quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

O livro a relíquia e a nova Secretária de Educação do Município de Palmas

Sempre que ouço alguém dizendo que é conservador penso o pior dessa criatura. Pois historicamente não faltam exemplos de indivíduos que embaixo de uma capa moralista escondem uma vida de libertinagem. A exemplo do Teodorico Raposo, personagem do romance “A relíquia” (1887) do Eça de Queiroz. De modo que você pode imaginar como fiquei ao ouvir tal declaração da nova secretária de Educação do município de Palmas - Débora Guedes.

Na obra citada acima, Eça de Queiroz de forma brilhante nos brinda com uma narrativa bem humorada que mostra as contradições de uma sociedade que tem o cristianismo na sua base de sustentação. Ao ficar órfão de mãe e pai, Teodorico passa a ser criado por sua Tia Maria do Patrocínio (Titi) - uma mulher ultraconservadora que vive para as coisas da religião. De modo que tudo que sai dessa esfera é considerado um mau por ela. Sobretudo a relação entre um homem e uma mulher. Não é de se admirar portanto, que Teodorico passará a ser educado para se comportar da mesma forma.

No entanto, à medida que vai crescendo, Teodorico caminha na direção contrária a da sua Tia. Porém, como depende desta, precisará manter as aparências. A partir daí levará uma vida dupla - na casa da tia é um religioso extremado. Quando está longe das suas vistas se entrega aos prazeres da carne.

A narrativa do Eça de Queiroz é bastante envolvente, e a forma humorada como ele descreve as situações torna a obra leve. Mesmo que esteja tratando de uma questão importante: como a imposição de determinados valores, sobretudo valores que vão contra a natureza humana, acaba formando sujeitos hipócritas.

Cabe aqui falar um pouco do conceito de hipocrisia - essa palavra que tem origem no grego ypokritís e se refere aos atores que precisavam mudar de máscara conforme o papel que estavam representando. É utilizado, na contemporaneidade, como um adjetivo para se referir a alguém falso, ou com uma dupla identidade. Ou seja, aquilo que denominamos de mau-caratismo.

É o caso do Teodorico que se convence que para se tornar herdeiro da Tia, e a partir daí se libertar (chegando ao ponto inclusive de desejar sua morte o mais rápido possível), terá que parecer aos olhos da beata, um santo. O final dessa história não é diferente do que lemos quase todos os dias nos jornais - as máscaras sempre caem. Como no caso do pastor que foge com a mulher do seu enteado. Da descoberta de inúmeros casos de pedofilia envolvendo religiosos. Ou de casos extraconjugais envolvendo políticos conservadores.

Não vamos entrar em detalhe de como Teodorico é desmascarado por Titi para não tirar daqueles que se interessarem em ler o romance, em fazê-lo e descobrir por conta própria. Ou seja, como dona Maria do Patrocínio descobre que Teodorico não é nada daquilo que ela pensava. Ou talvez ela sempre soubesse, mas esperava que estivesse enganada.

Não estamos aqui comparando a senhora Débora Guedes ao senhor Teodorico (ou a Tia dele) - até porque a vida privada da nova secretária da educação da capital só interessa a ela. Já o que ela faz enquanto agente público, sim. Sobretudo se pretende, tal como tentou a senhora Patrocínio, impor uma educação conservadora na Rede Municipal da Educação de Palmas.

É importante destacar que a nomeação de Guedes para a pasta da educação na gestão Eduardo Siqueira Campos não é nenhuma surpresa. Surpresa seria um político da direita tradicional nomear alguém progressista para esse cargo. Também seria surpresa esperar de uma missionária de uma igreja protestante, que se diz conservadora, outro discurso se não o que ela proferiu. Ainda que a mesma seja Mestre em Educação pela Universidade Federal do Tocantins (UFT).

No entanto espera-se que a senhora Débora tenha consciência de que a educação pública tem como princípio a laicidade e o respeito à pluralidade. Ou seja, quem se identifica com o conservadorismo tem todo o direito de defendê-lo, e sobretudo praticá-lo. Mas já mais de impor essa perspectiva a quem pensa de forma diversa. Sobretudo através do discurso de que a escola deve ser livre de ideologias. Pois sabemos que isso na prática significa ausência de pensamento crítico. E a ausência de pensamento crítico certamente contribui para a formação de sujeitos hipócritas como o personagem de Eça de Queirós (Teodorico) que o maior arrependimento não foi ter sido desmascarado pela Tia - mas não ter tido a capacidade de reverter a situação inventando outra mentira com a seguinte justificativa:

- Não mostram os santos missionários de Braga, nos seus sermões, bilhetes remetidos do céu, pela virgem Maria sem selo? E não garante a Nação a divina autenticidade dessas missivas, que têm nas dobras a fragrância do paraíso?

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

sábado, 25 de janeiro de 2025

Sobre o abaixo-assinado pela desativação total do Lixão em Lajeado

A discussão acerca da destinação dos resíduos sólidos (lixo) em Lajeado (TO) não é nova. Há alguns anos essa pauta foi inclusive objeto de debate na Câmara Municipal de Lajeado, puxada pelo então Vereador Edilson Mascarenhas (Nego Dilson), hoje Secretário da Administração. Naquele período ainda funcionava a usina de triagem implementada no período de construção da Usina Hidrelétrica Luiz Eduardo Magalhães. E o debate no legislativo municipal se deu em torno do questionamento da localização da usina e da proposta de um possível consórcio com as cidades vizinhas  para um melhor descarte desses resíduos.

De lá para cá algumas coisas mudaram. Entre essas mudanças tivemos a desativação da usina de triagem e os resíduos sólidos passaram, segundo a gestão municipal, a ser encaminhada para Porto Nacional. No entanto, o local continua sendo usado para o descarte dos resíduos - até que o seu transporte seja feito para o seu destino final. Nesse meio tempo esses resíduos ficam contaminando aquela área. E a falta de uma maior fiscalização do local contribui para que esses resíduos sejam descartados de qualquer forma. Ou seja, no final das contas, a desativação da usina de triagem sem uma alternativa inteligente acabou gerando mais problemas. Sobretudo com a expansão urbana naquela região dando vida ao setor entre serras. E a construção e consolidação da praia do Segredo como o principal ponto turístico local.

Nesse novo contexto tornou-se ainda mais necessário a desativação daquele lugar como um ponto de descarte dos resíduos sólidos (lixo) produzido no município. Pois o impacto tanto na qualidade de vida de quem mora naquela região como na economia local é imenso. E os danos ao meio ambiente podem ser irreversíveis.

A cidade tem consciência disso. Tanto que diversas pessoas vêm apontando para esse problema já há algum tempo. E defendendo a necessidade de se pensar uma alternativa sustentável para os resíduos sólidos produzidos pelo município. A partir daí surgiu projetos como o Cidade Limpa e Artesanato Sustentável, que fazem um trabalho de referência, mas que são insuficientes para dar conta do problema. Até porque há resíduos que não são recicláveis e reutilizáveis.

Diante disso, aproveitando uma nova gestão à frente da Prefeitura Municipal de Lajeado e uma nova legislatura na Câmara de Vereadores, moradores do setor entre serras resolveram promover um abaixo-assinado com o objetivo de sensibilizar as autoridades locais, e a comunidade no geral, para o problema. Nesse sentido, a estratégia  dos moradores já pode ser considerada vitoriosa. Pois a recepção e repercussão da iniciativa por parte da comunidade tem sido unanimemente favorável.

Esse apoio ainda não tem sido traduzido em adesão pública, por meio das assinaturas, ao abaixo-assinado. Mas isso é mais reflexo de uma cultura de medo de perseguição política do que de desacordo com a iniciativa dos moradores do setor entre serras. Até porque tal demanda é de interesse, ou deveria ser, da própria gestão municipal assim como de toda comunidade. De modo que acreditamos que mesmo aqueles que se silenciam apoiam a desativação total do lixão em Lajeado.

Desse modo, independente do número de assinatura (isso não quer dizer que quem ainda não assinou, não deva assinar), os moradores do setor entre serra, por meio do abaixo-assinado, trazem o debate da gestão dos resíduos sólidos em Lajeado para a pauta do debate político. Dando visibilidade a um problema que muita gente não sabia. Por exemplo, num comentário numa rede social que mostra a situação no local, IL diz o seguinte:

“Lamentável que uma cena dessa exista, principalmente em um município com tanta beleza natural e as margens de um rio. É preciso mobilização da população e dos órgãos de controle”.

Nessa linha é preciso lembrar que Lajeado faz parte de uma área de proteção ambiental (APA Serra do Lajeado) - que foi criada por meio da lei estadual n° 906 de 20 de maio de 1997, com o objetivo de “garantir a conservação da fauna, da flora e do solo” como também a “qualidade da água”. Também não podemos esquecer da lei federal (n° 12.305,  de 2 de agosto de 2010), que institui a política nacional de resíduos sólidos. Que, entre outros, estabelece no seu art. 47. Proibir as seguintes formas de destinação ou disposição final de resíduos sólidos ou rejeitos: I - lançamento em praias, no mar ou em quaisquer corpos hídricos; II - lançamento in natura a céu aberto, excetuados os resíduos de mineração; III - queima a céu aberto ou em recipientes, instalações e equipamentos não licenciados para essa finalidade; IV - outras formas vedadas pelo poder público.

Ou seja, não estamos falando de um problema qualquer. Mas de algo que pode levar a penalização do município pelo não cumprimento do que determina a legislação vigente.

Não é isso que quer os responsáveis pelo abaixo-assinado. Pois se não entrariam diretamente com uma denúncia no Ministério Público. O objetivo é mais de sensibilizar os entes públicos locais e contribuir com a discussão em busca de uma alternativa.

Diante disso, não só apoiamos essa iniciativa por compreendê-la como fundamental na defesa de um desenvolvimento sustentável e consequentemente na garantia dos direitos humanos da comunidade local. Como também conclamamos aqueles que ainda não aderiram, a aderirem à iniciativa por meio de uma assinatura. Para alguns pode ser apenas um gesto simples, para as pessoas que vivem ali a possibilidade de uma melhor qualidade de vida. Vamos, portanto, fortalecer essa luta.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

A Ilha dos Espíritos: Capitulo 23 - A estória de um amor impossível

Era meados de 1940 – o paulista Sebastião Bandeira desbravava o norte goiano em busca de pedras preciosas. Como na região de Arraias e de Natividade o garimpo estava em decadência decidiu se embrenhar mais para o interior do norte goiano – ainda não tão conhecido e muito pouco desbravado. Foi nessas andanças que Tião – como era conhecido. Chegou a uma região lajeada de pedras, rodeada por serras e banhada por uma fonte inesgotável de água. Seu faro de garimpeiro lhe disse que encontraria ali muito ouro. 

Foi então que Tião estabeleceu um grande garimpo nesta região. O que logo atraiu garimpeiros de várias partes do país em busca de ouro e diamante. A região de exploração do garimpo logo se tornou um povoado – que foi batizado com o mesmo nome do córrego que banhava o lugar – Lajeado. Com o enfraquecimento do garimpo na região – Tião cansado da vida de explorador decidiu constituir família e permanecer no local. 

Toda a riqueza que Tião tinha acumulado até então decidiu por investir na compra de terras e na criação de gado. Casou-se com Tereza Maria com quem teve três filhos – Sebastião Jr, Miguel e Rosa. Sebastião e Miguel foram mandados pelo pai, estudar na capital goiana, já Rosa permaneceu ao lado dos pais no povoado de Lajeado. 

Rosa era criada de forma rígida, sem nenhuma liberdade. Vivia trancada em casa, não podendo se quer estudar. Quando tinha 14 anos a jovem se apaixona por um peão da fazenda do pai. O negro Romualdo igualmente amava Rosa. No entanto ambos sabiam que aquele romance já mais seria permitido por Tião. Mesmo assim Rosa e Romualdo se arriscam se encontrando secretamente.

Tião um dia ao procurar por Romualdo encontra-o com sua filha – colérico de raiva manda os outros peões prender Romualdo e o castiga-lo severamente. Rosa por sua vez também seria trancafiada em seu quarto e seria obrigada a entrar para um convento. 

Romualdo é torturado severamente tal como Tião fazia com os escravos que ele explorava no tempo do garimpo. Mesmo sob a forte tortura Romualdo consegue sobreviver. E através de um amigo descobri que Tião pretende mandar Rosa para um convento. Se tal plano se concretizasse seria a morte de Romualdo. Pois ele não conseguiria viver sem sua amada. Assim mesmo debilitado devido à tortura que havia sofrido, Romualdo estava disposto a desafiar o patrão e fugir com sua amada, se assim ela quisesse. 

- Você está louco Romualdo. Cale essa boca. Se o patrão ti ouvir dizendo essas asneiras irá mandar ti matar. - Eu prefiro a morte a ter que viver longe dela. 

- E será isso que vai acontecer contigo se você não se colocar no seu lugar. Onde já se viu um peão se engraçar com a filha do patrão! 

- Eu preciso da tua ajuda camarada. Preciso que você entregue um recado para Rosa. Diga a ela que estou disposto a fugir com ela. 

- Não Romualdo. Não posso fazer isso. Se me pegarem, além de ti, matam a mim também. 

- Sei que você achará um jeito de passar o recado pra ela sem que ninguém descubra. Faça isso como o ultimo pedido de um amigo, de um irmão. 

- Não vou ti prometer nada Romualdo. Mas ti garanto que irei tentar. 

Com muito cuidado o amigo de Romualdo consegui passar o recado dele para ela. Rosa que desde então sofria com a possibilidade de nunca mais ver seu amado – enche o coração de alegria e esperança. A fuga seria perigosa, mas Rosa preferia morrer com seu amado a ter que morrer longe dele – sem a possibilidade de nunca mais vê-lo. 

 - E quando será? 

- Ele não me disse. Mas esteja preparada que a qualquer hora ele aparece e vocês fogem.

Romualdo planejava fugir com sua amada nas vésperas em que ela seria mandada para o convento em Goiânia. Miguel – irmão de Rosa – que morava em Goiânia. Veio especialmente busca-la. 

Era noite de lua cheia. Todos já estavam repousando – No dia seguinte bem cedinho Miguel juntamente com sua irmã Rosa seguiria rumo a capital goiana. No entanto Romualdo e Rosa tinham outros planos. Percebendo que todos já estavam repousando Romualdo com a ajuda do amigo consegue chegar até o quarto onde Rosa estava. Essa por sua vez não acreditou quando viu o amado, pois já havia perdido a esperança de que ele viesse liberta-la daquela prisão e juntos fugissem rumo à felicidade. Quando seus olhos se encontraram abraçaram-se fortemente e se beijaram ternamente. 

- Vamos? Tá na hora. Falou Romualdo. 

- Sim vamos. Respondeu ansiosa, Rosa. – achava que você não viesse mais. 

- Mesmo que custe a minha vida. Eu já mais ti deixaria partir para longe de mim. Eu ti amo Rosa, ti amo mais do que tudo. 

- Eu também ti amo Romualdo. Eu prefiro a morte a ter que viver longe de ti. 

- Vocês precisam ir. Deixa essas declarações pra outro momento. 

- Certo. Obrigada por tudo camarada. Já mais vou esquecer o que tu fez por mim. 

- Muito obrigada Romildo, muito obrigada. 

E então Romualdo juntamente com sua amada seguiu cautelosamente para que não fossem descobertos. Cada vez mais se afastavam daquela casa que se tornara uma prisão para eles. Os cães latiam tentando alertar sobre a fuga, mas como era de costume o latido dos cães não despertaram ninguém, nem mesmo os peões responsáveis por cuidar da segurança do local deram atenção para aqueles latidos – provavelmente pensaram se tratar de algum viajante cortando aquelas paragens. Enquanto isso Romualdo e Rosa seguiam com um misto de felicidade e apreensão, estavam cada vez mais longe do seu cativeiro, no entanto eles sabiam que assim que a fuga dos dois fosse descoberta, eles seriam caçados como se fossem animais. E dessa vez Tião não perdoaria, Romualdo seria morto, já Rosa não teria destino muito diferente. Por tanto eles precisavam andar depressa – precisavam logo esta bem longe daquele local, pois as horas iam chegando e muito em breve quando fossem despertar a Rosa – descobririam sua fuga. 

- Tereza vai acordar Rosa. Já são 04h30 da manhã e é hora dela acordar para tomar o café e começar a viajem. 

- Tião, Tião. A rosinha sumia, não está aqui. 

- Procure ela já por todas as partes. Cadê o Romualdo? 

Assim que soube do sumiço da filha, Tião deduziu rapidamente que ela havia fugido com o negro Romualdo. Perguntou por ele, mas já sabia a resposta. 

- Sumiu também patrão. 

- Eu quero todo mundo atrás desses dois já. E os quero vivo ou morto. Tião ficou colérico ao saber da fuga de sua filha com seu peão – o negro Romualdo. Imaginava como Romualdo pode ter tamanha audácia em fugir com sua filha. Mas ele não perdoaria essa audácia – tinha dado uma chance para Romualdo, no entanto dessa vez não perdoaria, assim que fosse encontrado Romualdo seria morto. Já Rosa – ela não perderia por esperar. Também seria severamente castigada por desafia-lo e depois seria trancafiada eternamente num convento. 

Tião, Miguel e um grupo de peão seguiram a cavalo vasculhando as casas do povoado de Lajeado e das fazendas vizinhas em busca de sua filha Rosa e de Romualdo. 

- Vamos revirar tudo que sei que eles ainda estão nessa região. Eles não estão muito longe. 

E Tião tinha razão. Com o raiar do sol Romualdo decidiu se esconder com sua amada em uma grota ao pé da serra do lajeado, pois não era seguro continuar a fuga durante o dia. E assim que escurecesse seguiriam viagem. Enquanto isso a caçada ao casal de apaixonados não cessou um minuto. No entanto os dois não foram encontrados. 

Mais uma noite se aproximava. Tião ordenou que seus peões ficassem atentos, pois sabia que era durante a noite que Romualdo e Rosa desentocariam e continuariam a fuga.

Assim que a escuridão tomou conta da paisagem Romualdo e Rosa – deixam o esconderijo e prosseguem a viajem. Quando já se aproximava da meia noite eles adentram ao povoado de Lajeado. Na altura do pé de pequi um peão que estava de tocaia reconheceu os dois fujões e rapidamente deu um tiro de bucheira para cima no intuito de avisar seu patrão. Tião e seu bando logo se colocaram no encalço do casal.

- Os encontram. Vamos pega-los. 

Quando Romualdo percebeu que haviam sido descobertos buscou refugio em um brejo próximo ao pé de pequi. 

- Aqui eles não nos pega. Tião e seu bando cercaram os dois, assim Romualdo e Rosa tinham apenas duas alternativas – darem prosseguimento a fuga atravessando o córrego Lajeado ou se entregarem. Se decidissem atravessar o córrego poderiam morrer afogados, pois era período de chuva  – o córrego estava cheio, a correnteza furiosa além do que poderiam ser atacados por algum animal feroz – uma sucuri ou um jacaré. Mas se decidissem se entregar – Romualdo muito provavelmente seria morto e Rosa não escaparia do destino de ser trancafiada num convento. 

- E agora? O que vamos fazer meu amor? Acho melhor desistirmos e nos entregarmos. 

- Não, isso não. Não posso me entregar. Eles me mataram. Você pode voltar. Eu vou seguir. Vou tentar atravessar o córrego a nado. Depois eu volto para ti buscar. 

- Não Romualdo. Eu vou contigo. Essa é a única chance que temos de fugir juntos. 

- Mas meu amor. Você não conseguirá atravessar o córrego. Se eu seguir sozinho terei mais chance de sair do outro lado com vida. E eu juro pelo nosso amor que volto para ti buscar. 

- Não Romualdo. Eu prefiro morrer tentando a voltar para aquela prisão. Vamos tentar. Não me deixe. Me leve contigo. 

- Tudo bem Rosa. Seja o que deus quiser. Vamos atravessa o córrego juntos meu amor. Vamos conseguir e vamos ser felizes.  

Enquanto isso Tião e seu bando já haviam entrado no brejo. Não demoraria muito para que Romualdo e Rosa fossem encontrados. Sobretudo depois que Tião mandou os peões tocarem fogo nas palhas secas de buriti. 

- Ou eles saem ou morreram queimados. 

- Com certeza seu Tião. Pois o Romualdo não é doido de tentar atravessar o córrego. 

- Cheio como está morreriam afogados. 

Romualdo segura na mão de sua amada, dá-lhe um beijo apaixonado e lhe diz: - é agora meu amor. E pulam na água. 

- Patrão, patrão. Lá estão eles. Estão loucos pularam no córrego. Vão tentar atravessar. 

Como Romualdo imaginava as águas estavam muito forte e profunda. Logo Rosa se cansa e é puxada pela correnteza – estava se afogando e não conseguiria escapar. Romualdo tenta salvar sua amada, mas também é puxado pela correnteza para o fundo d’água. Mesmo com todos os seus esforços para escaparem daquela situação – os dois morrem afogados ao pé da cachoeira. Tião apenas observava a cena como se quisesse ter certeza de que não conseguiriam atravessar. A lua cheia no meio do céu deixava o lugar claro como o dia – e Tião pode ver quando sua filha e o seu peão afundaram pela ultima vez naquela correnteza e não apareceram mais. Sim estavam mortos. No olhar de Tião nenhum pingo de tristeza, nenhum pingo de remorso – ele apenas ordenou a seu bando que todos voltassem para fazenda. 

Tempos depois o local onde Romualdo e Rosa morreram afogados se tornaria o balneário Ilha Verde - ponto turístico do povoado que se tornaria o município de Lajeado. Naquela noite de lua cheia – ás águas do córrego Lajeado não levara apenas a vida de Romualdo e Rosa, mas também a vida do fruto deste amor que estava sendo gerado na barriga dela. 

Os três jovens acompanharam o relato daquela tragédia contada pela avó de João – perplexos. Até então aquela tragédia que havia acontecido no seio da família de João permanecia em segredo. Poucas pessoas em Lajeado sabiam dessa estória. Tal fato se dava pelo fato daquela tragédia ter ocorrido no seio de uma família tradicional da cidade. Uma família que tinha feito de tudo para que tal estória fosse esquecida. Tião nunca aceitou o fato de que sua filha se apaixonasse por um peão. E ainda mais que o desafiasse fugindo com esse peão. Por tanto era melhor que morressem mesmo. 

E pelo que se sabe – Romualdo e Rosa, juntamente com o fruto do amor proibido que ela carregava na barriga – foram os primeiros a morrerem afogados naquelas águas. No entanto ficava uma pergunta no ar: 

– O que essa estória tinha a ver com as mortes que passaram a acontecer na ilha com maior frequência desde então? Esse era o próximo desafio do grupo – Responder essa questão.

Pedro Ferreira Nunes, in A Ilha dos Espíritos.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Lajeado: pelo respeito à soberania popular expressada nas eleições do dia 06 de outubro de 2024

Por muito tempo colocou-se na conta de Maquiavel a ideia de que para se manter no poder o governante deve utilizar todos os meios ao seu dispor. Ainda que estes sejam questionáveis do ponto de vista ético. Mas quem estuda criticamente a filosofia política do pensador florentino compreende que não é bem assim. O que Maquiavel salienta a partir dos conceitos de virtu e fortuna é que o governante deve agir com inteligência para manter o poder e não de qualquer forma para que tenha sua cabeça degolada pelo povo.

Lembrei dessa questão ao saber da manobra que estão fazendo para mudar o resultado das eleições municipais para Câmara de Vereadores de Lajeado no dia 06 de outubro de 2024.

Em se tratando de política lajeadense não podemos dizer que seja surpresa. Mas não deixa de ser surpreendente vê o que são capazes de fazer para se manter no poder. Ainda que isso signifique passar por cima da soberania popular expressada por meio dos votos depositados nas urnas.

Tal atitude mostra a mediocridade dessas figuras que não pensam na população lajeadense mas somente nos seus interesses. E que com a derrota do Tércio para Márcia acabaram encontrando uma conjuntura favorável que possibilitou a manipulação de criaturas miseráveis - facilmente descartadas quando já não lhes forem úteis.

Não, não nos iludamos. Não dá para apelar para consciência dos envolvidos. Pois eles não as tem. É como aquele personagem da saga dos senhor dos aneis - Gollum (Sméagol) - corrompido pelo anel do poder.

Eles nos amaldiçoaram… Nos chamaram de assasino… Nos amaldiçoaram, e nos jogaram fora!... E nós choramos precioso; onde estar o tal assasino?.... E nos esqueceu do gosto de pão, do barulho das árvores ao redor do vento.. E nós esqueceu até: do nosso nome... Meeeu preecciossoooooo......

—Gollum em O Retorno do Rei

Qual o legado que essas figuras que estiveram mais de um mandato na Câmara de Vereadores de Lajeado deixaram? O resultado da votação do dia 06 de outubro de 2024 é a resposta para essa pergunta. Se tivessem tido, sobretudo nos últimos quatro anos, uma boa atuação certamente seriam facilmente reeleitos ou eleitos.

Quanto a nós que desejamos melhores dias para a querida cidade de Lajeado, esperamos que a soberania popular seja respeitada - que aqueles que foram eleitos nas urnas possam cumprir o seu mandato. E se ao final dele não corresponderem aos anseios da população, que o povo soberanamente, eleja novos representantes.

A estes que tentam manter o poder a qualquer custo, podem até conseguir. Mas ficaram para a história política de Lajeado como traidores da vontade do povo. E pagaram alto por isso. A vitória da Márcia Reis nas condições que ela foi eleita deveria ser um exemplo. Mas não dá para esperar de gente medíocre uma postura diferente.

Começamos com Maquiavel, concluímos com Rousseau. Este filósofo fala da soberania inalienável do povo. Ou seja, do fato de que o poder não pertence a uma figura específica, mas ao povo - que elege aqueles que deverão representá-lo, mas isso não significa abrir mão dessa soberania. Diante de tal manobra que em última análise vai contra a soberania popular, não podemos ficar de braços cruzados. Pelo contrário, devemos nos mobilizar e lutar para que nossa soberania seja respeitada.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

sábado, 7 de dezembro de 2024

Relato de Experiência: Ensino de Filosofia e Educação em Direitos Humanos

Área de Proteção Ambiental Serra do Lajeado 

Uma educação que se propõe libertadora não pode se furtar em trabalhar a temática dos direitos humanos na sala de aula. Foi a partir dessa compreensão que trabalhamos, na perspectiva do materialismo histórico-dialético, o tema na trilha de aprofundamento vozes da juventude: passado e presente para um futuro diferente. No contexto de uma pesquisa participante, de caráter qualitativa, no programa de mestrado profissional da Universidade Federal do Tocantins  (PROF-FILO).

A questão dos direitos humanos não é alheia a educação formal. Pelo, contrário. Há diferentes documentos que orientam esse ensino. Só para citar um exemplo, destacamos o Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNH3) de 2009, que propõem trabalhar os direitos humanos na educação básica numa perspectiva transversal tendo como obejtivo a (2009) “formação de sujeitos de direito, priorizando as populações historicamente vulnerabilizadas”.


Nosso locus

As atividades foram desenvolvidas no Colégio Estadual Nossa Senhora da Providência – localizado em Lajeado – cidade que faz parte da Área de Proteção Ambiental Serra do Lajeado. Com estudantes do Ensino Médio  (1° e 2° Série do Ensino Médio) que participam da Trilha Vozes da Juventude. O perfil dos estudantes é de indivíduos oriundos das classes populares – servidores públicos, autônomos, pequenos agricultores e pescadores (na sua grande maioria em situação de vulnerabilidade). Além de viverem numa área de proteção ambiental também tiveram sua vida modificada com o impacto da construção da Usina Hidrelétrica Luiz Eduardo Magalhães. 


O que são direitos humanos 

Nosso ponto de partida não poderia ser outro se não começar por entender o que são direitos humanos. Sobretudo diante de uma visão distorcida que se tem acerca dos mesmos. Sobretudo no Brasil – onde a temática é muito ligada a área da segurança pública – como reflexo da violência policial sustentada por discursos como “bandido bom é bandido morto”, “gente de bem”, “direitos humanos é direito de bandido” entre outros.

Mas quando analisamos que a inserção da temática dos direitos humanos no Brasil se deu no contexto da resistência contra os crimes cometidos pelo Estado durante a Ditadura Civil-Militar é compreensível que aja todo um discurso que busca justificar a violação desses direitos. Sobretudo por parte daqueles que deveriam garantir a sua efetividade – os agentes públicos. 

Diante disso não é possível falar em direitos humanos sem falar em política. Pois a sua efetividade passa necessariamente por uma compreensão da política como meio para se alcançar o bem comum. Também não é possível falar em direitos humanos sem falar em ética. Ou seja, em quais valores se funda a sociedade. No caso da brasileira, de acordo com a Constituição Federal de 1988, um dos seus fundamentos é a dignidade humana. E o que são os direitos humanos se não a garantia da dignidade humana?!


Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável  (ODS)

A garantia da dignidade humana passa pela construção de uma cultura de respeito ao outro. Como também de um conjunto de ações que permitam aos individuos viverem com dignidade independe da sua origem social. É nesse sentido que caminha os objetivos para o desenvolvimento sustentável elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU) que estabelece um conjunto de metas a serem alcançados até 2030 pelo conjunto das nações que a compõe. Entre estas está o Brasil.

Foi a partir desses objetivos que buscamos trabalhar a temática dos direitos humanos em sala de aula. E a partir daí mostrar que não é uma questão alheia a realidade que muitos vivem – uma realidade de violação de direitos, mas por falta de compreensão não buscam mudar tal realidade.

Ao todo a ONU estabeleceu 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável  (ODS). Optamos por trabalhar apenas 7 – aqueles mais condizentes com a realidade que os estudantes estão inseridos – e que nos permitia o maior aprofundamento em cada um deles:

(ODS 1) Erradicação da Pobreza; 

(ODS 4) Educação de qualidade; 

(ODS 6) Água limpa e saneamento básico; 

(ODS 8) Trabalho e crescimento econômico;

(ODS 11) Cidades e comunidades sustentáveis; 

(ODS 12) Consumo e produção sustentável;

(ODS 13) Combate às alterações climáticas. 


Metodologia e Didática 

Optamos por desenvolver as aulas a partir de uma metodologia problematizadora, tendo como fundamentação teórica o materialismo histórico-dialético. Que nada mais é do que uma Filosofia da práxis. O ponto de partida é sempre o entendimento do estudante sobre o problema em análise. A partir daí busca-se um aprofundamento a partir de exercícios diversos. É então que entra a didática pautada sobretudo no diálogo. É através do diálogo que buscamos compreender o problema tanto a partir de uma perspectiva filosófica quanto científica. 

Um aspecto interessante dessa perspectiva didático-metodológica é que a sala se transforma numa espécie de oficina experimental. Ou seja, é a partir da dinâmica da sala de aula que o processo vai sendo construído. Óbvio que temos todo um planejamento e organização. De modo que toda a experimentação não é aleatória, não é um improviso sem sentido. Mas no sentido de compreender que trabalhar a partir de uma perspectiva histórico-dialética é que não existe fórmula prévias de como fazer. Ou como diria belchior – “é caminhando que se faz o caminho” e assim fizemos.


O resultado

Desde o início tínhamos a proposta de elaborar um material didático sobretudo diante da escacez, tanto a nível regional como nacional, de publicações que subsidiasse o professor na sala de aula. Pensávamos numa cartilha. O problema é que não tínhamos em o que nos inspirar. 

A partir de um questionamento a ideia passou a ser uma cartilha ilustrada pelos próprios estudantes. O ineditismo da proposta – pelo menos na nossa visão – não nos dava nenhum norte de como fazê-la. E assim iniciamos o trabalho. No final das contas a cartilha foi o menor dos nossos problemas. Sua confecção foi uma consequência natural do trabalho desenvolvido em sala. Na medida que este ia se desenvolvido a cartilha ia tomando corpo.

Eis ai portanto o resultado do nosso trabalho ao longo de dois bimestres. E esperamos com ele não só chamar atenção para a problemática da necessidade da efetividade da educação em direitos humanos. Mas também disponibilizar um material didático, desenvolvido a partir da realidade da sala de aula, para quem queira assumir esse desafio que é trabalhar a educação em direitos humanos numa realidade – que muitas vezes – nega esses direitos.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Desafios para valorização dos povos indígenas no Tocantins

Fiquei pensando nesse problema durante um bate-papo etnocultural com o Célio Kanela - Diretor de Proteção aos Indígenas, da Secretaria dos Povos Originários e Tradicionais do Tocantins (SEPOT). Realizado no dia 11 de Novembro no Colégio Santa Rita de Cássia. Ainda que breve, o bate-papo nos mostrou o quanto desconhecemos os povos indígenas e os desafios que eles enfrentam.

A fala do Célio Kanela iniciou com o questionamento acerca de quantos povos indígenas encontramos no Estado do Tocantins. Para em seguida apresentar quem são e onde estão localizados. Até 2021, o governo do Tocantins reconhecia 9 povos: Karajá, Xambioá, Javaé (que forma o povo Iny) e ainda os Xerente, Apinajè, Krahô, Krahô-Kanela, Avá-Canoeiro (Cara Preta) e Pankararu. Com uma população, segundo o IBGE, acima de 14 mil indígenas. Para Célio a realidade é outra: o Tocantins possui atualmente 16 etnias, incluindo aqueles que recentemente migraram da Venezuela.

Outro ponto que certamente é de desconhecimento da população em geral é em relação à localização dos povos indígenas. Célio ressaltou que além das aldeias há um quantitativo significativo de indígenas vivendo na zona urbana. Destacando que dos 139 municípios tocantinenses, 125 têm indígenas. E a partir daí questionou quais as políticas públicas, criadas pelo poder público municipal, voltadas para essa população, existem nessas localidades.

Célio Kanela nos apresentou os municípios onde há maior presença de indígenas com Tocantínia no topo, onde mais de 54% da sua população é de indígenas. Os demais são: Goiatins, Tocantinópolis, Lagoa da Confusão, Formoso do Araguaia, Itacajá, Pium, Gurupi, Palmas e Maurilândia do Tocantins.

O que se observa em relação às políticas públicas é que tanto o governo Federal (na saúde) como o Estadual (na educação) têm tido uma preocupação e agido concretamente nesse sentido. Mas quando vamos para os municípios que é onde as pessoas vivem não encontramos tais políticas. Podemos pegar como exemplo o município de Palmas onde há um número significativo de indígenas. Qual a política existe voltada para esse público?

A nível regional a criação da Secretaria dos Povos Originários e Tradicionais do Tocantins (SEPOT), seguindo a estrutura do Governo Federal, é certamente uma grande conquista. Ainda mais pelo fato dessa secretaria ser comandada pelos próprios indígenas. Pois não tem ninguém com maior propriedade para falar em nome dos povos indígenas se não os indígenas.

Isso foi certamente um dos aspectos que tornaram o bate-papo tão significativo para aqueles que participaram dele. Durante a fala do Célio Kanela foi possível perceber o interesse e curiosidade dos participantes no que estava sendo dito. O interesse se dá porque é algo que faz parte da nossa matriz cultural, ou seja, uma herança que todos nós carregamos de alguma forma. E a curiosidade porque se houve muitas coisas acerca dos hábitos e costumes dos indígenas, mas que não correspondem à realidade. O que pudemos observar durante a fala do Célio Kanela - que nos apresentou brevemente a característica desses povos, ressaltando a língua, rituais bem como modo de organização.

Certamente são muitos os desafios para valorização dos povos indígenas no Tocantins. Entre estes o conhecimento da cultura e de sua história, história escrita por eles. Nesse sentido, a educação cumpre um papel fundamental. Por muitos anos, e ainda hoje, as escolas têm apresentado uma imagem caricata do indigena. Como se este tivesse parado no tempo do descobrimento (invasão). Isso precisa mudar. Precisamos dar voz aos próprios indígenas - pois ninguém melhor do que eles em mostrar a realidade que vivem.

Foi isso que fez o Célio Kanela - que na sua intervenção final questionou o discurso de que os povos indígenas representam uma ameaça ao desenvolvimento econômico do território em que habitam. Pelo contrário, os territórios onde estão localizados as comunidades indígenas são verdadeiros santuários preservados, propícios para o turismo ecológico. Por outro lado, ele não deixou de apontar as ameaças, representadas sobretudo por um modelo de produção agropecuário predatório que ameaça os territórios indígenas e a sua biodiversidade.

Enfim, foi um bate-papo muito agradável em que aprendemos muito. Que esse aprendizado possa contribuir para que tenhamos um olhar mais solidário aos povos indígenas que habitam esse território. Ao contrário daquele que encontramos em obras como História do Tocantins (1989), do Osvaldo Rodrigues Póvoa, onde os indígenas são retratados como indolentes. Nesse sentido, políticas públicas de valorização dos povos indígenas e seus territórios são fundamentais.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

sábado, 30 de novembro de 2024

Vladimir Safatle: Alfabeto das Colisões

Que é isso, meu caro Safatle! Essa foi a frase que me veio à cabeça lendo o “alfabeto das colisões", do Vladimir Safatle. Numa linguagem direta, o filósofo traz um olhar incômodo sobre o cotidiano e, a nós mesmos, que parecemos, em que pese o discurso contrário, termos nos acomodado com as coisas tal como são. Ao longo da leitura sua reflexão vai despertando em nós diferentes emoções que vão do riso ao choro. Isso mesmo, acredito que  é impossível não chorar diante do texto que fecha o livro (como termina o alfabeto).

Safatle é um dos intelectuais brasileiros mais ativos na última década. Com uma produção vasta sobretudo na esfera acadêmica que vai da política à estética. Mas que não foge do debate público por meio de artigos em jornais, revistas, entre outros. Algumas das suas obras publicadas são: Dar corpo ao impossível: O sentido da dialética a partir de Theodor Adorno (2019), Só mais um esforço… (2017), O circuito dos afetos: Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo (2015), Cinismo e falência da crítica (2008).

Em alfabeto das colisões, na minha análise, o objeto do filósofo é a linguagem. Através de textos escritos no estilo de crônicas, dialogando com o conto e a poesia, ele nos mostra como a nossa linguagem vai sendo moldada não só para que nos expressemos de determinada forma, mas também que nos comportemos de determinada forma. Cada texto é representado por uma letra do alfabeto, mas que não segue a ordem estabelecida de A a Z. São 24 ao todo que perpassam por diferentes assuntos: filosofia, identidade, amor, sexo, música, cinema, arquitetura entre outros. A publicação é de 2024, e tem como responsável a ubu - que preparou uma edição de extrema qualidade. Com destaque para as imagens que estão no contexto de reflexão do filósofo.

Numa espécie de subtítulo, Vladimir Safatle define seu alfabeto das colisões de “filosofia prática em modo crônico”. Para mim, é exatamente isso. Reflexões filosóficas no estilo de crônicas. Com essa estratégia o filósofo entrega uma obra para o público em geral. Que não terá dificuldade de compreender sua escrita durante a leitura.

Eu particularmente aprecio bastante este tipo de escrita. E acredito, partindo da minha experiência, que quando nos afastamos da estrutura acadêmica não tornamos o texto menos filosófico. Pelo contrário. Afinal de contas, os clássicos da filosofia não são produtos de mestrados e doutorados.

Um dos trechos que mais me afetaram durante a leitura é do texto intitulado de mercadoria, onde encontramos o seguinte trecho: “nós falamos a linguagem deles, por isso, mesmo quando vencemos, são eles que vencem”. E traz como exemplo o discurso acerca do empreendedorismo como forma de emancipação.

“As quebras são nosso destino porque somos seres em relação. Não há como evitar quebras porque procuramos colocar em relação corpos com tempos distintos”.

O trecho acima é do texto que abre o alfabeto com a letra Q (quebras). Que trás uma crítica sobre como os manuais de ética apontam para um horizonte impossível, ou seja, de relações perfeitas. Contra essa perspectiva Safatle nos lembra que é impossível não sair de uma relação quebrado. Isso me lembrou de um trecho de uma canção da Legião Urbana: “agimos certo sem querer, foi só o tempo que errou…”.

Na sequência temos a letra F (filosofia), onde o filósofo questiona a origem da palavra filosofia, que segundo a tradição advém da junção de duas palavras gregas: philo (amor ou amizade) mais sophia (sabedoria). Tendo assim como significado amor ou amizade a sabedoria ou, ao saber. Para Safatle: “o que a fez aparecer foi a raiva. Uma raiva da doxa, raiva do senso comum, da maneira como ordinariamente falamos e organizamos nossa experiência.”

Não é nosso objetivo aqui abordar ainda que de forma breve todos os textos que compõem a obra. Mas chamar atenção para a escrita do filósofo bem dos objetos da sua crítica. Avancemos por tanto para a letra X onde encontramos o texto (incógnita):

“Um dos dispositivos fundamentais de definição do horizonte da época à qual pertencemos está vinculado ao advento de um tipo muito específico de fala. Para nós, talvez ela seja a mais natural de todas as falas. No entanto, foi necessária uma modificação estrutural em nossas formas de vida para que tal fala emergisse e, principalmente, para que ela ganhasse tamanha importância. Trata-se do que entendemos por “falar de si”.

A crítica de Safatle é acerca da ideia de que falar de si seriam formas de expressão de emancipação política. Desse modo, ele propõe o sentido contrário. Ou seja, a supressão do eu como possibilidade para uma transformação política.

O texto que fecha o seu alfabeto traz a letra Z (como terminar o alfabeto). Ou seja, curiosamente fechando com a letra que tradicionalmente fecha o alfabeto. Nesse texto encontramos uma espécie de conto sobre um gato - que não é propriamente sobre o gato. Mas justamente acerca daquilo que é abordado no primeiro texto. Desse modo é como se o filósofo emendasse uma ponta na outra. Criando uma espécie de espiral. 

“seu negócio era tecer linhas, criar um território que ia da perna da criança  à cama do casal, da cama à porta, da porta à cadeira da sala, da cadeira da sala ao sol que o esperava no parapeito da janela, assim em movimento contínuo que teciam também os dias em uma grande malha uniforme. Em silêncio, sem ninguém perceber, ele tecia uma malha densa de fios que envolviam todas as pessoas da casa, e seu trabalho ele fazia com afeto e rigor”.

A resposta acerca da continuidade dessa história e o que ela simboliza não será dada aqui. Que isso sirva de estímulo para que adquiram e leiam a obra.

Para concluir, quem compreende minimamente a lógica de funcionamento da sociedade que vivemos não pode de modo algum se acomodar pois do contrário estará sendo condescendente com a ordem estabelecida. Mas que condições temos para subverter essa ordem? O primeiro passo é se incomodar. E esse papel o Vladimir Safatle faz muito bem. O alfabeto das coalizões não é água com açúcar, mas uma dose de conhaque que desce queimando. Mais do que necessário para os tempos que vivemos.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).