João estava há um pouco mais de um ano morando em Goiânia. Era mais um
como tantos outros que deixara sua terra natal – no interior nortista – Mais
precisamente a pequena e pacata Miracema do Tocantins, que um dia fora do Norte
– em busca de uma vida melhor na cidade grande. Chegando a Goiânia logo começou
a trabalhar na construção civil – alugou um barracão na periferia da cidade e
mandou vim do norte sua esposa e seus filhos.
Em Miracema a vida não era fácil, dificilmente conseguia trabalho. Não
havia indústria e no campo os serviços eram cada vez mais raros, sobretudo com
o avanço da monocultura de soja e cana de açúcar na região. A maior empregadora
do município era a prefeitura, no entanto os trabalhos eram precarizados
através de contratos temporários – que não respeitam as garantias trabalhistas
e são suspensos a qualquer momento de acordo com o interesse do grupo politico
que esteja à frente da prefeitura.
A condição de vida era extremamente degradante e não havia nenhuma
perspectiva de sair daquela situação. O bolsa família apenas evitava que eles
morressem de fome, não dando nenhuma condição para emancipar-se.
João tinha alguns parentes que viviam em Goiânia, foi através deles que
decidiu ir de muda pra lá. Nunca havia passado por sua cabeça deixar sua terra
natal. Viu muitos amigos seus partir dali, até mesmo para outros países. Mas
ele que nascera e crescera em Miracema não pensava deixar sua querida cidade.
Por outro lado sabia que não havia alternativa se quisesse dar o mínimo de
condição para que sua família tivesse uma vida digna. E foi com esse sonho na
bagagem que ele deixou Miracema.
Mesmo morando na periferia da cidade o aluguel não era barato. Juntando
o seu salário de servente de pedreiro na construção civil e de sua esposa de
diarista nos condomínios de luxo da burguesia goiana mal conseguiam pagar o
aluguel e alimentar a família que não era pequena. João pensava consigo:
- Se ao menos conseguíssemos sair do aluguel. Já economizaríamos muita
coisa.
Com o salário que ganhava era impossível comprar uma casa. A solução
então seria esperar ser atendido pelo um programa habitacional do governo. Mas
João não se iludia com isso – pois bem sabia que não só era difícil como
beirava o impossível. Ele conhecia gente que há mais de 10 anos tinham assinado
cadastro e nunca haviam sido contemplados por tais programas habitacionais.
Foi então que um companheiro no trabalho falou de uma grande ocupação de
famílias sem teto na capital goiana. Com muita empolgação disse como as coisas
estavam caminhando, ressaltando enfaticamente que com luta eles poderiam ganhar
a tão sonhada casa própria e sair do famigerado aluguel.
- Vamos lá camarada João, junte-se a nós. Quanto mais pessoas, mais
forte é o movimento e as perspectivas de vitória.
João sempre teve uma opinião muito dura sobre as pessoas que invadem “as
coisas alheia”. Quando via a atuação do movimento sem terra na região onde
morava achava que todos eram um monte de vagabundos que não queriam trabalhar.
E os sem tetos para ele não eram muito diferentes. Mas agora ele estava vendo
na pele o quanto é difícil pagar um aluguel e ter que alimentar uma grande
família. Se continuasse da forma que ia, logo João e sua família seriam
despejados, pois não teriam condições de pagar aluguel.
E se fossem despejados aonde iriam morar? De baixo da ponte? Voltar para
o norte pior do que quando chegaram ali? As perspectivas não eram boas. Foi
então que juntamente com sua esposa decidiu participar da ocupação.
- Vamos chegar companheiro. A vida aqui não é fácil. Mas se a gente
resistir na luta podemos alcançar nosso objetivo. Disse Camilo, um dos lideres
da ocupação.
- O que eu tenho que fazer? Questionou João.
- Bom companheiro. Constrói o teu barraco e passa para dentro com tua
família. Contribua com as tarefas coletivas da ocupação bem como com as ações
que realizamos. Respondeu Vilma, que também fazia parte da equipe que liderava
a ação.
João não perdeu tempo, construiu um barraco e passou para dentro
com a família, enfim estavam livres do aluguel. Ao contrario do que imaginava
as pessoas que ali viviam não eram vagabundos, mas tudo gente trabalhadora como
ele que vinha de outros estados ou mesmo do interior de Goiás e que não tinha
casa própria e não conseguiam pagar aluguel.Ele então compreendeu a importância
daquela luta. Aprendeu que estava lutando por um direito seu e de outros tantos
que estavam na mesma condição. João compreendeu que a luta do movimento dos
trabalhadores sem teto e sem terra é legítima – pois é uma luta em defesa de
direitos historicamente negados.
- Tá lá na constituição. Moradia é um direito de todos. E é obrigação do
Estado garantir esse direito. Se nós não lutarmos por esse direito, o governo
não nos dará de mão beijada. Dizia Camilo.
Ele então foi se transformando e aos poucos tornou-se uma liderança do
movimento e um dos coordenadores da ocupação. E não era qualquer ocupação –
localizada numa área conhecida como Parque Oeste Industrial – a ocupação Sonho
Real tornou-se a maior ocupação de trabalhadores sem teto de Goiás e uma das
maiores do Brasil. Com o tempo a ocupação foi se transformando num verdadeiro
bairro – as barracas de lona foram dando lugar às casas de tijolos. Surgiram
ruas, comercio, igrejas entre outros.
Diante desse cenário ninguém acreditava mais que seriam capazes de
tira-los daquele lugar, ainda mais quando os governantes de então prometeram
legalizar o terreno e transforma-lo legalmente em um bairro. João não conseguia
esconder a felicidade. Mas para ele a luta não acabaria quando conseguisse o
documento da sua casa própria. Era preciso continuar lutando para que tantos
outros realizassem aquele sonho.
Mas eis que então surge um processo de reintegração de posse – a justiça
decretou a decisão de que o terreno deveria ser desocupado.Foi então que João
aprendeu uma nova lição – nunca, mais nunca, em hipótese alguma deveria
acreditar no governo.
- A promessa de que iriam desapropriar essa área por interesse social
para destina-la a nós era apenas para ganhar nossos votos. Agora diante da
decisão judicial lavam as mãos. Ou pior ainda, utilizaram as forças de
repressão para nos expulsar daqui. Discursava Camilo.
- O que faremos? Questionavam todos.
- Vamos resistir. Eles não serão capazes de passar o trator por cima de
nossas casas com a gente dentro. Gritava Vilma.
- Será? Pensava consigo João. Eles são capazes de fazer bem pior, mas
não dá para recuar, temos que resistir.
E assim foi decidido por todos, ou pelo menos pela grande maioria –
resistir à reintegração de posse. Eles haviam investido ali o ganho de toda uma
vida, não poderiam abrir mão de tudo que tinham construído. Ora, aquela área
pertencia a eles de fato. Mas o governo e a justiça não viam assim.
- Seja o que tiver de ser. Só saiu daqui morto. Dizia João.
- Não aceitaremos ver nossas casas destruídas. Aonde nos jogaram?
Gritavam os sem teto.
Se os sem tetos estavam dispostos a resistir o governo também não estava
disposto a recuar.
- Tem uma decisão judicial e temos que cumprir. Dizia o porta voz do governo.
- Canalhas, canalhas, canalhas. Diziam os sem tetos.
João passou noites acordado defendendo a ocupação. Na trincheira ao lado
dos seus companheiros olhava perplexo para todo o aparato militar que o governo
havia mobilizado contra eles – de um lado os trabalhadores se armavam de paus,
pedras e coquetéis molotov. Do outro um aparato militar de guerra.
- Eles querem nos vencer pelo cansaço. Estão apenas nos cercando.
- Estão colocando uma puta pressão psicológica na companheirada.
- E estão conseguindo. Tem muita gente desistindo e indo embora.
- É verdade. Mas daqui não saiu. Se quiserem que eu saia terão que
entrar aqui para me tirar a força.
- A nós também.
Enquanto isso a pressão de cima para que as forças de repressão
invadissem e despejasse os sem teto era cada vez maior.
- Essa ação tem que servir de exemplo para que nunca mais esses
vagabundos invadam terra de ninguém.
- Certo.
- Que não passe dessa noite. Quando amanhecer o dia quero ver tudo
aquilo no chão. Nem que para isso tenhamos que banhar aquilo de sangue.
- E os direitos humanos?
- Foda-se os direitos humanos. Mas é claro que a gente não vai fazer na
cara dura. Faremos uma boa maquiagem. O que será bem fácil, ainda mais com o
apoio da impressa que esta do nosso lado.
- Bom, manipular é com a gente mesmo. Não teremos problema quanto a
isso.
- E essa operação tem que ser à noite por que justamente facilita para
encobertar o que precisa ser encobertado.
O dia amanheceu triste, muitos corpos espalhados pela cidade, às casas
estavam no chão – todas destruídas. A fumaça podia ser vista de longe. Na noite
anterior o governo de Goiás a serviço do capital imobiliário, através de sua
policia, passou por cima de mulheres, crianças, homens e idosos sem nenhuma
piedade.O corpo de João foi encontrado alvejado de bala ao lado dos seus
companheiros na trincheira onde estava defendendo a ocupação. Ele e tantos
outros banharam aquela fria madrugada goiana de sangue.
Quando caiu a trincheira que João guardava, caiu toda a ocupação. E
assim as famílias de trabalhadores sem teto não tiveram alternativa se não
renderem-se. Pois era a rendição ou a aniquilação total, já que as forças de
repressão policial estavam totalmente dispostas a aniquilar qualquer
resistência.
*Esse conto é fictício, qualquer semelhança com a realidade é mera
coincidência.
Pedro Ferreira Nunes – É Poeta e Escritor Popular Tocantinense – Autor
do romance “A Ilha dos Espíritos”, do livro de poemas “Minha Poesia” entre
outros.