“A história das sociedades desigualitárias vem acumulando um rico material sobre os malefícios e sofrimentos que a extrema desigualdade social tem acarretado para a humanidade. Desde o neolítico têm surgido espíritos críticos que propõem alternativas para esse caminho malsão. Esses espíritos críticos é que constituem hoje o que chamamos de esquerda. São especialistas na luta contra as injustiças e na arte da sobrevivência.”
Leandro Konder
Vivemos num contexto de polarização política marcada por um discurso reducionista em torno de conceitos importantes que nos ajudam na compreensão da dinâmica social. E esse reducionismo acaba contribuindo para uma visão distorcida da realidade. Óbvio, isso não é feito sem intenção, pelo contrário. A ideia é fazer com que os indivíduos não compreendam mesmo a dinâmica social pois assim elas não terão como modifica-lá.
Um dos conceitos que sofre esse reducionismo é o de esquerda (sejamos honesto, o de direita também) – utilizado geralmente no campo político para identificar grupos que se opõem as políticas da classe dominante. Até ai tudo bem. O problema é quando se reduz a um grupo o conceito de esquerda. E é o que geralmente tem acontecido por parte de diferentes analistas políticos tanto no debate público (sobretudo através da imprensa) como no meio académico.
Por exemplo um determinado grupo de esquerda (partido ou movimento social) se posiciona acerca de uma questão. Logo se tenta passar para opinião pública que esse posicionamento é de um todo e não de uma parte. Melhor exemplificando, o PSOL é contra o “pacote anticrime” do governo Bolsonaro, logo se tenta passar que é a esquerda que é contra o referido projeto. Outro exemplo, o PCB apoia o regime político norte-coreano, logo o discurso é a esquerda apoia o referido regime. O PT defende que houve um golpe com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, logo o discurso é que a esquerda defende que tratou-se de um golpe o impeachment de Dilma Rousseff.
Há também afirmações bem genéricas acerca da relação da esquerda com a religião, cultura, segurança pública, direitos humanos entre outros. Seguindo a mesma lógica de tentar reduzir as partes no todo, no entanto partindo de uma ideia abstrata. Como consequência, elas não correspondem aos fatos. E não correspondem aos fatos por que é uma espécie de falácia – uma generalização absoluta – que consiste na aplicação de uma regra geral a uma situação em particular. De acordo com Matthew – “essa falácia é muito comum entre pessoas que tentam decidir questões legais e morais aplicando regras Gerais mecanicamente”. Mais ou menos assim: “- A esquerda é contra evangélicos, você é de esquerda, logo é contra os evangélicos”. Ou, “- Direitos humanos é direito de bandido, a esquerda defende direitos humanos, logo a esquerda defende direito de bandidos”. Ou ainda, “- o PT é corrupto como mostrou a operação lava jato, e sendo um governo de esquerda, mostra que todo governo de esquerda é corrupto”.
Ora, grupos como PSOL, PT, PCB, PC do B, PSTU, PCO, MST, MTST, INTERSINDICAL, CUT, CSP-CONLUTAS entre muitos outros, podem até ser colocados no campo da esquerda. Mas daí dizer que cada grupo desse é “a esquerda”, para não dizer desonesto, é no mínimo uma falácia. Quando um desses grupos se expressam eles não estão falando por todo o conjunto do pensamento de esquerda, mas apenas por um determinado grupo – estão expressando a sua visão de esquerda. Daí ao invés de falar em esquerda (no singular) seria mais honesto intelectualmente falar em esquerdas – dado as diferentes perspectivas acerca do que é ser de esquerda. Por exemplo, considera-se que o PT e o PSTU estão no campo da esquerda. Mas na prática a concepção de esquerda desses dois grupos chega a ser quase antagônica. De modo que o PSTU não se sente representado pelo PT e o PT muito menos pelo PSTU. Da mesma forma pode se falar de um Trotskista e um Stalinista.
A esquerda é uma espécie de guarda-chuva onde se abrigam diferentes tendências (algumas inclusive que não dialogam entre si), por tanto quando se for falar da esquerda é preciso deixar claro de qual esquerda se está falando (qual tendência) – a comunista, a socialista, a anarquista, a socialdemocrata. Ou qual grupo de esquerda se está referindo – PSOL, PT, PCB, PC do B, PSTU, MST, MTST, CUT, INTERSINDICAL e por ai em diante. Mas infelizmente no debate político contemporâneo brasileiro a esquerda virou sinônimo de comunista que por sua vez virou sinônimo de petista.
É camaradas, vivemos um aprofundamento do que o filósofo Leandro Konder apontou ainda em 2008 – no segundo mandato do presidente Lula – a expansão da resignação, enfraquecimento do espírito questionador, empobrecimento das discussões e assimilação do conformismo pelos cérebros. E aquém interessa esse estado de coisas se não ao status quos?!
Parece uma questão óbvio, mas as vezes o que nos é óbvio não é tão óbvio assim para os demais. E como não nos custa responder, respondamos então:
Não, senhores. Nem toda esquerda é comunista e nem todo comunista é petista. Em primeiro lugar, você não encontrará uma única definição do que é a esquerda – essa definição dependerá da perspectiva da qual se está falando. Se quer ter uma idéia da diversidade de concepção sobre a esquerda recomendo a leitura do livro “o que é ser de esquerda hoje?” (Editora Contraponto) uma coletânea de textos de diferentes pensadores de diferentes organizações políticas e da academia. Mas aqui temos que optar por uma definição do que é a esquerda. Sendo assim fiquemos com a do filósofo Leandro Konder.
Para Konder (2008) à esquerda se caracteriza por uma visão crítica e pela proposição de alternativas as sociedades desigualitárias. Essa concepção é bem abrangente, não só em relação ao período histórico como também a correntes de pensamento, organizações e indivíduos. E partindo dessa concepção abrangente de esquerda podemos afirmar que ela precede o comunismo – este por sua vez se constituiu – como uma corrente de esquerda que ganhou força sobretudo a partir das contribuições de Marx e Engels (que é bom lembrar não criaram o movimento comunista, apenas deram uma nova perspectiva para este).
Os comunistas não são a única força de esquerda e Marx e Engels deixam isso claro no “Manifesto do Partido Comunista”. Afinal como afirmam: “A história de todas as sociedades até agora tem sido a história das lutas de classe” (2008, p. 08). Ora, antes do movimento comunista já havia luta de classes, já havia pensamento critico e propostas alternativas ao modo de produção dominante, em suma, já havia esquerda. De modo que podemos dizer que os comunistas não são a esquerda, mas uma das suas expressões (talvez a sua expressão mais consequente). Que se constituiu, segundo Marx e Engels, na luta pela supressão da propriedade privada (a propriedade burguesa).
Nessas lutas foram surgindo diversas organizações mundo afora com o objetivo de constituir o proletariado em classe, derrubar o domínio da burguesia, e a partir daí o proletariado conquistar o poder político (2008, p. 30). Entre essas organizações surgiram os partidos políticos tal como conhecemos hoje. E já no “Manifesto do Partido Comunista” percebemos que os partidos não representam todo o movimento mas uma fração apenas.
Chegamos então ao Partido dos Trabalhadores (PT) um partido popular surgido na década de 1980 – no movimento de redemocratização política do país com o fim do regime Militar. O PT surge como uma alternativa de massas no campo da esquerda – se contrapondo ao modelo de organização hegemônico nesse campo a partir do triunfo da revolução Bolchevique na Rússia em 1917 representado sobretudo pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). Enquanto o PCB fundado na tradição marxista-leninista tinha uma visão mais revolucionária – inclusive se necessário através da luta armada. O PT se fundamentou num projeto de integração e melhoria das condições de vida das classes populares – não se fala em revolução mas em reformas. Essa perspectiva se torna hegemônica na esquerda brasileira, mas o fato de se tornar hegemônica não significa que não exista outras.
Por isso não dá para aceitar o discurso reducionista de que o PT é a esquerda, que a esquerda é o comunismo, e o comunismo é o PT. Esses que alimentam esse discurso querem tudo, menos que os indivíduos se libertem da condição de alienação que estão. Cuidado com esses pseudointelectuais que com a desculpa de ti mostrarem o caminho mais curto ti colocam num beco sem saída ou melhor, com uma única saida – a direita.
Minha camarada e meu camarada, partindo de premissas falsas não é possível chegar a conclusões verdadeiras. Por tanto quando falarem que a esquerda é isso ou a esquerda é aquilo. Ou ainda que a esquerda fez isso ou que a esquerda fez aquilo. Pergunte de qual esquerda se está falando. Pois como procuramos mostrar aqui não há uma esquerda mas sim esquerdas. Podemos até falar em uma esquerda do ponto de vista conceitual, mas no terreno real da luta política o que vemos são suas expressões – e essas expressões são diversas tanto do ponto de vista de perspectivas (anarquismo, comunismo, socialismo, socialdemocracia), como do ponto de vista organizacional (partidos políticos, sindicatos, associações). São essas expressões que vemos atuando no dia a dia.
E aqui chamamos atenção para o seguinte ponto. Com o desenvolvimento histórico essas expressões da esquerda podem se modificarem e até chegarem ao fim. Mas o ideal de esquerda não. Por isso não podemos engolir o discurso do fim da esquerda – partidos podem acabar, movimentos podem se enfraquecer, correntes de pensamento podem ser superadas – a esquerda viverá enquanto existir alguém em algum canto cultivando a crítica e propondo construir um modelo alternativo de sociedade.
Parece que desviamos um pouco do nosso objetivo inicial – falar sobre o reducionismo em torno do conceito de esquerda na atualidade. Mas justificaria esse desvio com o argumento de que esse reducionismo busca destruir as forças de esquerda. Daí a importância de refletirmos também sobre essa questão.
Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins.
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