Falar que a realidade é dinâmica, como dizem, é chover no molhado. Mais é o que é. Todos os dias quando abrimos os jornais somos surpreendidos com alguma novidade que mexe com a conjuntura. E essa movimentação apresenta novas possibilidades na esfera política. Por exemplo, a queda do decreto presidencial pelo congresso acerca do Imposto sobre operações financeiras (IOF) e a criação de mais cadeiras na Câmara dos Deputados, o tarifaço de Trump (sobretudo a justificativa referente ao Brasil) e, no caso do Tocantins, a manutenção da prisão do prefeito de Palmas - Eduardo Siqueira Campos. Ainda que necessário, não vou me meter a fazer uma análise de conjuntura como se deve. Mas apenas alguns comentários acerca do contexto atual (inclusive talvez algumas questões já tenham sido superadas quando esse texto for publicado no início de agosto, pois ele está sendo escrito em meados de julho). Para quem quiser uma análise mais aprofundada, sobretudo em relação à conjuntura nacional e internacional, nomes como Paulo Arantes, Marilena Chauí, José Paulo Netto e Vladimir Safatle são fundamentais. Em relação ao Tocantins, ainda temos carência nesse sentido. Mas vamos lá. Comecemos do micro para o macro como nos ensinou Paulo Freire - seguindo a tradição do materialismo histórico dialético.
A política no interior
Questionei um amigo que mora no interior do Tocantins como estava a nova gestão à frente da prefeitura da sua cidade. Ele comentou que não conhecia o perfil administrativo do atual mandatário, mas que via com preocupação um certo populismo que ao seu ver pode ser prejudicial a cidade (a opção de não falar o nome do gestor e do município é proposital. E não tem haver com medo de retaliação. Mas pelo fato de que independente de qual município do interior você seja, certamente irá se identificar). Eu diria que essa prática não é uma exceção daquele político. Mas uma estratégia amplamente utilizada com o objetivo de se manter no poder. Para um político populista o importante não é enfrentar os problemas reais da comunidade, mas agradar a plateia. E aqui o termo plateia é utilizado de forma proposital. Pois é como uma plateia e não como cidadãos que a maioria das pessoas nessas cidades se comportam. Até porque cria-se uma dependência por meio de contratos temporários que os silenciam. Como também a realização de festividades que criam uma falsa visão de prosperidade. Enquanto isso não se observa nenhuma melhora em relação à infraestrutura local, a melhoria na prestação de serviços e a geração sustentável de empregos.
Ainda sobre a realidade no interior
Num diálogo com outro amigo percebi outro elemento que corrobora com a visão de que determinados perfil de gestão é prejudicial a cidade. Esse amigo relatava a situação num órgão governamental do município. Segundo ele, antes havia menos servidores e o trabalho fluía melhor. Hoje a quantidade é maior e as coisas parecem que não andam. Quando há alguma cobrança, o indivíduo ameaça ir atrás do gestor municipal para reclamar. Tal postura não existiria se não houvesse anuência por parte desse gestor. Percebemos assim uma total falta de respeito a hierarquia organizacional do órgão, bem como a falta de autonomia dos chefes imediatos. Com isso a prestação de serviço fica prejudicada. Isso é reflexo de uma prática comum que é a de utilizar os órgãos públicos como cabide de emprego em troca de votos. Muitas pessoas não têm o perfil para exercer determinado serviço. Mas porque apoiou fulano de tal acaba sendo contratado. O resultado é isso. Quando o prefeito ou prefeita, tira a autonomia dos seus secretários (e estes por suas vez tira a autonomia dos seus diretores), está contribuindo para uma gestão fraca. Em decorrência disso quem acaba sofrendo é a população que precisa de um determinado serviço público. Ninguém quer desagradar ninguém (para não perder apoio político) e quem acaba perdendo é a cidade.
Fiscalização do dinheiro público
Pela ausência de uma iniciativa privada forte as prefeituras do interior acabam tendo que assumir integralmente a organização e realização de eventos culturais como as temporadas de praias. Até aí tudo bem. Porque além de garantir à população o acesso ao lazer e a cultura. Também fomenta a economia local e a geração de renda. No entanto, o investimento nessas festividades deve ser feito com responsabilidade, sem desperdício de dinheiro público. Não é isso o que percebemos em alguns municípios tocantinenses como aponta levantamento feito pelo Portal de Notícias do Arnaldo Farias. E ações do Ministério Público. Essa fiscalização deveria partir da Câmara de Vereadores e acompanhada pela população em geral. Pois é inadmissível o cache destinado a contratação de determinados artistas por gestões de cidades que não o básico como escolas e unidades de saúde decentes. Outro fator é a programação que pouco contempla os artistas locais. Além de priorizar um determinado segmento artístico. De modo que paira a suspeita de que até que ponto tudo isso serve apenas para desviar dinheiro público.
Vamos para capital
Ao assumir a prefeitura de Palmas percebemos no dia a dia algumas mudanças que revelavam o perfil gestor do Eduardo Siqueira Campos. Ou seja, apesar de pouco tempo foi possível perceber uma diferença significativa em relação a gestão anterior (Cinthia Ribeiro), a capacidade política de articulação com diferentes grupos (no seu secretariado tem de petistas a bolsonaristas) e a intervenção na cidade por meio de obras, inclusive na periferia. Mas de repente, 6 meses após a sua posse, a população da capital e, porque não do interior, é surpreendida com sua prisão e consequentemente o seu afastamento da cadeira de chefe do executivo municipal. Quem conhece a história do herdeiro político (como Prefeito, Senador, Secretário de Estado e Deputado) do velho José Wilson Siqueira Campos não poderia se surpreender com essa prisão - o que não deixa de ser surpreendente é o motivo - De acordo com a CNN Brasil acusado de ter vazado “informações sigilosas sobre inquéritos em curso no STJ, prejudicando a eficácia de diligências contra políticos e juízes do Tocantins.” Não deixa de ser trágico. Logo agora que o Eduardo estava tendo a oportunidade de dar a volta por cima - encerrar sua carreira política fazendo uma gestão histórica à frente da prefeitura da capital do Tocantins.
Os tempos são outros Eduardo
Durante a campanha a prefeitura de Palmas Eduardo conseguiu mostrar um perfil moderno, inspirado em nomes como o Prefeito de Recife (PE) - João Campos, fez uma campanha extrovertida atraindo um grande apoio da juventude. Esse certamente foi um dos motivos que fez com que ele saísse de terceira via para candidato eleito, superando a franca favorita Janad Valcari (com o apoio do Bolsonaro, do Governador Wanderlei e do Senador Eduardo Gomes) e o Deputado Estadual Júnior Geo (com o apoio da Prefeita Cinthia Ribeiro e sua gestão). No entanto, ele não deixou de ser um Siqueira. Acreditou que poderia usar mão de métodos questionáveis, utilizados pelo seu pai enquanto governador, para angariar apoio e sair ileso. Mas os tempos são outros Eduardo - que essa prisão sirva para ele aprender essa lição. Já os demais políticos que se solidarizam com ele mostram que essas estratégias questionáveis para conseguir o poder ou mantê-lo é uma prática tão comum que não deveria ser considerada crime. Para esses o recado que os tempos são outros também é necessário. Por outro lado, esse apoio também é reflexo da análise de que Eduardo Siqueira não tardaria em assumir novamente a cadeira de Prefeito. Sendo o seu apoio fundamental nas eleições do próximo ano onde iremos às urnas eleger Deputados, Senadores, Governador e Presidente.
Cálculo errado
Quem não fez a análise correta foi o vice-prefeito da capital (Carlos Veloso) e os seus conselheiros políticos. Ora, não precisa ser um especialista em direito para saber que a prisão do Eduardo Siqueira Campos não se sustentaria por muito tempo. A suspeita que paira sobre ele é muito frágil para que venha perder o mandato. De modo que o mais correto por parte do vice-prefeito era permanecer fiel até que, pelo menos, os recursos do prefeito fossem analisados e despachados pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Cristiano Zanin. A partir daí, com uma situação mais clara, era natural que ele moldasse a gestão ao seu perfil, escolhendo pessoas que se alinham a esse perfil. Mas a soberba acabou levando a erros que o colocou como uma das figuras mais odiadas da política tocantinense. Eduardo Siqueira Campos que não é nenhum amador na arte de fazer política não pensou duas vezes em aproveitar o episódio para sair fortalecido. Por sua vez, a população palmense tem que comemorar mesmo, nem tanto a volta do Eduardo Siqueira Campos, mas a oportunidade de ter se desfeito de um grupo perigoso que usa a religião para se fortalecer politicamente.
Especulações
Não poderia ser diferente quando estamos tão distantes das eleições de 2026, ainda mais com as “surpresas” que a política tocantinense nos reserva. De modo que qualquer coisa que se fale sobre articulações e nomes, sobretudo para o executivo estadual, não passa de especulação. Mas uma coisa é fato, o Governador Wanderlei terá um papel central. Tanto que o seu apoio é disputado por dois nomes de peso - a Senadora Dorinha (União Brasil) e o presidente da Assembleia Legislativa do Tocantins - Deputado Estadual Amélio Cayres (Republicanos). Com uma gestão praticamente sem oposição, o Governador tem realizado um mandato bem avaliado pela população. E essa popularidade, assim como a força da máquina pública, é cobiçada por quem pretende disputar um cargo eletivo nas próximas eleições. Um terceiro nome que se coloca como candidato ao governo estadual é do Vice Governador - Laurez Moreira. No entanto, como oposição. Ainda que uma oposição velada. Ou seja, por enquanto, o maior desafio do grupo no poder é chegar num consenso acerca do candidato que vai representá-lo na chapa majoritária. Pois não há nenhum nome com força, no contexto atual, para fazer frente ao candidato apoiado, seja ele quem quer que seja, pelo Governador Wanderlei. Alguém poderá lembrar: - Ora, a Janad foi apoiada pelo Governador mas não levou. Eu respondo: - as eleições estaduais tem outra dinâmica diferente da disputa municipal, sobretudo na capital.
O cenário nacional
Lula avança para o fim do seu mandato sem conseguir o que prometeu - unir o país. Quem minimamente compreende a política. Sabe que esse lema (união e reconstrução) não passava de uma falácia. Alguém com o mínimo de honestidade intelectual achava mesmo que o bolsonarismo estava enterrado após a derrota eleitoral de 2022? Derrota relativa, né?! Pois em que pese Bolsonaro não ter conseguido a reeleição, sendo derrotado por Lula, a extrema direita elegeu um grupo significativo de deputados e senadores além de aliados nos Governos de Estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Goiás. Resultado. Por mais esforço que faça, inclusive derramando emendas no congresso nacional em troca de apoio, o governo Lula não consegue avançar e mudar a percepção da população sobre a fragilidade de sua gestão. Mesmo assim, Lula ainda é o único que consegue se mostrar com alguma possibilidade de derrotar o candidato que representa o retorno da extrema direita - o que é lastimável a dependência da esquerda e das forças progressistas de uma figura. Pois ao que parece o bolsonarismo consegue sobreviver sem Bolsonaro, já o lulismo sem o Lula.
O Congresso Nacional e a Luta Popular
Em suas análises o filósofo Paulo Arantes sempre chamou atenção para os limites do governo Lula, sobretudo diante de um congresso majoritariamente alinhado aos interesses da elite. E o que se viu nos últimos anos é que as pautas do governo que avançaram foi a custa de muita barganha, em especial as ditas emendas parlamentares. Mesmo assim, quando há algum projeto que vai contra os interesses da burguesia, nem as emendas evitam uma derrota do governo. Até mesmo parlamentares de partidos que ocupam ministérios no governo não pensam duas vezes em dar seu voto contrário. Nesse contexto, salvo exceções, a população em geral se comportava como espectadora nesses embates, se limitando a reagir nas disputas de narrativas nas redes sociais. Mostrando por um lado a incapacidade de diálogo (que reflete na falta de apoio) do governo com a população. E por outro lado a desarticulação do movimento sindical e popular. Diante disso, o congresso fez o que bem quis nos últimos anos sem enfrentar grande oposição por parte da sociedade civil organizada. No entanto, com tanto poder na mão, cresceu a soberba. E essa acabou se voltando contra o parlamento brasileiro comandado pelo dito centrão (na verdade a direita tradicional). O ponto de erupção do descontentamento popular - a aprovação do aumento do número de deputados. Evidenciando a contradição entre o discurso de austeridade e a farra com dinheiro público favorecendo as elites. Isso acabou abrindo uma enorme oportunidade para o fortalecimento da luta popular colocando em pauta o fim dos privilégios fiscais a uma elite abastada bem como a redução da jornada de trabalho. Pautas que alcançam um grande apoio popular. Este apoio não pode ficar apenas no âmbito virtual. Nesse sentido, as organizações da classe trabalhadora precisam desenvolver estratégias que colocam o povo na rua. Pois é através da luta popular que podemos vislumbrar a aprovação do fim da escala 6x1 e a taxação dos supericos. Além de instigar o debate necessário de quem é o congresso nacional (quais os interesses representam) e semear a necessidade de uma mudança nas eleições de 2026 com a eleição de candidatos alinhados com os anseios populares.
Plebiscito popular e a retomada do trabalho de base
Há que se reconhecer que a luta popular não estava morta. Organizações como o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e a APIB (Associação dos Povos Indígenas do Brasil) nunca deixaram de fazer o enfrentamento político em torno de suas demandas. No entanto havia a necessidade de uma articulação entre esses diferentes grupos que são vítimas de um mesmo sistema. Diante disso, a estratégia do plebiscito popular é extremamente acertada. Pois, primeiro, está resgatando um elemento fundamental numa democracia de fato - que é a escuta da população. Segundo, oportuniza um canal de diálogo que pode resultar num saldo organizativo. Ao responder um questionamento sobre se a eleição do Obama não teria criado uma falsa ilusão acerca do fim do racismo nos Estados Unidos, a filósofa Ângela Davis (2018) lembra que mudanças estruturais são frutos de movimentos de massa bem organizados. Não podemos nos iludir achando que uma hora vamos eleger um salvador da pátria. Óbvio que, para a luta popular, é melhor você ter alguém com quem você possa dialogar na presidência do que alguém que nos criminalize. No entanto, não podemos nos acomodar. Inclusive devemos, de forma organizada pressionar esse presidente para que o governo possa tomar uma linha mais progressista.
O tarifaço de Trump, o Bolsonarismo e a soberania brasileira
Uma das características do governo Trump (EUA) é o protecionismo como resposta à perda de força do imperialismo estadunidense no cenário internacional. É cada vez mais evidente que do ponto de vista econômico a China ameaça a hegemonia Ianque. De modo que as ações de Donald Trump podem ser vistas como uma espécie de desespero - de uma tentativa de retomar um protagonismo que está cada vez mais ameaçado. O Brasil não foi o único país no mundo a ser alvo das tarifas trumpistas - o que no entanto chamou atenção foi alguns dos argumentos utilizados, sobretudo a defesa do Bolsonaro. Deixando assim evidente uma questão que nenhum analista político sério poderia deixar de reconhecer - a medida foi exclusivamente política - e diria mais - uma espécie de chantagem querendo obrigar o governo brasileiro a se curvar diante do Governo Trump (que reproduz o discurso de vitimização do Bolsonaro), abrindo mão da nossa soberania. Alguns analistas até quiseram igualar a postura interventiva trumpiana a visita que o presidente Lula fez a Cristina Kirchner (em prisão domiciliar acusada de corrupção durante os seus governo a frente da casa rosada) numa reunião da cúpula do Mercosul em Buenos Aires (Argentina). O que não tem nada haver. Uma coisa é você prestar solidariedade a um aliado político que você acredita que está sendo perseguido. Outra coisa é você utilizar a máquina estatal para tentar obrigar um Estado soberano a proteger um aliado político que você acredita que está sendo perseguido. Não dá para falar que houve um erro de análise por parte dos Bolsonaros (do Eduardo sobretudo) ao acreditar que a medida de Trump iria provocar uma onda interna de pressão ao Governo Brasileiro e o judiciário a recuar do processo que investiga a tentativa de golpe de Estado promovida após as eleições de 2022. É assim que eles fazem política, não estão preocupados com as consequências para o país desde que isso signifique manter uma narrativa que permita alimentar sua base de apoio. É nesse contexto que se pode compreender as ações que levaram à prisão domiciliar do Jair Bolsonaro.
Genocídio Palestino
Não há como falar do cenário internacional sem mencionar o Genocídio que está acontecendo na Palestina com a anuência das principais potências do ocidente. Isso evidencia mais do que tudo o que o filósofo estadunidense Noam Chomsky já havia dito sobre o porque não há por parte dos governantes de países que fazem parte da União Europeia (entre outros) o mesmo posicionamento que tem em relação ao conflito entre Rússia e Ucrânia - a Palestina não tem riqueza e nem poder. E assim lavam as mãos para que o governo fascista de Israel leve adiante o extermínio do povo palestino. Ainda corroborando com a fala do Chomsky, a gente viu como o conflito com o Irã caminhou rapidamente para um cessar fogo. Se os palestinos tivessem o mesmo poder de resposta dos iranianos a coisa seria diferente. A resolução desse conflito passa por uma ampla campanha de solidariedade aos palestinos e denúncia das atrocidades cometidas pelo governo Israelense. Esse movimento é cada vez mais crescente apesar do silêncio da grande mídia. Nesse sentido, retomemos a filósofa Ângela Davis que há vários anos vem se manifestando em defesa da causa palestina e denunciando o governo de Israel. É fundamental articular as lutas contra as opressões com a causa palestina. Pois não se trata de uma questão isolada. Mas parte de um processo que reverbera na luta em defesa dos direitos humanos em todo o mundo. Por fim, concluo fazendo minha as palavras do Vladimir Safatle no encerramento da aula magna (que teve como objeto a relação da Filosofia (e do pensamento crítico) com a situação em Gaza) no departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), no início de 2024: eu gostaria de lembrar que não há liberdade sem terra e que não há vida possível sem liberdade. Com isso fica evidente que a nossa compreensão de liberdade não é abstrata como a concepção liberal. Devemos portanto lutar para que ela se concretize. E ela só se concretizará quando todos tiverem condições de existência.
Por Pedro Ferreira Nunes - Mestre em Filosofia pela UFT e Professor da Educação Básica na Rede Estadual de Ensino do Tocantins.