sábado, 20 de setembro de 2025

Resenha: Lagoa Feia, da escritora tocantinense Deise Raquel Cardoso

Quem nasceu no sertão nortense há quarenta primeira vez ou mais certamente teve a sua infância e início da adolescência marcada por estórias fantásticas que povoam a nossa imaginação. Fazendo com que tivéssemos com a natureza uma relação de encantamento. Muitos tiveram que deixar esse lugar em busca de melhores condições de vida nos centros urbanos. Ao retornar depois de anos esses lugares não são mais os mesmos. O avanço do modo de produção capitalista no campo modificou a paisagem. Expulsando povos e comunidades tradicionais. Muitos de nós tivemos o olhar de encantamento para a natureza destruído pela racionalidade tecnológica dos centros urbanos. O livro Lagoa feia, da escritora Deise Raquel Cardoso, nos ajuda a resgatar esse olhar.

Publicado em 2023 (editora Vecchio), o livro traz como protagonista a própria escritora que herda dos seus antepassados a missão de proteger um lugar sagrado que outrora pertenceu à sua família - a lagoa feia. E qual a melhor forma de proteção se não divulgar para o mundo a existência desse lugar e a partir daí sensibilizar as pessoas a protegê-lo. Óbvio que você não precisa ir para Dianópolis (TO), local onde está localizado a lagoa para fazer isso. Não faltam lugares ameaçados pelo avanço de um modo de produção predatório. Eu como um lajeadense de coração lembro nesse momento do rio Lajeado que ano após ano está secando. Eis aí, portanto, um dos aspectos que engrandece a obra. Assim como a homenagem que ela faz a personalidades que tiveram sua vida ceifada na luta em defesa do meio ambiente.

Durante a narrativa ficção e realidade vão se misturando. Chegando ao ponto que fica impossível classificar a obra. É um romance? É um livro de memórias? Não importa o que seja. O importante é a mensagem que a obra passa - certamente a mais contundente é a responsabilidade que todos nós devemos ter com os recursos naturais. Mas há outras também. O respeito aos anciões como fica evidente na sua relação com o Tio Joaquim. A resiliência diante de momentos difíceis quando deixa sua terra natal para se aventurar nos primórdios da capital do Tocantins - Palmas. Entre outros.

O professor que há em mim também não pôde deixar de lê-la e observar as possibilidades de trabalho com a obra em sala de aula. Quem trabalha com linguagens tem aí elementos com a escrita de si, as expressões regionalistas (devidamente explicadas pelas notas de rodapé), a cultura do antigo norte goiano (do sertão nortista) antes da criação do Estado do Tocantins. Quem trabalha com história também pode explorar o aspecto cultural e o início da capital, a cidade de Palmas. Em geografia tem as paisagens e a questão ambiental. Nossa relação com o meio ambiente e as diferentes perspectivas acerca da natureza pode ser explorado em Sociologia e Filosofia. Em arte os desenhos e a pintura. A questão do autoconhecimento e autocuidado, além da responsabilidade social pode ser trabalhada em projeto de vida. Enfim, as possibilidades são muitas. “Muitos sonhos sonhados, projetos selados, barracos armados, marcavam a busca por um novo horizonte, onde o sol nascia para todos…” Escreveu ela no seu diário ao chegar em Palmas.

Há que se ressaltar a edição de qualidade da editora Vecchio. Com destaques para as ilustrações a cargo da Jaque Coelho. Essas certamente são um atrativo, sobretudo para o público infanto-juvenil. A forma acessível da escrita da Deise Raquel é um ponto de destaque. É como se estivéssemos ouvindo alguém contar uma estória - dessas estórias que ouvíamos ao pé de uma lamparina na nossa infância.

Na estória deisinha recebe a missão de proteger a lagoa feia. E como falamos uma das formas que ela encontra para fazer essa proteção é escrevendo um livro. Desse modo podemos dizer que Deise faz da escrita uma arma de resistência. Como também de existência. Pois a partir da escrita ela não só cumpre a sua missão de defender a lagoa feia. Mas faz desta um sentido de vida.

Lagoa feia é um livro para pessoas sensíveis. Mas sobretudo para aquelas que perderam a sensibilidade. Que deixaram em algum canto aquele olhar que tínhamos na infância para as coisas que nos cercavam - os rios, os bichos, as serras. E nessa linha não posso deixar de lembrar das palavras do filósofo indgiena Ailton Krenak no seu ideias para adiar o fim do mundo - quando ele nos diz que quando despersonalizamos esses lugares contribuímos para sua destruição e transformação em mercadoria.

“Será que era mesmo verdade, que aquela era uma Lagoa encantada?... Será que era mesmo verdade, que aquela Lagoa escuderia um mistério envolvendo todo o mundo e o destino da humanidade?”

Questiona-se Deise. Quando perdemos a nossa capacidade de questionar? Voltando no Ailton Krenak, ele nos diz que uma das maneiras de adiar o fim do mundo é poder contar mais uma estória. E foi isso que fez Deise Raquel Cardoso. Por tanto não deixe de ler essa obra. Certamente lhe afetará de algum modo.

Pedro Ferreira Nunes - Mestre em Filosofia (UFT) e Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins.

Nenhum comentário:

Postar um comentário