Para início de conversa vou lhes contar uma breve estorinha. Imaginem uma cidadezinha litorânea que sobrevive graças ao dinheiro que os turistas que vão visitar as praias locais gastam ali. De repente surgi um tubarão atacando os turistas e vitimando alguns. Imaginem o pânico que se instala naquele local. Então as autoridades políticas e técnicas começam a discutir o que fazer diante desse problema que surgiu. Por um lado as autoridades técnicas vão defender a interdição imediata das praias e o cancelamento da temporada de verão. Já as autoridades políticas vão defender o contrário, justificando que se a temporada for cancelada a cidade entrará em colapso financeiro. E os impactos para população que ali vive serão enormes. Nesse primeiro momento a posição defendida pelas autoridades políticas prevalece. E assim as praias continuam aberta para banho, mas com uma vigilância um pouco maior. Mesmo assim no final de semana seguinte o tubarão ataca novamente deixando mais uma vítima mortal. A partir daí as autoridades políticas se convencem de que não adianta aumentar a vigilância, é preciso resolver o problema pela raiz – o inimigo (no caso o tubarão) precisa ser eliminado ou se não a vida não voltará ao normal naquela pequena cidade. Convencida então a autoridade política, as medidas de prevenção como interdição das praias e cancelamento da temporada são tomadas, e então se parte para caçada.
Essa estorinha que acabei de contar é o enredo do filme “O Tubarão” de Steve Spielberg lançado em 1975 – completando portanto 45 anos agora em 2020. Justamente no momento em que a humanidade enfrenta um terrível inimigo que tem vitimado milhares de pessoas mundo afora. Diante disso podemos fazer um paralelo entre o enredo do filme “O Tubarão” e o momento que estamos vivendo. Tanto a nível de Tocantins, a nível de Brasil, como também a nível mundial. Como todos sabem o foco inicial do Novo Coronavírus se deu na China. E a partir daí foi se alastrando para o mundo todo. A medida que o vírus foi se alastrando vimos duas posturas que se assemelham muito as posturas das autoridades daquela cidadezinha onde apareceu o tubarão. Um lado dizendo se tratar de um problema minúsculo que passaria logo, logo. Por tanto não precisaria se tomar medidas drásticas. Ainda mais pelo fato de que o nosso país tem determinadas características que iria impedir um estrago tal como vimos em países como Itália e Espanha. Em suma, minimizando a crise que estamos vivendo, dizendo que havia um certo exagero por parte daqueles que defendiam o isolamento social, o fechamento das escolas, das universidades e do comércio não essencial. E por outro lado, aqueles fundamentados sobretudo nas orientações da OMS (Organização Mundial da Saúde) alertavam para o fato de que se tratava de um problema sério e enquanto não se descobrisse uma vacina eficaz seria necessário algumas medidas (especialmente o isolamento social, uso de máscara e de álcool em gel) para evitar uma proliferação maior do vírus. Temos ai portanto as duas principais posições que vimos surgir nesse período de pandemia. Por um lado alguns minimizando a gravidade da crise argumentando que o pior seria o isolamento social que desencadearia uma crise ainda maior com a consequente quebra econômica. E do outro lado se chamando atenção para a gravidade do problema e para necessidade de se tomar algumas medidas, que se não elimina o vírus, pelo menos evitando que ele se fortaleça.
Quando nós fazemos esse tipo de reflexão, de como agir em determinada situação nós estamos no campo da Ética. Pois a ética é justamente isso, é a reflexão acerca das nossas ações. Nós agimos moralmente. E a partir da Ética nós refletimos sobre esse agir moral. Para ficar mais claro vejamos uma questão Ética do contexto atual: Por que mesmo diante dos números de casos e de mortes as pessoas continuam ignorando os alertas das autoridades sanitárias? Mesmo diante dos números (que são reais) e das estórias de famílias devastadas por esse vírus não nos sensibilizamos e continuamos agindo como se nada estivesse acontecendo? Quando agimos assim, estamos agindo de forma virtuosa? Na concepção clássica de ética, agir virtuosamente é agir em busca do bem. E agir através de ações justas. A partir do momento que ignoro as orientações dos profissionais da saúde, colocando em risco não só a própria vida, mas sobretudo daqueles que estão ao meu redor, da comunidade que eu vivo. Será que estou agindo virtuosamente? É uma questão Ética que a filosofia nos propõem nesse contexto de pandemia.
O filósofo brasileiro Vladimir Safatle nos chama atenção para o fato de que a substância ética de um povo é definida a partir da maneira que ela lida com a morte. Como estamos lidando com as mortes decorrentes da COVID-19? Qual o nosso comportamento diante do crescente número de mortes? Mortes evitáveis em muitos casos. Esse comportamento revela a nossa substância ética, ou melhor dizendo, a falta dela. Pois se agir eticamente é agir em busca do bem, estamos agindo de forma contrária. Estamos agindo de maneira egoísta e não virtuosa. Estamos agindo pela indiferença. E são vários os exemplos nesse sentido: pessoas em festas clandestinas, se aglomerando em pontos de banho, não utilizando máscaras em locais públicos. Ignorando totalmente os alertas dos profissionais de saúde. E mesmo das autoridades políticas por meio dos decretos. É como se nada estivesse acontecendo. Milhares de pessoas morrendo e... uma completa indiferença. Uma diferença que percebemos no discurso daqueles que dizem: - Ah, já tava pra morrer! Também, tinha um monte de doenças – era cardíaco, era diabético. Uma indiferença total diante do luto do outro – da vida, a vida não tem nenhum valor. Isso mostra muito da nossa substância ética. Quando nos comportamos com total indiferença, seguimos na contramão do que propõem a ética. Tanto que é necessário decretos e outras medidas de vigilância para impedir que as pessoas se aglomerem. Quando chegamos ao ponto de ter que ameaçar com multa as pessoas para que usem máscaras, não há nem o que dizer. E esse não é o único exemplo da nossa falta de consciência ética. É só observarmos o aumento de bens e serviços e os casos de desvios de recursos públicos da saúde, sobretudo num momento desses em que muitas pessoas morrem por falta de um atendimento básico.
Chegamos então a um ponto importante que é a relação entre ética e política. No livro clássico do Aristóteles “Ética á Nicômaco. Ele nos diz que a finalidade da política é a busca pelo bem humano, sobretudo numa perspectiva coletiva. E como ela faz isso? Despertando nos cidadãos ações nobres. Será que é isso que isso que está acontecendo? Será se nossos representantes políticos estão utilizando a política para despertar nos cidadãos ações nobres. Reflitam sobre isso, pensem nas medidas que as autoridades políticas estão tomando – são ações, são políticas, que buscam unir a população para que superemos esse momento? Nós sabemos qual é o problema. Ainda não sabemos como destrui-lo, mas sabemos como evitar que ele se fortaleça. E mesmo sabendo de tudo isso, por que agimos de forma contrária. São questões que a filosofia moral, que os filósofos estão fazendo nesse contexto. E que todos nós, cidadãos, deveríamos fazer. Pois é a partir dessas reflexões que definiremos como será o mundo de amanhã. Essas reflexões contribuíram para construção do mundo pós-pandemia de COVID-19. Nós queremos um mundo que avance cada vez mais para a sua destruição ou nós queremos um mundo onde as pessoas sejam mais solidárias? Nós queremos um mundo onde cada um olha apenas para o seu próprio umbigo. Ou queremos um mundo (uma cidade, um Estado, um país) onde todos se ajudam e caminham unidos para vencer os desafios que surgiram. Pois uma coisa é fato, a pandemia de COVID-19, não é a primeira e nem será a última crise que a humanidade vai enfrentar. Antes dela tivemos outras, e no futuro certamente haverão outros desafios que precisaremos enfrentar. Como enfrentar esses problemas e o que surgirá a partir daí está na mão de todos nós. Nós podemos optar por enfrentar tal como a Filosofia nos propõem, de forma racional. Ou podemos deixar nos guiar pela irracionalidade e caminhar para nossa autodestruição.
Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins. Aula ministrada para estudantes da 3° Série do Ensino Médio do CENSP-LAJEADO.