Não é sem uma dor no coração que vamos acompanhando o drama de Pedro Rubião - professor da escola primária na cidade de Barbacena (MG). O seu destino muda ao conhecer o filósofo Quincas Borba - autor de uma filosofia denominada de humanitas - que consistia na tese de que a morte é necessária para que haja vida. Nesse sentido, a guerra é necessária.
"Ao vencedor as batatas."
Essa frase que Quincas Borba elabora alegoricamente para explicar sua filosofia não sairá da cabeça de Rubião. Acompanhando-o até a morte.
- Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.
Mas vamos ao começo. A amizade de Rubião com o velho filósofo acabará fazendo-o herdeiro de toda a fortuna que este acumulara ao longo da vida. Apenas com a condição de que o jovem interiorano cuidasse do seu cachorro, também chamado de Quincas Borba. Essa fortuna com a qual Rubião jamais poderia imaginar será a sua ruína. Imediatamente ele deixa Barbacena para trás. E segue para o Rio de Janeiro para tomar posse de toda a sua fortuna. E ter uma vida diferente da que vivia ali.
Ingênuo como é, se cercará de pessoas que acredita serem suas amigas, mas que só querem usá-lo. Nutrirá um amor doentio por Sofia, esposa de Cristiano Palha - que não terá escrúpulo em usar essa paixão para tirar vantagens. Faz de tudo para ser aceito aquela sociedade que nunca lhe pertencerá. E pagará um preço alto, sua lucidez.
É importante salientar que apesar de ingênuo, Rubião não deixa de ser ambicioso. E se analisarmos profundamente, será mais a ambição do que a ingenuidade que acelerará sua queda. Ou talvez a soma dos dois. Em relação a ambição. Primeiro a de herdar a fortuna do filósofo Quincas Borba. Segundo de ter o amor de Sofia. E terceiro de conseguir um cargo político na corte. A sua ingenuidade foi sobretudo confiar em pessoas que acreditava serem suas amigas.
Ailton Krenak ao criticar o conceito de humanidade faz uma analogia com um liquidificador. Para se encaixar você precisa deixar suas raízes e se incorporar ao ideal do homem branco Europeu. Quando esquecemos nossa origem nos tornamos presas fáceis de um sistema que impõe um determinado modo de vida. A ingenuidade de Rubião impediu que ele percebesse a sua queda. À medida que ia perdendo a fortuna deixava de ser um amigo e tornava-se um peso. O único que não o abandonara fora Quincas Borba - o cachorro.
Não que os demais personagens sejam maus. Eles não ficam pensando ou planejamento como dilapidar o pobre Rubião. Apenas estão buscando se integrar à “humanidade”. Isso significa agir de determinada forma. Colocando seus interesses acima de tudo.
Para Rubião a realidade foi se tornando cada vez mais insuportável. No fundo ele sabia que estava sendo usado. Que ninguém verdadeiramente se importava com ele. Que o seu amor por Sofia jamais seria correspondido. Diante disso, a fuga da realidade foi a forma que ele encontrou para se proteger.
Num momento de lucidez deixou o Rio de Janeiro e retornou para Barbacena onde morreu perdido no seu delírio de grandeza. Vagando pelas ruas como um mendigo e proferindo a frase enigmática.
- Ao vencedor, as batatas.
Na sua cabeça tornara-se rei. Também na sua morte Quincas Borba dizia ser quem não era - o filósofo Santo Agostinho. Mas o fim de um foi bem diferente do outro.
Não morreu súbdito nem vencido. Antes de principiar a agonia, que foi curta, pôs a coroa na cabeça, - uma coroa que não era, ao menos, um chapéu velho ou uma bacia, onde os espectadores palpassem a ilusão. Não, senhor; ele pegou em nada, levantou nada e cingiu nada; só ele via a insígnia imperial, pesada de ouro, rútila de brilhantes e outras pedras preciosas. O esforço que fizera para erguer meio corpo não durou muito; o corpo caiu outra vez; o rosto conservou porventura uma expressão gloriosa.
O seu fiel companheiro, o cachorro Quincas Borba, também adoeceu e morreu poucos dias depois do seu dono.
A forma serena com que encontrou seu fim, pode ser a prova de que Rubião compreendera a filosofia humanitas. Ele entendeu que a sua morte era necessária para que outros vivessem. Deixou sua Barbacena rumo ao Rio de Janeiro, lá lutou sua guerra e retornou para sua terra, vencido. Deixando ao vencedor, seus despojos. Assim também é a nossa sina nisso que chamamos de humanidade. O que aprendemos com Ailton Krenak é que não precisa ser assim.
Por Pedro Ferreira Nunes - Mestre em Filosofia pela UFT e Professor da Educação Básica na Rede Estadual de Ensino do Tocantins.
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