quarta-feira, 5 de setembro de 2018

O que não se deve fazer no ensino de Filosofia: Algumas questões sobre o papel da avaliação.

“[... avaliar... é uma atividade que põe em questão a nossa própria concepção de educação...]”. 
Savian Filho

Planejamento, diálogo e processo avaliativo;

Em uma disciplina do curso de licenciatura em Filosofia da Universidade Federal do Tocantins tive uma experiência bastante significativa que me fez querer refletir sobre o papel da avaliação no ensino de Filosofia. Uma experiência que vale a pena ser refletida não no sentido do que se deva fazer, mas sim do que se deva evitar.

No primeiro dia de aula o professor apresentou o plano de disciplina e neste estava contido como seria o processo avaliativo – que teria uma parte teórica e outra prática. Sendo que o peso de cada uma dessas partes na somatória da nota seriam iguais, isto é, 50% teoria e 50% prática. Até ai tudo bem. Quando se faz um planejamento colocamos no papel a nossa intencionalidade. No entanto é preciso ter sensibilidade (ainda mais quando se diz ser um educador progressista) para flexibilizar o planejamento a partir do contato com a realidade da sala de aula e as especificidades que ali surgiram. O que significa que se o planejamento pode e deve se modificar o processo avaliativo também tem que se modificar como reflexo dessa mudança.

Nessa linha é importante o que diz Gallo (2010) de que “[... cada professor, no contexto de seu trabalho, precisa criar os mecanismos próprios que lhe permitam perceber o desenvolvimento dos estudantes, podendo intervir para seu aprimoramento, uma vez que este é o único sentido aceitável para um processo avaliativo...]”. Ora, não levar em consideração o desenvolvimento do estudante no processo avaliativo, mas apenas buscar a nota pela nota, não há de fato nenhum sentido. Gallo é enfático ao dizer que podemos e devemos intervir para que esse processo de aprendizagem se aprimore. O que não é possível num processo avaliativo fechado.

Não foi isso que aconteceu com o nosso professor. Mesmo ele reconhecendo que no decorrer da disciplina havia priorizado mais a parte teórica do que a parte prática. Ainda assim, insistiu no mesmo método avaliativo, não modificando nada do que fora apresentado no primeiro dia de aula. Mesmo que visivelmente o que fora planejado não foi o executado na sua totalidade. 

E mesmo que cerca de 80% da disciplina tenha sido focada na parte teórica ele manteve o peso igual das avaliações. Ignorando totalmente o questionamento dos estudantes. E pior, numa postura totalmente autoritária negou-se ao diálogo – impondo o que ele acreditava que era o correto. Uma postura bastante reveladora da sua opção pedagógica. É o que nos diz, por exemplo, Savian Filho (2016) que “[... avaliar... é uma atividade que põe em questão a nossa própria concepção de educação...]”. 

Não se engane com discursos progressistas e práticas conservadoras como a do nosso nobre professor que se diz aliado à tradição marxista na educação e tem Paulo Freire como referência. Mas na prática se esquece de um ensinamento vital em Freire que é o diálogo. “[... E o que é o diálogo? É uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma matriz crítica e gera criticidade (Jaspers)... só o diálogo comunica...]”. Já o antidiálogo que foi praticado pelo nosso professor e que encontramos em muitas salas de aula “[... implica numa relação vertical de A sobre B... É acrítico que não gera criticidade... por tudo isso, o antidiálogo não comunica, faz comunicados...]”. E é justamente no processo avaliativo que estas questões ficam mais claras. É no processo avaliativo que se revela uma opção que muitas vezes se tenta camuflar.

Há aqueles que buscam justificar a opção por tais processos avaliativos através do discurso de que o sistema de ensino nos limita bastante. E de fato há uma pressão muito grande do Estado no sentido de processos avaliativos que correspondam a interesses de organismos internacionais que avaliam a qualidade da educação através do resultado dos estudantes em provinhas e provões. Sobretudo no ensino médio. No entanto não devemos nos acomodar nesse discurso. Temos sim certa autonomia para subverter determinadas imposições. Na academia então (onde aconteceu o exemplo trabalhado aqui) essa possibilidade é ainda maior.

A questão da avaliação no ensino de Filosofia;

A primeira questão que se deve ter claro em relação à avaliação no ensino de Filosofia é que não há um receituário pronto e acabado que devemos seguir. Dai que devemos ter em mente o que diz Silvio Gallo (2010) sobre a necessidade de elaborarmos um processo avaliativo a partir do contexto que estamos inseridos. Um processo avaliativo que leva em consideração o desenvolvimento do estudante, e que podemos e devemos intervir para aprimora-lo.

Ainda de acordo com Gallo (2010) “[... devemos nos ater menos àquilo que o estudante eventualmente assimilou dos conteúdos que foram transmitidos, mas precisamos nos preocupar em avaliar em que medida ele foi ou não capaz de aproximar-se da experiência do pensamento conceitual...]”. Tal afirmação vai na linha do que foi colocado anteriormente de que não há um modelo de avaliação no ensino de Filosofia. No entanto aponta para necessidade de uma avaliação que prioriza o “saber como” mais do que o “saber que”. Por que isso se dá? Por que a filosofia tem um caráter diferente das outras disciplinas. 

Para Murcho (2008) a filosofia se distingue de outras disciplinas por apresentar poucos resultados consensuais, dando-lhe um caráter em aberto. Porém, “[... defender que a filosofia é fundamentalmente uma disciplina em aberto não é necessariamente o prelúdio de um elogio ao permanente “questionamento” sem rumo...]”. Fazer isso seria cair no equivoco que o filósofo Mario Ariel Gonzalez Porta (2017) diz que muitos fazem por não compreender que “[... o núcleo essencial da filosofia não é constituído de meras convicções, mas de problemas e soluções...]”. Dai que ele estabelece o “problema como base de estudo da filosofia”. 

Seguindo essa linha, defendemos que a avaliação em Filosofia também tenha esse caráter em aberto. E aos que criticam essa perspectiva, recorremos mais uma vez a Murcho (2008) ao afirmar que “[... o caráter aberto da filosofia em nada diminui o seu valor cognitivo e social, a sua seriedade acadêmica ou escolar, ou a sua importância existencial...]”. Outro aspecto importante em relação à avaliação no ensino de Filosofia é o que trás Savian Filho (2016) de que “[... os estudantes não podem ser avaliados pelo tipo de engajamento ético-politico que adotam... mas pelos recursos que conseguem acionar para justificar suas posições...]”.

Savian Filho (2016) também chama atenção para o fato de que não devemos avaliar o desempenho dos estudantes apenas com base nos objetivos e expectativas que estipulamos. Foi o que ocorreu com o exemplo do professor que descrevemos acima. Caminhar nesse sentido é ter uma boa probabilidade de se frustrar. 

Ainda de acordo com Savian Filho (2016):

Não se trata aqui de pensar que avaliar é atribuir notas; nem de insinuar que nossa atividade de docência consiste em apresentar conteúdos complexos, para, depois “fechar os olhos” e aceitar resultados que não correspondem à complexidade dos assuntos. Pelo contrário, trata-se de desenvolvermos uma atenção especifica a cada estudante ou a cada grupo de estudantes, sem adotar um padrão avaliativo definido apenas pelas expectativas, ainda que sejam sempre as melhores. (2016; 417).

Savian Filho (2016) aborda dois tipos de avaliação. A avaliação diagnóstica e a avaliação classificatória. Sendo que é mais comum no ensino de filosofia a primeira - que permite ao educador o reconhecimento do desenvolvimento cognoscitivo do estudante “apresentado na sua capacidade discursivo-filosófica”. Já a avaliação classificatória tem como finalidade averiguar o desempenho. Na perspectiva de Savian Filho (2016): 

não deixa de ser importante expor os estudantes a esse tipo de avaliação... no entanto, justamente tendo em vista o desenvolvimento de competências cívicas, exige-se de nós, professores, um cuidado pedagógico redobrado, a fim de não associarmos à avaliação classificatória um sentido de incentivo à concorrência ou à afirmação narcisista de si.

Diante do exposto voltamos a nossa questão inicial: O que não se deve fazer no ensino de Filosofia, especificamente em relação ao papel da avaliação? Não se deve fazer um processo avaliativo fechado, calcado nas nossas expectativas. Também não se deve fazer um processo avaliativo que não leve em consideração a realidade da sala de aula e a especificidade de cada estudante. Ainda, não se deve fazer um processo avaliativo autoritário e antidiálogico. Por fim, não se deve fazer, pois é inaceitável, um processo avaliativo incoerente, onde prática e teoria estão em campos opostos.

*Pedro Ferreira Nunes – É graduando do Curso de Licenciatura em Filosofia da Universidade Federal do Tocantins – UFT.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS  

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 27ª ed. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.

GALLO, S. Ensino de Filosofia: Avaliação e Materiais Didáticos. In Gabriele Cornelli; Marcelo Carvalho; Marcio Danelon (Org.). Coleção Explorando o Ensino – Vol. 14: Filosofia. 1ª ed. Brasília. Ministério da Educação, 2010, v. 14, p. 159-170.

MURCHO, Desidério. A Natureza da Filosofia e o seu Ensino. Edu. e Filos., Uberlândia, v 22, n 44, p. 79-99, jul/dez, 2008.

PORTO, MARIO ARIEL GONZALEZ. A filosofia a partir de seus problemas - Os momentos essenciais do “modo filosófico de pensar”.   São Paulo: Ed. Loyola, 2002.

SAVIAN FILHO, Juvenal. Filosofia e filosofias: existência e sentidos. 1. ed. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.

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