diminuem a nossa potência de agir. Quarto, controlar os afetos, racionalmente, é agir eticamente. 

Dito isso, temos então a visão do filósofo brasileiro Vladimir Safatle, que digamos, não está preocupado em apresentar uma nova teoria sobre a origem e natureza dos afetos. Também não está preocupado em saber como os afetos determinam as ações dos indivíduos na sociedade. Mas sim com o problema de que os afetos que circulam numa determinada sociedade definem o modo de vida nessa sociedade. Tal compreensão é importante, sobretudo se se pretende buscar uma mudança. Dessa forma a leitura do filósofo se afasta um pouco da questão ética e se aproxima da política. Cabe, no entanto, ressaltar que em Filosofia ética e política estão intrinsicamente ligadas.

Para Safatle (2015, p. 15-16) normalmente a sociedade é compreendida como “um sistema de normas, valores e regras que estruturam formas de comportamento e interação em múltiplas esferas da vida”. Tal compreensão não é equivocada. No entanto ele salienta que além de normas explicitas existem as implícitas - que estão sempre em conflitos. Desse modo se faz necessário compreender a sociedade a partir da sua subjetividade, dos afetos que circulam no seu seio. Nosso filósofo salienta que (2015, p. 16) “há uma adesão social construída através das afecções. Nesse sentido, quando sociedades se transformam, abrindo-se à produção de formas singulares de vida, os afetos começam a circular de outra forma”. 

Percebemos que assim como em Aristóteles e Espinoza, em Safatle há uma defesa da necessidade de se compreender os afetos a partir de uma perspectiva racional. E ainda mais, utilizar o seu poder para transformar uma determinada realidade...

Pedro Ferreira Nunes. In. OS AFETOS QUE CIRCULAM ENTRE OS MUROS DA ESCOLA: A Importância da Ética para Promoção dos Direitos Humanos, 2021. Trecho do artigo apresentado como requisito para conclusão da Especialização em Filosofia e Direitos Humanos. 

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