sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Território em conflito, terra e poder.

Por Pedro Ferreira Nunes - Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins.

Não é de agora que movimentos sociais e
intelectuais ligados a defesa de bandeiras progressitas denunciam o avanço do capitalismo no campo – um avanço que vem acompanhado do aumento da desigualdade, da violência contra os povos campesinos (indígenas, quilombolas e camponeses pobres) e a destruição ambiental. Nesse contexto surge três questões importantes: que modelo de desenvolvimento para o campo é esse? Quais as suas características? Qual as suas consequências? O livro “território em conflito, terra e poder” nos ajuda a responder essas questões.

Escrito a oito mãos (e publicado em 2014 pela editora Kelps) por professores do colegiado do Mestrado em Geografia da Universidade Federal do Tocantins  (campus de Porto Nacional) a obra nos ajuda a compreender como o avanço do capitalismo no campo tem se dado não só no Brasil, como também em outros países latino americano como, por exemplo, o Uruguai – Um avanço que se dá através do processo de mundialização da agricultura com as empresas multinacionais investindo pesado na expansão das fronteiras agrícolas – uma expansão que se dá com o importante apoio dos governos através de determinadas políticas territoriais. 

O livro é dividido em quatro capítulos. O primeiro “A mundialização da agricultura brasileira” é de autoria do Professor e Geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira – que é sem dúvidas uma das maiores referências a nível mundial no campo da Geografia e da questão agrária brasileira. O segundo “A esquerda progressista Uruguaia e a reforma agrária de mercado: 2004-2011” é de autoria do Professor e Historiador José Pedro Cabrera Cabral. Já o terceiro “Políticas públicas e o agronegócio na Amazônia legal/cerrado: conflitos socioterritoriais” é de autoria do Professor e Geógrafo Roberto de Souza Santos. E o quarto capítulo “Demarcação do território Krahô e as relações socioculturais da comunidade no outro novo território” é de autoria do Professor e Geógrafo Elizeu Ribeiro Lira. 

É preciso destacar também a bela apresentação da obra escrita pelo Professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira, onde ele salienta os desafios desse grupo de intelectuais que ousaram criar o Mestrado em Geografia na UFT- Campus de Porto Nacional. E se trata de uma ousadia mesmo sobretudo num Estado onde a força do agronegócio é inegável – uma força usada para esconder os conflitos e as relações escusas entre os governos e as elites econômicas como no caso do Projeto Agrícola Campos Lindos. 

A mundialização da agricultura brasileira

Nessa capítulo, Ariovaldo Umbelino de Oliveira, inicia chamando atenção para o processo de mundialização do capital. Um processo que se deu no final do século XX (fundamentado nas características do capitalismo monopolista) a partir da criação das empresas multinacionais – reflexos da integração do capital em escala mundial. A paritr daí teremos uma produção capitalista internacionalizada. Que se tornou possível graças aos avanços tecnológicos e informacionais (OLIVEIRA, 2014, p. 21).

Outro ponto importante que Oliveira chama atenção é para a relação entre a agricultura capitalista e a mundialização do capital. De acordo com o autor “a agricultura sob o capitalismo monopolista mundializado passou a estruturar-se sobre três pilares: a produção de commodities, as bolsas de mercadoria e de futuros e os monopólios mundiais” (2014, p. 28). E a consequência disso é primeiro, que a produção de alimento deixa de ser prioridade. Segundo, quem controla os preços são os especuladores nas bolsas de mercadoria e futuros. E terceiro, o controle monopolista da produção. 

Ariovaldo Umbelino de Oliveira também chama atenção para o processo de territorialização dos monopólios na agricultura. De acordo com esse autor “a territorialização dos monopólios atua, simultaneamente, no controle da propriedade privada da terra, do processo produtivo no campo e do processamento industrial da produção agropecuária e florestal (silvicultura)” (2014, p. 30). 

A partir daí o autor apresenta um importante levantamento desse processo em vários setores da agricultura como o sucroenergético – que tem a atuação de multinacionais como a Bunge Limited, Tereos Internacional, Noble Group e a Shree Renuka Sugar. O setor de celulose, papel e Madeira – onde as principais empresas do ramo também tem a participação de capital estrangeiro como é o caso do Grupo Votorantim e Suzano. O setor de grãos e fibras – onde atua empresas como a ADM – Archer Daniels Midland Company. E o setor de lácteos e café.

Oliveira (2014) ressalta que nesse processo “os proprietários de terras e os capitalistas aliam-se a empresas mundiais de diferentes setores, sejam nacionais ou estrangeiros”. Formando assim uma aliança entre a burguesia nacional e internacional. Aliança que tem culminado na metamorfose do monopólio do território em territorialização do monopólio. E o que seria isso?

É um processo que se dá a partir da formação de novas empresas de capital aberto que atua na bolsa propiciando um lucro maior aos envolvidos através das diferentes formas da renda da terra. O processo funciona da seguinte forma: “essas novas empresas de capital aberto, no campo brasileiro, estão juntando de forma articulada na aliança de classe com o capital mundial, o rentismo típico do capitalismo no Brasil, e, assim, estão fazendo simultaneamente a produção do capital via apropriação da renda capitalizados da terra e a reprodução ampliada do capital acrescida do lucro extraordinário, representado pelas diferentes formas da renda da terra” (OLIVEIRA, 2014, p. 93).

A esquerda progressista Uruguaia e a reforma agrária de mercado: 2004-2011 

Nesse capítulo, José Pedro Cabrera Cabral, inicia fazendo uma caracterização e uma retomada histórica do surgimento da esquerda progressista que chegou ao governo no Uruguai, no ano de 2004. Uma esquerda que foi gestada no interior do movimento pela redemocratização daquele país. E que conseguiu colocar  fim ao bipartidarismo secular que dominava a politica no Uruguai. Mas essa vitoria se deu após um processo de atualização ideológica dessa esquerda, culminando assim numa nova esquerda.

Essa atualização ideológica passou pelo abandono de bandeiras da esquerda tradicional e por uma aproximação do ethos neoliberal. O que ficou evidente com a inclusão de novos conceitos como cultura e mercado – que passaram a permear os discursos dessa esquerda, servindo de base para as novas propostas programáticas no governo (CABRAL, 2014, p. 106). Essa nova esquerda passa a defender a revalorização da democracia “como um fim em si mesma, como um estilo de vida, com ‘base no respeito e na tolerância do outro, de outros valores, de outras culturas, de outras religiões’” (CABRAL, 2014, p. 107).

Trata-se de um discurso conciliatório e é com esse discurso que a nova esquerda Uruguaia chega ao poder. Deixando claro, sobretudo para as elites econômicas que não precisavam se preocupar, pois no seu projeto de desenvolvimento para o país, a nova esquerda não deixaria o setor empresarial de fora. 

Um ponto importante desenvolvido por Cabral (2014) é acerca da aliança que o governo progressista fez com as organizações multilaterais para desenvolver um novo modelo rural no país. Esse modelo de desenvolvimento se deu a partir de uma proposta do Banco Mundial – que com o argumento de combater a pobreza no campo propunha uma contra reforma agrária ou reforma agrária de mercado.

Para Cabral (2014, p. 117) “o objetivo deste modelo de reforma agrária de mercado – MRAM é, na sua essência, acabar com qualquer projeto de reforma agrária redistributiva e com as ações de desapropriações de terras”. A questão agrária passa a não ser mais encarado como um problema social, mas sim familiar. Sai de cena a agricultura camponesa e entra em cena a agricultura familiar, que passa a ser incorporada no mercado. Nessa linha nosso autor ressalta que “em muitos casos o setor da pequena agricultura que produz para o mercado nacional deverá ser objeto de maior atenção e apoio em vista de seu potencial e de sua inexplorada contribuição ao crescimento e a geração de empregos” (2014, p. 119).

A partir daí o autor nos mostra como o governo progressista assumiu e desenvolveu o programa do Banco Mundial para o meio rural no Uruguai – transformado no projeto Uruguai rural que culminaria na reforma agrária de mercado que colocará  o país no processo de mundialização da agricultura. Tal como vimos no capítulo anterior em relação ao Brasil.

Nesse modelo de desenvolvimento para o meio rural as elites econômicas é quem ganha. Pois riquezas, de fato, são geradas, ainda que há custos socioambientais altos. Mas a estrutura agrária não se modifica pois o latifúndio permanece intocável como também a pobreza rural. Cabral salienta que “o avanço do agronegócio não só tem marginalizado a agricultura familiar senão que há afetado os pequenos e médios produtores” que acabam perdendo as terras ou arrendandos-as (2014, p. 163). Diante disso Cabral é enfático ao dizer que nunca na história do Uruguai – um modelo de desenvolvimento rural beneficiou tanto as elites agrárias com o discurso de que beneficiaria todos.

Políticas públicas e o agronegócio na Amazônia legal/cerrado: conflitos socioterritoriais

Nesse capítulo, Roberto de Souza Santos, mostra a importância dos governos (através de políticas públicas) para o avanço do agronegócio, especificamente, na Amazônia Legal e no cerrado, bem como os conflitos socioterritoriais que daí derivam. Para tanto ele parte de uma conceituação do que seria políticas territoriais e em seguida analisa o desenvolvimento dessas políticas na região em voga.

A partir de autores como Silva (2002) e Costa (1997), Roberto de Souza Santos irá defender que políticas territoriais “podem ser entendidas como política pública de investimento sobre o foco local e regional ou políticas de desenvolvimento regional estabelecida pelo Estado” (2014, p. 171-172). Seguindo essa linha o autor salienta que as políticas públicas são implementadas a partir da tomada de decisões e tais decisões são tomadas a partir de um plano político ou de um plano técnico. Sendo que no geral o plano político prevalece em detrimento do técnico.

A partir daí Santos (2014) passa a tratar das políticas públicas voltadas para Amazônia Legal e o Cerrado sobretudo no que diz respeito a expansão agropecuária. Essas políticas começaram em 1912 com a criação da Superintendência de Defesa da Borracha, que depois seria transformado em Banco de Crédito da Borracha, que em 1950 se tornou o Banco de Crédito da Amazônia. 

Durante o governo de Getúlio Vargas e no regime Militar também foram pensadas políticas públicas para essa região. Isso não sem conflitos socioterritoriais devido ao fato de que essas políticas públicas eram voltadas para atender as elites econômicas. Como pontua Santos (2014, p. 178) ao afirmar que “no campo, com a introdução do processo de mecanização agrava a questão social. Para início de conversa, a agricultura mecanizada como está colocada, infelizmente, é mais acessível à grande propriedade, fato que, sem sombra de dúvida, torna mais excludente socialmente o sistema produtivo”. 

No ponto seguinte, Santos irá falar sobre a territorialização do agronegócio na Amazônia Legal e no Cerrado. Que se dá a partir de uma estratégia do modelo de desenvolvimento de mundialização da agricultura – que investe na expansão das fronteiras agrícolas. Nesse processo “cada vez mais o capital no mundo do neoliberalismo adquire uma seletividade do espaço para se fixar e reproduzir em pontos em que a busca da mais-valia é mais acessível e eficaz” (SANTOS, 2014, p. 187). Isto é, não há barreiras que impeça o capital de se expandir na busca por mais e mais lucros. 

No ponto seguinte, Santos (2014) trata do processo de modernização e territorialização. Que se dá pela “apropriação da terra e imóveis na área do cerrado pelo capital real”. Esse capital é cada vez maior de origem estrangeira que em 2007 já controlava uma área de 3.800.000,0 hectares de terras em dez Estados, entre eles: Mato Grosso, Goias, Pará e Tocantins. Aliás, em relação ao Tocantins, o autor enfatiza a sua inclusão nesse processo, sobretudo com o avanço do MATOPIBA.

O autor também analisa políticas públicas como o Proceder que teve e tem uma importância significativa na expansão das fronteiras agrícolas sobretudo no cerrado. Esse programa entre 1975 e 2005 investiu US$ 570.000.000 nesse processo de expansão agrícola no cerrado, no qual o Tocantins também está incluído. Mas todo esse processo não se dá sem conflitos socioterritoriais, é o que nos aponta Santos (2014) ao chamar atenção para os altos índices de violência contra os povos do campo  (índios, quilombolas e camponeses pobres).

Roberto de Souza Santos (2014) salienta as contradições desse modelo de desenvolvimento do agronegócio ao enfatizar o caso do município de Campos Lindos do Tocantins. Cidade criada pelo então governador, José Wilson Siqueira Campos – que patrocinou o Projeto Agrícola Campos Lindos – tornando o município por um lado o celeiro do agronegócio tocantinense e por outro uma das cidades com um índice de desenvolvimento humano entre os piores do Brasil, com uma população de mais de 80% vivendo na pobreza. 

Por fim, Santos (2014) ressalta a forma obscura que o então governo Siqueira Campos doou terras para aliados políticos  (entre eles a hoje senadora Kátia Abreu), expulsando camponeses pobres dos seus territórios. Um exemplo que mostra bem como se dá o avanço do agronegócio no cerrado e na Amazônia Legal. 

Demarcação do território Krahô e as relações socioculturais da comunidade no outro novo território

Nesse que é o último capítulo do livro, Elizeu Ribeiro Lira, fala sobre a saga do povo Krahô na luta por um território onde pudesse cultivar a sua cultura ancestral. Uma saga marcada por violência iniciada pelos bandeirantes em 1809 (quando os Krahôs se encontravam em Carolina - MA) e que se repetiu nos anos seguintes por parte de fazendeiros, com destaque para o massacre de 1940, quando os Krahô já se encontravam aldeiados no município de Pedro Afonso.

Lira (2014) destaca que o massacre teve repercussão nacional o que acabou propiciando para que órgãos e agentes federais atuacem na região mediando o conflito entre os índios e os não índios. Garantindo um território definitivo para os Krahô. “Dessa forma, terminou o ciclo do retirantismo Krahô e suas liberdades territoriais foram reprimidas em outro território, isto é, um território descontínuo, com suas descontinuidades bem visíveis e demarcados por limites determinados e determinantes” (LIRA, 2014, p. 229).

A partir daí o autor passa a abordar como se deu o processo de demarcação desse novo território e a adaptação deles nesse espaço no município de Itacajá no Tocantins sob a coordenação dos órgãos do governo federal. Um processo que se deu não sem suas contradições, conflitos e equivocos. Tal como o de transformar os Krahô em criadores de gado. Mas apesar dos pesares, Lira aponta “que a população Krahô no novo território, felizmente, vem crescendo num ritmo muito bom”(2014, p. 244).

Por fim, Elizeu Ribeiro Lira (2014) também analisa a dinâmica da vida Krahô nesse novo território. Por exemplo, as aldeias e seu funcionamento, a relação com a comunidade externa, o sistema matrilinear e a gênese do domínio territorial nas aldeias circulares. Pontuando que nesses “quase duzentos anos de contato, com uma sociedade diferente e antagonica” a história dos Krahô tem sido uma história de resistência em defesa da sua cultura. 

Enfim, nesses quatro capítulos, os autores nos apresenta um importante recorte do modelo agropecuário que tem dominado não só o Brasil mas outros países da América do Sul também, como o caso do Uruguaia. Os autores com uma pesquisa profunda, apresentando diversos dados, nos oferece uma importante obra para compreendermos esse modelo de desenvolvimento no campo. E deixam evidente, a partir de diferentes abordagens que se convergem, como tem se dado o avanço do capitalismo no campo. Sobretudo graças a uma aliança entre os camponeses ricos e as burguesias nacional e Internacional. O que nos faz refletir sobre a necessidade de aliança entre camponeses pobres, indígenas, quilombolas e proletários como a única alternativa para barrar o avanço desse modelo de desenvolvimento. 

Referência Bibliográfica 

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de, e outros.Território em Conflito, Terra e Poder. Goiânia : Kelps, 2014.

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