sábado, 15 de junho de 2024

Uma leitura da obra “Os miseráveis”, do Victor Hugo

Morrer é nada, minha querida. Horrível é não viver”
Victor Hugo, in Os miseráveis 


“Em nenhum outro lugar, as profundas e infinitas contradições humanas aparecem tão dramaticamente explícitas do que no campo de batalha. Talvez seja pela grandiosidade da proximidade da morte...”. Filósofa Victor Hugo num dos trechos da sua célebre obra Os miseráveis, publicada em 1862. E continua. “Será ali que a solidão esmagadora em que, ao fim e ao cabo, nascemos, em que somos confinados e em que morreremos se faz mais evidente e onde a nossa essência  (a covardia, a mesquinhez, o egoísmo e outros tantos sentimentos, destacadamente os ruins, pois, muitas vezes, a nossa benignidade é apenas a grande mentira que contamos sobre nós mesmos e para nós mesmos), nos confronta.”

Os trechos acima que abrem, digamos o terceiro ato da obra, reflete um dos aspectos da narrativa clássica do célebre escritor francês do século XIX – uma discussão filosófica sobre a natureza humana. O que nos faz imediatamente lembrar de Thomas Hobbes e Rousseau. Enquanto o primeiro acredita na maldade como inerente ao ser humano. O segundo discorda. Victor Hugo claramente concorda com o primeiro. Ainda que aponte por meio dos seus personagens, como Jean Valjean ações benevolentes. Que numa análise minuciosa são realizadas não pensando no outro, mas em si. Ou seja, são ações que acabam tendo um caráter egoísta.

Nessa linha o título da obra ganha dois sentidos. O primeiro está relacionado ao que foi dito anteriormente, ligado a nossa natureza. Já o segundo se relaciona a questão material, com a desigualdade social (que não deixa de está relacionado com o primeiro). Desse modo além do aspecto acerca da discussão da natureza humana, também temos a questão política. Que se dá, na nossa ótica, com uma discussão sobre o papel do Estado. 

Para compreender melhor essa dinâmica, Victor Hugo desenvolve alguns personagens importantes. A começar por aquele que poderíamos denominar de protagonista – Jean Valjean. Considerado um criminoso pelo Estado o que o fará ser perseguido por quase toda a vida pelo implacável inspetor de Polícia Javert.

Aqui não poderíamos deixar de lembrar de Aristóteles quando diz que a política deveria ser a arte de fazer justiça. Mas que justiça é essa que condena um homem a prisão, deixando-o 19 anos preso, por roubar um pedaço de pão para aplacar a fome de alguém?! Posto em liberdade Jean Valjean nutri um ressentimento pela sociedade que o leva a cometer outro delito. Não é a prisão que irá transforma-lo, fazendo com que ele enfrente grandes obstáculos para cuidar de Cosette, mas a boa ação do religioso Bienvenu evitando que ele voltasse para prisão. 

Javert aparece implacável no seu papel de fazer cumprir a lei. A ele não interessa o que levou o indivíduo a chegar num determinado ponto, como no caso da pobre Fantine. O importante é combater de forma severa qualquer desvio de conduta. Quando ele descobrir que querer fazer cumprir a lei cegamente não tem sentido. Ainda mais diante do fato que nem sempre essas leis são justas, sua vida perde sentido e o seu final é trágico.

O romance vai avançando e o autor vai nos mostrando como a desigualdade social alimenta a revolta. Alguns partem para vida do crime como é o caso dos Thérnadier. Outros como o jovem Marius para militância política. Chegamos assim na guerra civil que coloca todos os miseráveis na mesma trincheira.

Marius surge como a figura do intelectual republicano que acredita na revolução como um meio de transformar a sociedade francesa sob o regime monárquico. De família aristocrática, rompe com esta em nome das suas convicções políticas. O pequeno Gavroche simboliza o povo, imaturo, sem consciência, aventureiro, que se sacrifica pela causa. Éponine lembra Fantine – a amante não correspondida que acaba se sacrificando pelo amado. Marius, volta para casa, se reconcilia com seu avô aristocrata (Gillenormand) e se casa com Cosette.

Esses personagens nos mostra que a aliança entre o povo e a burguesia, só favorece a burguesia.

“Muitos estavam mortos, enquanto a maioria da população simplesmente ignorava o apelo às armas de estudantes e operários e, aos poucos, voltavam à normalidade como se nada de mais grave houvesse acontecido em Paris e em vários outras cidades francesas. Dentro de poucos dias ou mesmo de horas, o derradeiro bastião de grandes transformações sociais e políticas sucumbiria sem deixar maiores lembranças.”

Certamente isso serviria de lição para os líderes da Comuna de Paris (1871). Que não teve melhor sorte que a revolta de 1832 descrita em Os miseráveis. Mas serve de inspiração ainda hoje para aqueles que sonham com outra sociedade. Entre eles Karl Marx ao desenvolver o seu materialismo histórico dialético.

“Cosette e Marius ainda fizeram menção de dizer muitas outras palavras, animá-lo, promessas tolas sobre um futuro que não mais interessava a Jean Valjean. Ele dirigiu-lhe um último olhar, aquela luz mágica do encantamento mais genuíno diante da felicidade de outros, eclipsando-se serenamente. Finalmente em paz”.

O final parece contradizer a tese do próprio autor de que somos maus por natureza. Jean Valjean no seu leito de morte encontra a paz que sempre procurou ao contemplar a felicidade daquela pela qual ele decidiu dedicar longos anos da sua vida. Ou seja, de forma genuína ele demonstrou amor pelo outro. O que talvez tenha sido apenas pelo seu encontro com o inevitável fim.

Pedro Ferreira Nunes – Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. Atua como Professor da Educação Básica na Rede Estadual de Ensino do Tocantins no CEMIL Santa Rita de Cássia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário