“Nós sobrevivemos”. Essa é a mensagem final do documentário “não é permitido” que apresenta um recorte da ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), mais especificamente acerca da censura promovida pelo regime contra artistas do movimento punk. Em tempos onde voltamos a flertar com o autoritarismo, compreender esse momento da nossa história é fundamental. Ainda mais por parte daqueles que estavam à margem da sociedade na periferia das grandes cidades.
O documentário é dirigido por um quarteto: Fernando Calderan, Fernando Luiz Bovo, Matheus de Moraes e Renan Negri. E como um disco punk temos uma narrativa breve (34min). E conta com a participação de ícones do gênero: Jão (Ratos de Porão), Mao (Garotos Podres), Clemente (Inocentes), Ariel (Invasores de Cérebro), Vlad (Ulster), Pierre e Val (Cólera). Que por meio de suas narrativas nos dão uma ideia do que enfrentaram, conseguindo no entanto perseverar sobre a censura e o regime.
Mas uma fala do Ariel ficou na minha cabeça - a de que a censura nunca acabou. E se formos analisarmos bem ele tem toda razão. É fato que não temos mais um departamento do governo dizendo o que pode e o que não pode em relação a expressões artísticas como a música. Mas é evidente que determinados artistas não têm o mesmo espaço que outros. Por exemplo, não veremos uma banda como Ratos de Porão tocando numa rádio comercial ou num programa dominical na tv aberta.
Isso vai na linha da crítica Marcuseana a sociedade contemporânea onde ele revela o caráter autoritário desta por meio da imposição (sem o uso da força) de uma racionalidade tecnológica criando “um universo verdadeiramente totalitário no qual sociedade e natureza, corpo e mente são mantidos num estado de permanente mobilização para a defesa desse universo".
Nesse contexto, uma arte libertária como o punk tem que ficar à margem. Pois o seu discurso não serve ao status quo. Pelo contrário. Como podemos perceber numa fala do Pierre quando ele fala sobre a sua transformação a partir do punk.
Outra fala que me chamou atenção foi a do Jão (Guitarrista e membro fundador do Ratos de Porão) sobre as temáticas que as letras censuradas abordavam. Enquanto alguns artistas buscavam se expressar por meio de metáforas. Os punks colocavam o dedo na ferida. Com a fúria e agressividade do gênero. Um dos exemplos é a letra de Corrupção:
A corrupção está acabando com a Nação
E todo mundo está fingindo ser irmão
A sociedade pensa que nós somos vagabundos
E que só eles vão conquistar o mundo…
Da banda Inocentes uma das canções censuradas foi a icônica: miséria e fome:
É tão difícil viver entre a miséria e a fome
Senti-la na carne e ter que ficar parado, calado
É tão difícil entender como homens armados
Expulsam outros homens das terras em que
Eles nasceram e se criaram, que são deles
Por direito para lá plantarem nada, nada, nada…
Dos Garotos Podres, Johnny:
Mas um dia tudo terminou
Johnny foi preso
Extraditado pro Brasil
Aquele país que está na corda bamba
Que só tem carnaval, futebol e samba
Um país idiota
Cheio de moleque
Onde ainda se toca discoteque…
Falando em Garotos Podres, o Mao (seu vocalista) dá uma verdadeira aula do que foi e do que é uma ditadura: “A ditadura ela não apenas reprime e persegue opositores políticos mas tenta controlar o pensamento”. Pierre (Cólera) complementa: “Qualquer forma de ter uma ideia, um pensamento diferente daquilo que eles querem que seja feito” é objeto da censura. Jão, no entanto, diz algo interessante: “Para gente que é punk é bom ser censurado. Se não alguma coisa estaria errada. Você em plena ditadura fazendo música de protesto e não ti censurarem, né”. Ou seja, não eram jovens ingênuos. Eles sabiam exatamente o que queriam. Ou melhor. O que não queriam. E a partir daí ajudaram a moldar no nosso país uma cultura de resistência a partir da periferia que permanece viva.
O fato desses artistas não conseguirem o devido reconhecimento por parte do status quo é mais uma comprovação, de que apesar da mudança de regime, seu caráter autoritário prevalece. Não mais pelo uso da força. Mas pela introjeção de determinados valores que criam seres submissos.
Acesse e assista o documentário no link: https://youtu.be/EEJHRoy2gAo?si=I8U9syzveTKwhh_0
Pedro Ferreira Nunes - é apenas um rapaz latino-americano, que gosta de ler, escrever, correr e ouvir rock n roll.
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