quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Fim da equipe multiprofissional das unidades escolares de pequeno e médio porte é retrocesso na Rede Pública Estadual de Educação do Tocantins

Quando achamos que estamos avançando na esfera educacional, acontecem decisões que nos fazem retroceder. Esse é o caso da medida que retirou das unidades escolares (da Rede Pública Estadual do Tocantins) de pequeno e médio porte dois profissionais fundamentais: Psicólogo e Assistente Social. A presença desses profissionais nos últimos anos trouxe um enorme ganho, sobretudo na política de permanência estudantil. De modo que tal medida terá certamente um impacto negativo para a comunidade escolar.

Numa sociedade que tem funcionado a cada dia como uma máquina de adoecer gente, seria ingenuidade esperar que tal fenômeno não afetaria a sala de aula. De modo que a realidade que encontramos na escola é bem diferente de outrora. Exigindo portanto a presença de diferentes profissionais que possam contribuir para o enfrentamento às expressões da questão social que afeta o aprendizado e a formação integral dos sujeitos.

O filósofo Vladimir Safatle defende que vivemos uma era de crise psíquica como consequência de um modo de produção que impõe determinadas condições sociais. Ele salienta que hoje há tanta categoria clínica que é impossível o indivíduo sair de uma clínica sem o diagnóstico de algum transtorno.

Safatle (2024) nos diz:

“Sabemos que não há sujeito sem sintoma, ou seja, não há sujeito sem marcas de uma socialização que se confunde com formas de alienação. Mas há algo a mais hoje que dá ao processo de formação social do Eu um caráter ainda mais insuportável. As exigências de iniciativa, de responsabilização individual, de “fazer seu corre”, que a precarização social absoluta e a implosão de relações elementares de solidariedade produziram no neoliberalismo, geraram, na verdade, aprofundamento da desagregação psíquica.”

Esse fenômeno é vivenciado por nós no chão da escola. E como não temos força para mudar essa realidade, acabamos tentando minimizar as consequências. É nessa linha que podemos considerar a presença de assistentes sociais e psicólogos nas unidades escolares.

A chegada desses profissionais nas escolas públicas, sobretudo nas regiões periféricas, trouxe um enorme ganho para comunidade escolar. Tirando das costas de outros profissionais que atuam nesse ambiente, sobretudo dos professores, a obrigação de lhe dar com um trabalho que não foram formado para tanto. Além do fato de que, por mais sensíveis que sejam. Estudar, planejar, organizar e ministrar uma aula, bem como fazer os devidos registros, toma tempo suficiente. Além do desamparo diante dos seus próprios problemas psicológicos.

Juntamente com o pedagogo (no cargo de orientador educacional), os assistentes sociais e psicólogos formaram a equipe tríade - responsável pela execução da política de permanência estudantil, sobretudo a partir da busca ativa escolar, onde o acolhimento é parte fundamental.

Nós que estamos na escola sabemos o quanto foi positivo a presença desses profissionais, e mais ainda dessa equipe. A queda nos índices da evasão escolar e uma melhor acolhida dos estudantes, sobretudo aqueles que estão passando por uma crise psíquica corrobora com essa tese.

Certamente houve casos de atenção. Afinal de contas é uma experiência recente. Mas creio que no geral as comunidades escolares são favoráveis a continuidade da equipe multiprofissional.

No entanto, surpreendentemente ficamos sabendo que a normativa de modulação para o ano letivo de 2025 não prevê a presença desses profissionais nas escolas de pequeno e médio porte. Essas escolas serão atendidas por profissionais lotados nas superintendências regionais de ensino. Ora, não precisa de muito raciocínio para saber que não será a mesma coisa. O que será um grande retrocesso.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Palavras sobre o documentário “Não é permitido - um recorte a censura ao punk rock no Brasil

“Nós sobrevivemos”.
Essa é a mensagem final do documentário “não é permitido” que apresenta um recorte da ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), mais especificamente acerca da censura promovida pelo regime contra artistas do movimento punk. Em tempos onde voltamos a flertar com o autoritarismo, compreender esse momento da nossa história é fundamental. Ainda mais por parte daqueles que estavam à margem da sociedade na periferia das grandes cidades.

O documentário é dirigido por um quarteto: Fernando Calderan, Fernando Luiz Bovo, Matheus de Moraes e Renan Negri. E como um disco punk temos uma narrativa breve (34min). E conta com a participação de ícones do gênero: Jão (Ratos de Porão), Mao (Garotos Podres), Clemente (Inocentes), Ariel (Invasores de Cérebro), Vlad (Ulster), Pierre e Val (Cólera). Que por meio de suas narrativas nos dão uma ideia do que enfrentaram, conseguindo no entanto perseverar sobre a censura e o regime.

Mas uma fala do Ariel ficou na minha cabeça - a de que a censura nunca acabou. E se formos analisarmos bem ele tem toda razão. É fato que não temos mais um departamento do governo dizendo o que pode e o que não pode em relação a expressões artísticas como a música. Mas é evidente que determinados artistas não têm o mesmo espaço que outros. Por exemplo, não veremos uma banda como Ratos de Porão tocando numa rádio comercial ou num programa dominical na tv aberta.

Isso vai na linha da crítica Marcuseana a sociedade contemporânea onde ele revela o caráter autoritário desta por meio da imposição (sem o uso da força) de uma racionalidade tecnológica criando “um universo verdadeiramente totalitário no qual sociedade e natureza, corpo e mente são mantidos num estado de permanente mobilização para a defesa desse universo".

Nesse contexto, uma arte libertária como o punk tem que ficar à margem. Pois o seu discurso não serve ao status quo. Pelo contrário. Como podemos perceber numa fala do Pierre quando ele fala sobre a sua transformação a partir do punk. 

Outra fala que me chamou atenção foi a do Jão (Guitarrista e membro fundador do Ratos de Porão) sobre as temáticas que as letras censuradas abordavam. Enquanto alguns artistas buscavam se expressar por meio de metáforas. Os punks colocavam o dedo na ferida. Com a fúria e agressividade do gênero. Um dos exemplos é a letra de Corrupção:

A corrupção está acabando com a Nação
E todo mundo está fingindo ser irmão
A sociedade pensa que nós somos vagabundos
E que só eles vão conquistar o mundo…

Da banda Inocentes uma das canções censuradas foi a icônica: miséria e fome:

É tão difícil viver entre a miséria e a fome
Senti-la na carne e ter que ficar parado, calado
É tão difícil entender como homens armados
Expulsam outros homens das terras em que
Eles nasceram e se criaram, que são deles
Por direito para lá plantarem nada, nada, nada…

Dos Garotos Podres, Johnny:

Mas um dia tudo terminou
Johnny foi preso
Extraditado pro Brasil
Aquele país que está na corda bamba
Que só tem carnaval, futebol e samba
Um país idiota
Cheio de moleque
Onde ainda se toca discoteque…

Falando em Garotos Podres, o Mao (seu vocalista) dá uma verdadeira aula do que foi e do que é uma ditadura: “A ditadura ela não apenas reprime e persegue opositores políticos mas tenta controlar o pensamento”. Pierre (Cólera) complementa: “Qualquer forma de ter uma ideia, um pensamento diferente daquilo que eles querem que seja feito” é objeto da censura. Jão, no entanto, diz algo interessante: “Para gente que é punk é bom ser censurado. Se não alguma coisa estaria errada. Você em plena ditadura fazendo música de protesto e não ti censurarem, né”. Ou seja, não eram jovens ingênuos. Eles sabiam exatamente o que queriam. Ou melhor. O que não queriam. E a partir daí ajudaram a moldar no nosso país uma cultura de resistência a partir da periferia que permanece viva.

O fato desses artistas não conseguirem o devido reconhecimento por parte do status quo é mais uma comprovação, de que apesar da mudança de regime, seu caráter autoritário prevalece. Não mais pelo uso da força. Mas pela introjeção de determinados valores que criam seres submissos.

Acesse e assista o documentário no link: https://youtu.be/EEJHRoy2gAo?si=I8U9syzveTKwhh_0

Pedro Ferreira Nunes - é apenas um rapaz latino-americano, que gosta de ler, escrever, correr e ouvir rock n roll.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Marcuse: Por uma Pedagogia Radical no Caminho de Construção de uma Educação para Emancipação

Na sua principal obra “O homem unidimensional” (1964) Marcuse nos chama atenção para um projeto político de dominação a partir de novas formas de controle que busca substituir a racionalidade humana por uma racionalidade tecnológica. Como parte da sociedade, a educação não está alheia a esse processo. Pelo contrário, torna-se um instrumento importante na naturalização de um pensamento unidimensional. A partir do pensamento de Marcuse, Douglas Kellner (2011), irá desenvolver a ideia de uma pedagogia radical como resistência a uma educação unidimensional. E é essa reflexão que serve de subsídio para as linhas a seguir. 

Comecemos já por afirmar nossa tese central, a de que Marcuse, a partir da sua teoria crítica nos dá uma importante contribuição para pensarmos uma educação para emancipação a partir de uma pedagogia radical. Primeiro ao chamar atenção para as consequências de uma educação unidimensional, que funciona a partir da substituição do negativo por uma consciência feliz. Tirando do indivíduo a capacidade crítica, tornando-o alheio aos problemas da comunidade. Segundo propondo a superação dessa educação por meio de uma pedagogia radical (bildung) que a partir de um movimento crítico reconstrua a racionalidade humana, em substituição a racionalidade tecnológica, caminhando em direção a possibilidades futuras.

Não sejamos ingênuos. O contexto atual nos deixa bastante pessimista quanto à possibilidade de uma mudança qualitativa tanto na esfera educacional como na sociedade em geral. O status quo conseguiu de tal forma controlar os indivíduos, sobretudo por meio do consumo, que parece impossível vislumbrar alguma ruptura. A não ser tutelada pela classe dominante. Dito isso, uma possibilidade de mudança na esfera educacional que restaure a racionalidade humana parece cada vez mais remota.

Olhando para o contexto brasileiro percebe-se que as mudanças do último período tem como fim transformar a educação pública em mercadoria. Marcuse (1964) já apontava para esse movimento nas sociedades desenvolvidas onde percebia uma contradição entre o aumento do acesso à educação por um lado, mas a perda de potencialidade por outro. Vemos esse movimento no contexto atual com a diminuição da carga-horária de componentes curriculares como Arte, Geografia, História, Filosofia e Sociologia em benefício de Projeto de Vida e eletivas de empreendedorismo. Tolhendo a criatividade e o pensamento crítico.

Ora, uma educação voltada para o atendimento dos interesses mercadológicos não necessita da crítica. Sobretudo porque em última análise a educação unidimensional é doutrinária. E sendo doutrinária não há espaço para o contraditório. Isso fica mais evidente quando analisamos os documentos orientadores que estabelece inclusive o que e como o professor deve desenvolver os objetos de conhecimento trabalhados em sala de aula.

A priori isso parece não ser nada nocivo. São “sugestões” para que o professor possa desenvolver na sala de aula de forma mais eficaz as competências e habilidades que estão sendo trabalhadas. Ele não precisa pesquisar nada. O objeto já vem determinado, as referências a ser utilizadas, os textos, os instrumentos a serem utilizados. É só pegar e aplicar. Mas quando o professor se torna apenas um replicador daquilo que é pensado por um técnico perde a sua capacidade de pensar. E a partir daí pode perfeitamente ser substituído por uma máquina.

Acreditamos que apesar dos limites é possível, e necessário, assumirmos uma pedagogia radical, que a partir de diferentes estratégias didáticas, em especial o papel da arte, restaure a razão crítica e a busca pela libertação política, no caminho de construção de uma educação para emancipação. Para tanto é necessário compreender criticamente as tendências em curso no campo educacional, seja no ensino superior ou na educação básica, e a partir daí podemos vislumbrarmos mudanças qualitativas.

Entender o nosso papel enquanto educadores, que somos os responsáveis por concretizar o currículo na sala de aula, é fundamental. É preciso compreender, e Marcuse salienta isso, o papel político no ato de educar. Nesse caso não se trata de doutrinação. Mas, a partir de diferentes estratégias didático-pedagógicas, pode-se instigar o pensamento crítico. Acreditando na linha do que diz o filósofo brasileiro Paulo Arantes (2023), de que enquanto houver pensamento crítico há possibilidade de que surjam cidadãos. Cidadãos de fato, ou seja, aqueles que lutam pelos seus direitos.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

O que a esquerda pode aprender com o seu Osmar ou sobre Gusttavo Lima candidato a presidente do Brasil

Acompanhei com certa tristeza as reações por parte de pessoas do campo da esquerda à declaração do cantor e empresário Gusttavo Lima sobre sua pretensão de se candidatar a presidente do Brasil no pleito vindouro. Reações que no geral mostram o nível de mediocridade que chegamos. Um vídeo do seu Osmar (personagem do humorista Evoney Fernandes) satirizando a declaração do artista mineiro foi a melhor reação que vi. O que me fez refletir que este personagem tem muito a ensinar à esquerda.

Na verdade, o vídeo do Evoney (Seu Osmar) me remeteu a banca de defesa da minha dissertação do Mestrado. Em que um dos arguidores, o Professor Dr° Roberto Rondon (Universidade Federal da Paraíba). Destacou que eu deveria ter explorado mais esse personagem citado no texto. Salientando se tratar de uma figura presente na cultura brasileira, tida como um bobo, mas que de bobo não tem nada. De fato eu havia citado esse personagem ao falar do objetivo para o desenvolvimento sustentável da Organização das Nações Unidas (Onu) - ODS 08 - Trabalho decente e crescimento econômico. Apenas para ilustrar uma situação. Não esperava, porém, que isso seria apontado como algo que se melhor explorado, enriqueceria minha dissertação.

Depois fiquei imaginando comigo que o Professor Rondon tinha toda razão. Imagina o quanto teria sido rico trabalhar alguns desses vídeos na sala de aula. Não tenho dúvida que conhecendo a popularidade do personagem, teria um grande engajamento dos estudantes.

A situação que ilustrei na dissertação com um vídeo do Seu Osmar é a mentalidade, muito presente no interior, de que o empregado é dependente do patrão e portanto deve suportar qualquer condição de trabalho sem reclamar. Pelo contrário, deve agradecer ao seu empregador pois sem este não terá emprego.

Isso é resquício do regime oligárquico que por muito tempo prevaleceu no Brasil - que Paulo Freire pontua bem no seu Educação como Prática da Liberdade (1967):

“Mesmo quando as relações humanas se façam, em certo aspecto, macias, de senhores para escravo, de nobre para plebeu, no grande domínio não há  diálogo. Há paternalismo…” (Freire, 2024).

Na situação retratada, Roberto (Hitalon Bastos) é contratado para fazer um serviço para o Seu Osmar (Evoney Fernandes). Quando termina o serviço vai cobrar o seu direito. Mas é enrolado por Seu Osmar que por meio de um discurso manipulador faz Roberto se sentir um ingrato - que sai com as mãos abanando. Há outras versões também dos dois personagens retratando essa situação, numa delas a descrição é: Recebi meu salário e ainda sai devendo.

Talvez não tenha sido a intenção do artista denunciar essa situação. Ainda que por sua origem não duvidamos que a inspiração para esses vídeos venha de situações vividas por ele ou observadas na realidade em que está inserida. E ao espelhar a realidade esses vídeos tornam-se poderosos instrumentos de reflexão. Quando isso é feito de forma cômica o seu alcance tende a ser maior. Ainda que para muitos fique apenas no aspecto cômico.

Já em relação ao vídeo em que Seu Osmar satiriza a declaração de Gusttavo Lima, temos o seguinte cenário: Ele aparece sem camisa, numa mesa de sinuca com um toca na mão e uma cerveja barata. Começa sua fala fazendo alusão ao Governo Bolsonaro (tempo das armas) e ao Governo Lula (tempo da picanha). Sem tomar partido de um e de outro declara que agora é a vez do povo dos botecos. E então diz ter sido convidado pelo Gusttavo Lima para ser seu vice-presidente. Ele diz que sua intenção era ser presidente, mas aceitará a vice -presidência.

Achei essa resposta magistral. Porque trata a situação como deveria ser tratada. Como uma piada. E diante de uma piada a melhor reação é o riso (a não ser que não a compreendemos). Evoney Fernandes compreendeu e por meio do Seu Osmar deu uma ótima resposta.

Enquanto isso, um montão de gente que se diz de esquerda fica perdendo energia discutindo se Gusttavo Lima é qualificado ou não para disputar a presidência. Quando na verdade deveria estar preocupado com o que fazer para barrar o retorno da extrema direita ao poder e aos ataques aos direitos da classe trabalhadora. Inclusive por parte de um governo que se diz progressista (Governo Lula).

Mas a esquerda parece não ter aprendido nada nos últimos anos. É incrível. Há uma onda de ressentimento que nos faz comportar como moralistas e punitivistas (Movimento Bolsonaro na Cadeia). Ou seja, nos tornamos aquilo que dizíamos combater. E ainda tem quem fique indignado quando o Safatle diz que a esquerda morreu - por não compreender que um dos motivos para essa morte é o afastamento do povo - representado bem na figura do seu Osmar - que tem por isso, muito a ensinar a esquerda.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

O livro a relíquia e a nova Secretária de Educação do Município de Palmas

Sempre que ouço alguém dizendo que é conservador penso o pior dessa criatura. Pois historicamente não faltam exemplos de indivíduos que embaixo de uma capa moralista escondem uma vida de libertinagem. A exemplo do Teodorico Raposo, personagem do romance “A relíquia” (1887) do Eça de Queiroz. De modo que você pode imaginar como fiquei ao ouvir tal declaração da nova secretária de Educação do município de Palmas - Débora Guedes.

Na obra citada acima, Eça de Queiroz de forma brilhante nos brinda com uma narrativa bem humorada que mostra as contradições de uma sociedade que tem o cristianismo na sua base de sustentação. Ao ficar órfão de mãe e pai, Teodorico passa a ser criado por sua Tia Maria do Patrocínio (Titi) - uma mulher ultraconservadora que vive para as coisas da religião. De modo que tudo que sai dessa esfera é considerado um mau por ela. Sobretudo a relação entre um homem e uma mulher. Não é de se admirar portanto, que Teodorico passará a ser educado para se comportar da mesma forma.

No entanto, à medida que vai crescendo, Teodorico caminha na direção contrária a da sua Tia. Porém, como depende desta, precisará manter as aparências. A partir daí levará uma vida dupla - na casa da tia é um religioso extremado. Quando está longe das suas vistas se entrega aos prazeres da carne.

A narrativa do Eça de Queiroz é bastante envolvente, e a forma humorada como ele descreve as situações torna a obra leve. Mesmo que esteja tratando de uma questão importante: como a imposição de determinados valores, sobretudo valores que vão contra a natureza humana, acaba formando sujeitos hipócritas.

Cabe aqui falar um pouco do conceito de hipocrisia - essa palavra que tem origem no grego ypokritís e se refere aos atores que precisavam mudar de máscara conforme o papel que estavam representando. É utilizado, na contemporaneidade, como um adjetivo para se referir a alguém falso, ou com uma dupla identidade. Ou seja, aquilo que denominamos de mau-caratismo.

É o caso do Teodorico que se convence que para se tornar herdeiro da Tia, e a partir daí se libertar (chegando ao ponto inclusive de desejar sua morte o mais rápido possível), terá que parecer aos olhos da beata, um santo. O final dessa história não é diferente do que lemos quase todos os dias nos jornais - as máscaras sempre caem. Como no caso do pastor que foge com a mulher do seu enteado. Da descoberta de inúmeros casos de pedofilia envolvendo religiosos. Ou de casos extraconjugais envolvendo políticos conservadores.

Não vamos entrar em detalhe de como Teodorico é desmascarado por Titi para não tirar daqueles que se interessarem em ler o romance, em fazê-lo e descobrir por conta própria. Ou seja, como dona Maria do Patrocínio descobre que Teodorico não é nada daquilo que ela pensava. Ou talvez ela sempre soubesse, mas esperava que estivesse enganada.

Não estamos aqui comparando a senhora Débora Guedes ao senhor Teodorico (ou a Tia dele) - até porque a vida privada da nova secretária da educação da capital só interessa a ela. Já o que ela faz enquanto agente público, sim. Sobretudo se pretende, tal como tentou a senhora Patrocínio, impor uma educação conservadora na Rede Municipal da Educação de Palmas.

É importante destacar que a nomeação de Guedes para a pasta da educação na gestão Eduardo Siqueira Campos não é nenhuma surpresa. Surpresa seria um político da direita tradicional nomear alguém progressista para esse cargo. Também seria surpresa esperar de uma missionária de uma igreja protestante, que se diz conservadora, outro discurso se não o que ela proferiu. Ainda que a mesma seja Mestre em Educação pela Universidade Federal do Tocantins (UFT).

No entanto espera-se que a senhora Débora tenha consciência de que a educação pública tem como princípio a laicidade e o respeito à pluralidade. Ou seja, quem se identifica com o conservadorismo tem todo o direito de defendê-lo, e sobretudo praticá-lo. Mas já mais de impor essa perspectiva a quem pensa de forma diversa. Sobretudo através do discurso de que a escola deve ser livre de ideologias. Pois sabemos que isso na prática significa ausência de pensamento crítico. E a ausência de pensamento crítico certamente contribui para a formação de sujeitos hipócritas como o personagem de Eça de Queirós (Teodorico) que o maior arrependimento não foi ter sido desmascarado pela Tia - mas não ter tido a capacidade de reverter a situação inventando outra mentira com a seguinte justificativa:

- Não mostram os santos missionários de Braga, nos seus sermões, bilhetes remetidos do céu, pela virgem Maria sem selo? E não garante a Nação a divina autenticidade dessas missivas, que têm nas dobras a fragrância do paraíso?

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

sábado, 25 de janeiro de 2025

Sobre o abaixo-assinado pela desativação total do Lixão em Lajeado

A discussão acerca da destinação dos resíduos sólidos (lixo) em Lajeado (TO) não é nova. Há alguns anos essa pauta foi inclusive objeto de debate na Câmara Municipal de Lajeado, puxada pelo então Vereador Edilson Mascarenhas (Nego Dilson), hoje Secretário da Administração. Naquele período ainda funcionava a usina de triagem implementada no período de construção da Usina Hidrelétrica Luiz Eduardo Magalhães. E o debate no legislativo municipal se deu em torno do questionamento da localização da usina e da proposta de um possível consórcio com as cidades vizinhas  para um melhor descarte desses resíduos.

De lá para cá algumas coisas mudaram. Entre essas mudanças tivemos a desativação da usina de triagem e os resíduos sólidos passaram, segundo a gestão municipal, a ser encaminhada para Porto Nacional. No entanto, o local continua sendo usado para o descarte dos resíduos - até que o seu transporte seja feito para o seu destino final. Nesse meio tempo esses resíduos ficam contaminando aquela área. E a falta de uma maior fiscalização do local contribui para que esses resíduos sejam descartados de qualquer forma. Ou seja, no final das contas, a desativação da usina de triagem sem uma alternativa inteligente acabou gerando mais problemas. Sobretudo com a expansão urbana naquela região dando vida ao setor entre serras. E a construção e consolidação da praia do Segredo como o principal ponto turístico local.

Nesse novo contexto tornou-se ainda mais necessário a desativação daquele lugar como um ponto de descarte dos resíduos sólidos (lixo) produzido no município. Pois o impacto tanto na qualidade de vida de quem mora naquela região como na economia local é imenso. E os danos ao meio ambiente podem ser irreversíveis.

A cidade tem consciência disso. Tanto que diversas pessoas vêm apontando para esse problema já há algum tempo. E defendendo a necessidade de se pensar uma alternativa sustentável para os resíduos sólidos produzidos pelo município. A partir daí surgiu projetos como o Cidade Limpa e Artesanato Sustentável, que fazem um trabalho de referência, mas que são insuficientes para dar conta do problema. Até porque há resíduos que não são recicláveis e reutilizáveis.

Diante disso, aproveitando uma nova gestão à frente da Prefeitura Municipal de Lajeado e uma nova legislatura na Câmara de Vereadores, moradores do setor entre serras resolveram promover um abaixo-assinado com o objetivo de sensibilizar as autoridades locais, e a comunidade no geral, para o problema. Nesse sentido, a estratégia  dos moradores já pode ser considerada vitoriosa. Pois a recepção e repercussão da iniciativa por parte da comunidade tem sido unanimemente favorável.

Esse apoio ainda não tem sido traduzido em adesão pública, por meio das assinaturas, ao abaixo-assinado. Mas isso é mais reflexo de uma cultura de medo de perseguição política do que de desacordo com a iniciativa dos moradores do setor entre serras. Até porque tal demanda é de interesse, ou deveria ser, da própria gestão municipal assim como de toda comunidade. De modo que acreditamos que mesmo aqueles que se silenciam apoiam a desativação total do lixão em Lajeado.

Desse modo, independente do número de assinatura (isso não quer dizer que quem ainda não assinou, não deva assinar), os moradores do setor entre serra, por meio do abaixo-assinado, trazem o debate da gestão dos resíduos sólidos em Lajeado para a pauta do debate político. Dando visibilidade a um problema que muita gente não sabia. Por exemplo, num comentário numa rede social que mostra a situação no local, IL diz o seguinte:

“Lamentável que uma cena dessa exista, principalmente em um município com tanta beleza natural e as margens de um rio. É preciso mobilização da população e dos órgãos de controle”.

Nessa linha é preciso lembrar que Lajeado faz parte de uma área de proteção ambiental (APA Serra do Lajeado) - que foi criada por meio da lei estadual n° 906 de 20 de maio de 1997, com o objetivo de “garantir a conservação da fauna, da flora e do solo” como também a “qualidade da água”. Também não podemos esquecer da lei federal (n° 12.305,  de 2 de agosto de 2010), que institui a política nacional de resíduos sólidos. Que, entre outros, estabelece no seu art. 47. Proibir as seguintes formas de destinação ou disposição final de resíduos sólidos ou rejeitos: I - lançamento em praias, no mar ou em quaisquer corpos hídricos; II - lançamento in natura a céu aberto, excetuados os resíduos de mineração; III - queima a céu aberto ou em recipientes, instalações e equipamentos não licenciados para essa finalidade; IV - outras formas vedadas pelo poder público.

Ou seja, não estamos falando de um problema qualquer. Mas de algo que pode levar a penalização do município pelo não cumprimento do que determina a legislação vigente.

Não é isso que quer os responsáveis pelo abaixo-assinado. Pois se não entrariam diretamente com uma denúncia no Ministério Público. O objetivo é mais de sensibilizar os entes públicos locais e contribuir com a discussão em busca de uma alternativa.

Diante disso, não só apoiamos essa iniciativa por compreendê-la como fundamental na defesa de um desenvolvimento sustentável e consequentemente na garantia dos direitos humanos da comunidade local. Como também conclamamos aqueles que ainda não aderiram, a aderirem à iniciativa por meio de uma assinatura. Para alguns pode ser apenas um gesto simples, para as pessoas que vivem ali a possibilidade de uma melhor qualidade de vida. Vamos, portanto, fortalecer essa luta.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

A Ilha dos Espíritos: Capitulo 23 - A estória de um amor impossível

Era meados de 1940 – o paulista Sebastião Bandeira desbravava o norte goiano em busca de pedras preciosas. Como na região de Arraias e de Natividade o garimpo estava em decadência decidiu se embrenhar mais para o interior do norte goiano – ainda não tão conhecido e muito pouco desbravado. Foi nessas andanças que Tião – como era conhecido. Chegou a uma região lajeada de pedras, rodeada por serras e banhada por uma fonte inesgotável de água. Seu faro de garimpeiro lhe disse que encontraria ali muito ouro. 

Foi então que Tião estabeleceu um grande garimpo nesta região. O que logo atraiu garimpeiros de várias partes do país em busca de ouro e diamante. A região de exploração do garimpo logo se tornou um povoado – que foi batizado com o mesmo nome do córrego que banhava o lugar – Lajeado. Com o enfraquecimento do garimpo na região – Tião cansado da vida de explorador decidiu constituir família e permanecer no local. 

Toda a riqueza que Tião tinha acumulado até então decidiu por investir na compra de terras e na criação de gado. Casou-se com Tereza Maria com quem teve três filhos – Sebastião Jr, Miguel e Rosa. Sebastião e Miguel foram mandados pelo pai, estudar na capital goiana, já Rosa permaneceu ao lado dos pais no povoado de Lajeado. 

Rosa era criada de forma rígida, sem nenhuma liberdade. Vivia trancada em casa, não podendo se quer estudar. Quando tinha 14 anos a jovem se apaixona por um peão da fazenda do pai. O negro Romualdo igualmente amava Rosa. No entanto ambos sabiam que aquele romance já mais seria permitido por Tião. Mesmo assim Rosa e Romualdo se arriscam se encontrando secretamente.

Tião um dia ao procurar por Romualdo encontra-o com sua filha – colérico de raiva manda os outros peões prender Romualdo e o castiga-lo severamente. Rosa por sua vez também seria trancafiada em seu quarto e seria obrigada a entrar para um convento. 

Romualdo é torturado severamente tal como Tião fazia com os escravos que ele explorava no tempo do garimpo. Mesmo sob a forte tortura Romualdo consegue sobreviver. E através de um amigo descobri que Tião pretende mandar Rosa para um convento. Se tal plano se concretizasse seria a morte de Romualdo. Pois ele não conseguiria viver sem sua amada. Assim mesmo debilitado devido à tortura que havia sofrido, Romualdo estava disposto a desafiar o patrão e fugir com sua amada, se assim ela quisesse. 

- Você está louco Romualdo. Cale essa boca. Se o patrão ti ouvir dizendo essas asneiras irá mandar ti matar. - Eu prefiro a morte a ter que viver longe dela. 

- E será isso que vai acontecer contigo se você não se colocar no seu lugar. Onde já se viu um peão se engraçar com a filha do patrão! 

- Eu preciso da tua ajuda camarada. Preciso que você entregue um recado para Rosa. Diga a ela que estou disposto a fugir com ela. 

- Não Romualdo. Não posso fazer isso. Se me pegarem, além de ti, matam a mim também. 

- Sei que você achará um jeito de passar o recado pra ela sem que ninguém descubra. Faça isso como o ultimo pedido de um amigo, de um irmão. 

- Não vou ti prometer nada Romualdo. Mas ti garanto que irei tentar. 

Com muito cuidado o amigo de Romualdo consegui passar o recado dele para ela. Rosa que desde então sofria com a possibilidade de nunca mais ver seu amado – enche o coração de alegria e esperança. A fuga seria perigosa, mas Rosa preferia morrer com seu amado a ter que morrer longe dele – sem a possibilidade de nunca mais vê-lo. 

 - E quando será? 

- Ele não me disse. Mas esteja preparada que a qualquer hora ele aparece e vocês fogem.

Romualdo planejava fugir com sua amada nas vésperas em que ela seria mandada para o convento em Goiânia. Miguel – irmão de Rosa – que morava em Goiânia. Veio especialmente busca-la. 

Era noite de lua cheia. Todos já estavam repousando – No dia seguinte bem cedinho Miguel juntamente com sua irmã Rosa seguiria rumo a capital goiana. No entanto Romualdo e Rosa tinham outros planos. Percebendo que todos já estavam repousando Romualdo com a ajuda do amigo consegue chegar até o quarto onde Rosa estava. Essa por sua vez não acreditou quando viu o amado, pois já havia perdido a esperança de que ele viesse liberta-la daquela prisão e juntos fugissem rumo à felicidade. Quando seus olhos se encontraram abraçaram-se fortemente e se beijaram ternamente. 

- Vamos? Tá na hora. Falou Romualdo. 

- Sim vamos. Respondeu ansiosa, Rosa. – achava que você não viesse mais. 

- Mesmo que custe a minha vida. Eu já mais ti deixaria partir para longe de mim. Eu ti amo Rosa, ti amo mais do que tudo. 

- Eu também ti amo Romualdo. Eu prefiro a morte a ter que viver longe de ti. 

- Vocês precisam ir. Deixa essas declarações pra outro momento. 

- Certo. Obrigada por tudo camarada. Já mais vou esquecer o que tu fez por mim. 

- Muito obrigada Romildo, muito obrigada. 

E então Romualdo juntamente com sua amada seguiu cautelosamente para que não fossem descobertos. Cada vez mais se afastavam daquela casa que se tornara uma prisão para eles. Os cães latiam tentando alertar sobre a fuga, mas como era de costume o latido dos cães não despertaram ninguém, nem mesmo os peões responsáveis por cuidar da segurança do local deram atenção para aqueles latidos – provavelmente pensaram se tratar de algum viajante cortando aquelas paragens. Enquanto isso Romualdo e Rosa seguiam com um misto de felicidade e apreensão, estavam cada vez mais longe do seu cativeiro, no entanto eles sabiam que assim que a fuga dos dois fosse descoberta, eles seriam caçados como se fossem animais. E dessa vez Tião não perdoaria, Romualdo seria morto, já Rosa não teria destino muito diferente. Por tanto eles precisavam andar depressa – precisavam logo esta bem longe daquele local, pois as horas iam chegando e muito em breve quando fossem despertar a Rosa – descobririam sua fuga. 

- Tereza vai acordar Rosa. Já são 04h30 da manhã e é hora dela acordar para tomar o café e começar a viajem. 

- Tião, Tião. A rosinha sumia, não está aqui. 

- Procure ela já por todas as partes. Cadê o Romualdo? 

Assim que soube do sumiço da filha, Tião deduziu rapidamente que ela havia fugido com o negro Romualdo. Perguntou por ele, mas já sabia a resposta. 

- Sumiu também patrão. 

- Eu quero todo mundo atrás desses dois já. E os quero vivo ou morto. Tião ficou colérico ao saber da fuga de sua filha com seu peão – o negro Romualdo. Imaginava como Romualdo pode ter tamanha audácia em fugir com sua filha. Mas ele não perdoaria essa audácia – tinha dado uma chance para Romualdo, no entanto dessa vez não perdoaria, assim que fosse encontrado Romualdo seria morto. Já Rosa – ela não perderia por esperar. Também seria severamente castigada por desafia-lo e depois seria trancafiada eternamente num convento. 

Tião, Miguel e um grupo de peão seguiram a cavalo vasculhando as casas do povoado de Lajeado e das fazendas vizinhas em busca de sua filha Rosa e de Romualdo. 

- Vamos revirar tudo que sei que eles ainda estão nessa região. Eles não estão muito longe. 

E Tião tinha razão. Com o raiar do sol Romualdo decidiu se esconder com sua amada em uma grota ao pé da serra do lajeado, pois não era seguro continuar a fuga durante o dia. E assim que escurecesse seguiriam viagem. Enquanto isso a caçada ao casal de apaixonados não cessou um minuto. No entanto os dois não foram encontrados. 

Mais uma noite se aproximava. Tião ordenou que seus peões ficassem atentos, pois sabia que era durante a noite que Romualdo e Rosa desentocariam e continuariam a fuga.

Assim que a escuridão tomou conta da paisagem Romualdo e Rosa – deixam o esconderijo e prosseguem a viajem. Quando já se aproximava da meia noite eles adentram ao povoado de Lajeado. Na altura do pé de pequi um peão que estava de tocaia reconheceu os dois fujões e rapidamente deu um tiro de bucheira para cima no intuito de avisar seu patrão. Tião e seu bando logo se colocaram no encalço do casal.

- Os encontram. Vamos pega-los. 

Quando Romualdo percebeu que haviam sido descobertos buscou refugio em um brejo próximo ao pé de pequi. 

- Aqui eles não nos pega. Tião e seu bando cercaram os dois, assim Romualdo e Rosa tinham apenas duas alternativas – darem prosseguimento a fuga atravessando o córrego Lajeado ou se entregarem. Se decidissem atravessar o córrego poderiam morrer afogados, pois era período de chuva  – o córrego estava cheio, a correnteza furiosa além do que poderiam ser atacados por algum animal feroz – uma sucuri ou um jacaré. Mas se decidissem se entregar – Romualdo muito provavelmente seria morto e Rosa não escaparia do destino de ser trancafiada num convento. 

- E agora? O que vamos fazer meu amor? Acho melhor desistirmos e nos entregarmos. 

- Não, isso não. Não posso me entregar. Eles me mataram. Você pode voltar. Eu vou seguir. Vou tentar atravessar o córrego a nado. Depois eu volto para ti buscar. 

- Não Romualdo. Eu vou contigo. Essa é a única chance que temos de fugir juntos. 

- Mas meu amor. Você não conseguirá atravessar o córrego. Se eu seguir sozinho terei mais chance de sair do outro lado com vida. E eu juro pelo nosso amor que volto para ti buscar. 

- Não Romualdo. Eu prefiro morrer tentando a voltar para aquela prisão. Vamos tentar. Não me deixe. Me leve contigo. 

- Tudo bem Rosa. Seja o que deus quiser. Vamos atravessa o córrego juntos meu amor. Vamos conseguir e vamos ser felizes.  

Enquanto isso Tião e seu bando já haviam entrado no brejo. Não demoraria muito para que Romualdo e Rosa fossem encontrados. Sobretudo depois que Tião mandou os peões tocarem fogo nas palhas secas de buriti. 

- Ou eles saem ou morreram queimados. 

- Com certeza seu Tião. Pois o Romualdo não é doido de tentar atravessar o córrego. 

- Cheio como está morreriam afogados. 

Romualdo segura na mão de sua amada, dá-lhe um beijo apaixonado e lhe diz: - é agora meu amor. E pulam na água. 

- Patrão, patrão. Lá estão eles. Estão loucos pularam no córrego. Vão tentar atravessar. 

Como Romualdo imaginava as águas estavam muito forte e profunda. Logo Rosa se cansa e é puxada pela correnteza – estava se afogando e não conseguiria escapar. Romualdo tenta salvar sua amada, mas também é puxado pela correnteza para o fundo d’água. Mesmo com todos os seus esforços para escaparem daquela situação – os dois morrem afogados ao pé da cachoeira. Tião apenas observava a cena como se quisesse ter certeza de que não conseguiriam atravessar. A lua cheia no meio do céu deixava o lugar claro como o dia – e Tião pode ver quando sua filha e o seu peão afundaram pela ultima vez naquela correnteza e não apareceram mais. Sim estavam mortos. No olhar de Tião nenhum pingo de tristeza, nenhum pingo de remorso – ele apenas ordenou a seu bando que todos voltassem para fazenda. 

Tempos depois o local onde Romualdo e Rosa morreram afogados se tornaria o balneário Ilha Verde - ponto turístico do povoado que se tornaria o município de Lajeado. Naquela noite de lua cheia – ás águas do córrego Lajeado não levara apenas a vida de Romualdo e Rosa, mas também a vida do fruto deste amor que estava sendo gerado na barriga dela. 

Os três jovens acompanharam o relato daquela tragédia contada pela avó de João – perplexos. Até então aquela tragédia que havia acontecido no seio da família de João permanecia em segredo. Poucas pessoas em Lajeado sabiam dessa estória. Tal fato se dava pelo fato daquela tragédia ter ocorrido no seio de uma família tradicional da cidade. Uma família que tinha feito de tudo para que tal estória fosse esquecida. Tião nunca aceitou o fato de que sua filha se apaixonasse por um peão. E ainda mais que o desafiasse fugindo com esse peão. Por tanto era melhor que morressem mesmo. 

E pelo que se sabe – Romualdo e Rosa, juntamente com o fruto do amor proibido que ela carregava na barriga – foram os primeiros a morrerem afogados naquelas águas. No entanto ficava uma pergunta no ar: 

– O que essa estória tinha a ver com as mortes que passaram a acontecer na ilha com maior frequência desde então? Esse era o próximo desafio do grupo – Responder essa questão.

Pedro Ferreira Nunes, in A Ilha dos Espíritos.