segunda-feira, 10 de março de 2025

Crônicas Aurenyanas: pobre natureza humana

Desde que mudei para o Aureny I moro no mesmo lugar. Apesar de ter outros moradores, é um lugar tranquilo e próximo do trabalho. Nesse período de um pouco mais de 2 anos já passou pelas outras kitnets alguns inquilinos. Não costumo interagir com eles além do protocolar bom dia, boa tarde, boa noite. Mas não deixo de observar os seus comportamentos. Assim como eles provavelmente observam o meu. E das minhas observações não posso deixar de refletir sobre o que chamo de pobre natureza humana. Vejamos o seguinte caso que passo a relatar:

No segundo semestre de 2024 mudou para kitnet vizinha a minha uma senhora que creio ter os seus 50 e poucos anos. Baixa e magra de início imaginei que tinha muito mais. Também imaginei que fosse uma dessas velhas sem família. Conversadeirinha sempre buscava puxar assunto prontamente recusado por mim. Notei que ela era evangélica. Parecia ser fervorosa. Mas percebi que a igreja havia entrado na sua vida recente como um refúgio de uma vida viciosa. Então entendi que sua aparência um tanto acabada não era pela idade, mas pelo vício. Entre eles um ela ainda não havia conseguido se “libertar” completamente - o cigarro.

Percebi que ela estava tentando começar uma nova vida. Apesar da sua aparência franzina trabalha incansavelmente como diarista fazendo faxina em casas. Saía sempre muito cedo e voltava tarde. À medida que o dinheiro ia entrando ela ia mobiliando sua pequena kitnet. Não era tão sozinha como eu imaginava. Tinha filhos que vinham visitá-la e até um namorado. Mas a maior parte do tempo ficava sozinha, ouvindo louvores e pregações no celular. Também não deixava de ir para a igreja.

Não demorou para que ela começasse a revelar suas contradições. Expressão da nossa pobre natureza humana que fica tentando se equilibrar entre os nossos desejos e os valores que a sociedade impõe. Ela buscava reprimir seus desejos por meio do seu credo. Mas a realidade, dura e cruel, obriga a ser o que ela é.

Alguns acontecimentos aceleraram esse processo. Ela que morava sozinha de repente tinha um filho com ela. E tempos depois outro. Com o fracasso do casamento deles e sem ter para onde ir buscaram refúgio na mãe. E ela como toda mãe, digna desse nome, não podia deixar de acolhê-los. Ainda que isso significasse não só a perda da sua privacidade mas sobretudo a paz. Já que as criaturas têm um dom especial em estressá-la.

Dia desses voltando para casa encontrei-a  no portão de entrada sentada fumando um cigarro e com um semblante pensativo. Percebi que ela não estava bem. O namorado já não vem mais visitá-la e a igreja há um bom tempo não sente sua presença física. No tom da sua fala a gente percebi que a qualquer momento ela entrará em colapso. Por enquanto fumar um cigarro escondido tem sido sua fuga. Mas até quando suportará? Se ela não conseguir se libertar dos filhos parasitas, a morte lhe tragará em breve. Há que se libertar também da religião que impede que veja as coisas tal como elas são.

“no ' imperturbável espectador dessa cena, a duplicidade de sua consciência atinge o mais elevado grau: ele se sente simultaneamente como indivíduo, fenômeno efêmero da Vontade que o menor golpe daquelas forças pode esmagar, indefeso contra a natureza violenta, dependente, entregue ao acaso, um nada que desaparece em face de potências monstruosas, e também se sente como sereno e eterno sujeito do conhecer, o qual, como condição do objeto, é o sustentáculo exatamente de todo esse mundo, a luta temerária da natureza sendo apenas sua representação”.

Refletindo sobre a pobre criatura me lembrei dessa passagem do Schopenhauer que chama atenção para a natureza humana revelada numa consciência dupla. Por um lado a condição de um indivíduo insignificante diante de uma força superior (a natureza). Por outro lado, o único ser que tem consciência da sua condição de sujeito do conhecimento que sustenta todo esse mundo. Na mente da nossa personagem há essa duplicidade. Ainda que ela não tenha consciência. Por um lado ela se sente uma criatura à mercê da vontade divina. Pois para lógica de alguém religioso ela está vivendo o que está vivendo porque Deus quer que seja assim. Por outro lado, ela sabe que pode muito bem não aceitar viver a vida que está vivendo.

Esperemos para ver o que acontecerá. Se formos seguir concordando com Schopenhauer independente da sua escolha as consequências serão dor e tédio. A dor ela já está sentido na pele. Basta saber se ao conseguir realizar o seu desejo virá o tédio. Oh pobre natureza humana.

Pedro Ferreira Nunes - é apenas um rapaz latino-americano, que gosta de ler, escrever, correr e ouvir rock n roll.

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