sexta-feira, 24 de abril de 2020

Mario Ariel González Porta e os “momentos essenciais do modo filosófico de pensar”.

                                                         
Se você é um estudante universitário muito provavelmente já se perguntou ou ouviu a questão: para que serve a Filosofia? E se você é professor, sobretudo no ensino médio, não escapou dela. Não tem como negar, quem estuda ou ensina Filosofia sabe que há na nossa sociedade uma visão negativa acerca dessa matéria. De onde vem essa visão negativa? Como fazer para desconstrui-la? São questões que Mário Ariel González Porta nos ajuda a refletir a partir da sua tese sobre os momentos essenciais do modo filosófico de pensar.

Para González Porta a visão negativa acerca da Filosofia surgi de falsas impressões que se tem dela. Entre essas falsas impressões está a de que a Filosofia é um espaço onde reina o capricho, onde cada um pode dizer o que bem entender. Contra essa visão, González Porta, afirma que a Filosofia não é um caos do ponto de vista incomensurável. Também não consiste simplesmente em possuir certezas. Trata-se de ter opiniões sobre certos pontos bem definidos e sustentá-las em algo diferente de uma convicção pessoal. Desse modo ele defende que o núcleo central da Filosofia não é constituído de crenças tematicamente definidas e racionalmente fundadas, mas de problemas e soluções.

Compreender o problema de um determinado filósofo é a chave para compreender a sua filosofia. Se você não consegui perceber qual o problema que um determinado autor se propõem a refletir, não conseguirá compreender o pensamento desse autor. Para ficar mais claro vejamos o que o nosso filósofo diz a respeito disso:

“A Filosofia possui problemas, sendo a unidade dinâmica interna desses problemas o que está na base da multiplicidade e da mudança de temas e opiniões. A lista dos problemas filosóficos está sempre incompleta e submetida a constante revisão. Não existe, por assim dizer, um catalogo deles fixado por uma instância externa a própria filosofia, e do qual ela poderia se servir” (González Porta, 2003). 

Por exemplo, a visão que os gregos tinham sobre determinado problema não vai ser o mesmo no período medieval e no moderno, a sociedade muda, nós também mudamos, os problemas vão se transformando, alguns desaparecem outros nascem. Diante desse contesto dinâmico não se pode esperar que aja uma visão fechada, pronta e acabada sobre os problemas. Não se pode esperar que um filósofo num determinado contexto pense igual a outro em outro contexto.

González Porta (2003) ressalta que o caminho para entendermos um autor é ver a sua filosofia como resposta ao problema que ele se coloca. Isso vale para qualquer filósofo sem exceção. Nosso autor ressalta que em cada obra o filósofo pode abordar um problema diferente, nesse sentido não basta apenas questionar qual o problema em tal obra, mas qual o problema do filósofo. Pois é assim que se compreende o filósofo e não simplesmente reunindo vários saberes sobre ele.

A partir daí González Porta  (2003) vai falar sobre o problema. Para nosso autor “o problema de uma teoria filosófica é algo diferente tanto do seu tema como de toda “questão”. O tema é aquilo do que ou sobre o que o autor fala. Contudo o autor fala sobre algo, e diz alguma coisa a respeito, a saber, sua tese. Distingamos, então, aquilo do que fala daquilo que diz a respeito; por exemplo, posso falar do conhecimento e da verdade.”

Dito isso chamamos atenção para questão da tese. Sobretudo por que de acordo com nosso autor a tarefa da filosofia não é responder perguntas, mas sim dissolvê-las, evidenciando que elas, em ultima instância, carecem de sentido. Nessa linha, González Porta (2003) nos diz que na Filosofia, a tese é a solução de um problema que pode, eventualmente, se apresentar, de início, como uma hipótese que se confirma pela ulterior argumentação. De qualquer forma não se compreenderá a tese filosófica se não se compreender o problema do autor. Seria como, de acordo com nosso autor, querer entender uma resposta sem uma pergunta. Desse modo o primeiro passo é compreender o problema do autor, segundo compreender a tese para esse problema. Sendo que essa tese é construída a partir de uma argumentação e de uma fundamentação. 

Nessa linha, para González Porta  (2003), o argumento desempenha um papel essencial. Pois são os argumentos que legitima a opção por uma determinada tese. O que não quer dizer que o discurso filosófico é argumentativo. Para ele se assim fosse, à filosofia seria a 'solução de problemas'. 

“ A fundamentação (e argumentação) da tese nem sempre tem um caráter linear e facilmente reconstruível; as vezes ela assumi formas muito refinadas. Em algumas ocasiões, entre os argumentos, encontra-se a derivação de consequências. Toda tese contém consequências e elas também tem que ser verdadeiras. Teses são rechaçadas muitas vezes não  por si mesmas, mas por suas consequências” (González Porta, 2003).

Dito isso, fica evidente um dos traços da Filosofia que leva a uma visão  negativa da mesma, o fato de que a Filosofia não dá certezas absolutas, não dá receitas prontas e acabadas (se assim for não é Filosofia). Os filósofos apresentam teses, teses que são criadas como respostas a determinados problemas. Essas teses geram consequências. E rechaçar ou não essas teses pelo fato delas gerarem determinadas consequências é nosso papel. Para exercer esse papel precisamos pensar. E ai que complica, pois muitos preferem não pensar – e buscam justificar tal atitude com a desculpa de que não gostam de Filosofia, que não sabem para que serve – que os filósofos tem uma linguagem muito difícil. E tal discurso vem geralmente de quem nunca leu de fato uma obra filosófica.

Mas se esse não é o seu caso. Se apesar das dificuldades você quer ler e entender as obras filosóficas de diferentes autores. González Porta  (2003) nos orienta o seguinte: Quando fores ler um texto filosófico busque responder três questões: 1- qual é o problema do autor do texto? 2- qual a solução ou resposta (a tese) que ele dá ao problema? e por fim, 3- quais os argumentos e fundamentos que ele utiliza para justificar a tese. Eis ai o caminho não só para ler, como também compreender Filosofia.

Pedro Ferreira Nunes – é Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins. 

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Referência:

PORTA, Mário Ariel González. A Filosofia a partir de seus problemas. Edições Loyola, 2003.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

O conflito pela terra e o discurso que o permeia.

“Eu não consigo entender,
que nessa imensa nação. 
Ainda é matar ou morrer,
por um pedaço de chão.”
Pedro Munhoz

Em abril de 1996, 19 trabalhadores rurais sem terra foram assassinados pela Polícia Militar do Pará, quando ocupavam uma rodovia como parte de uma jornada de luta pela terra no Estado. O episódio que obteve repercussão Internacional ficou conhecido como “o massacre de Eldorado do Carajás. E a partir de então o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) passaram a realizar anualmente no mês de abril o “Abril vermelho” – uma jornada de luta nacional em memória daqueles 19 trabalhadores rurais assassinados na luta por reforma agrária – uma bandeira de luta que continua necessária.

Esse ano de 2020, devido as medidas de contenção da pandemia de COVID-19, o abril vermelho não poderá ser celebrado como nos anos anteriores – com ocupações, bloqueio de rodovias e marchas. Mas não podemos deixar de lembrar desse episódio que mostra a violência por parte do Estado brasileiro  (á serviço das elites agrárias) contra o campesinato pobre e os trabalhadores rurais. Lembrar desse episódio se torna ainda mais importante devido o momento político em que vivemos – Com o país governado por um presidente que não só é contrário a reforma agrária,  como também incentiva a violência contra as populações tradicionais e trabalhadores sem terra.

O discurso do Sr. Jair Bolsonaro contra as populações pobres do campo que ousam desafiar as elites agrárias do país não é novidade. Esse discurso há vários anos vem sendo usado para justificar a violência utilizada por parte dos “donos da terra” contra as populações marginalizadas no meio rural brasileiro. A novidade agora é o discurso partir de um agente público (do Estado), que deveria, teoricamente, ser um poder mediador no conflito. Tal postura trás consequências gravíssimas, a medida que funciona como uma espécie de carta branca para que se cometa crimes contra quem ousa desafiar o poder do latifúndio no Brasil.

Diante disso, chamo atenção para importância de compreendermos esse discurso,  que não é o discurso de um indivíduo, mas de uma classe que busca manter e ampliar o seu domínio territorial no meio rural brasileiro e impor determinado modelo de desenvolvimento. 

Nessa linha, uma autora que nos ajuda a compreender o discurso que permeia o conflito pela terra no Brasil, é a Luciana Miranda Costa, que na sua pesquisa de mestrado, que deu fruto ao livro “Discurso e conflito – Dez anos de luta pela terra em Eldorado do Carajás”, aborda essa temática.

No livro a autora busca através da análise do discurso de posseiros e fazendeiros, compreender as relações políticas e sociais no conflito por terras numa das regiões com maior índice de violência no campo (a região que ficaria famosa com a repercussão do massacre de 19 trabalhadores rurais sem terra). Para tanto a autora realiza entrevista com ambos os lados do conflito, e a partir de um referencial teórico de autores como o filósofo francês Michel Foucault, analisa o discurso dos atores envolvidos. 

Costa (1999) ressalta que nessa perspectiva de análise a ênfase está no dizer e nas condições de produção desse dizer – devendo portanto levar em consideração o contexto em que o agente do discurso está inserido e a sua posição social. Desse modo o discurso revela quem é o indivíduo – que se constrói e constrói a imagem do outro através do discurso.

Lendo a tese da autora dois pontos me chamaram atenção nos discursos de posseiros e fazendeiros. O primeiro é a  tentativa de justificar as ações de violência como forma legítima de autopreservação diante da ausência do Estado em cumprir o seu papel de mediador do conflito. E o segundo, que está relacionado com o primeiro, é a busca por convencer quem estaria com a razão (quem é a vítima e quem é o criminoso). 

A partir daí, percebe-se que as posições das partes em conflitos são antagônicas. Os fazendeiros vêem os posseiros como criminosos que invadem propriedade privada. E os posseiros, por sua vez, dizem que criminosos são os fazendeiros que invadem terras devolutas – que portanto são públicas. 

Diante de posições antagônicas, onde não se abre espaço para o diálogo, o que resta então é a lei da bala. E se tem bala de lá,  tem bala de cá também. Só ai o Estado entra em cena – quando muito sangue já fora derramado. Mas até que tudo se apaziguasse foram dez anos de conflitos com muitas mortes – a maioria do lado dos posseiros, mas os fazendeiros também tiveram suas perdas.

Quem conhece minimamente a história da luta pela terra no Brasil sabe que a violência como instrumento para impor domínio sobre um determinado território não é uma exceção. É só analisarmos o relatório de conflitos no campo realizado pela Comissão Pastoral da Terra  (CPT) lançado anualmente. Essa violência aumenta na medida em que o Estado se ausenta dessas áreas ou então busca resolver o conflito como caso de polícia e não de política. E no livro “Discurso e conflito – Dez anos de luta pela terra em Eldorado do Carajás” podemos perceber o que acontece quando o Estado opta por intervir no conflito como se fosse um caso de polícia – a violência aumenta e o conflito se antagoniza mais ainda.

Olhando para o contexto atual, é o que temos observado – o aumento da violência no campo. Ainda mais diante de uma postura extremamente hostil, por parte do governo de extrema direita comandando o país, contra os povos pobres do campo. Esse discurso reforça as ações de violência dos “donos da terra” contra quem ousa desafiar o seu domínio. Esses agora se sentem seguros para impor suas vontades as populações pobres do campo, pois se sentem representados, e sabem que podem contar com a cumplicidade do governo federal. 

Mas engana-se quem acredita que isso resolverá os conflitos por terra, que esse aumento da violência inibirá a luta por reforma agrária, pelo contrário. Como já dissemos mais violência gerará mais violência. Por enquanto tudo vai bem por que as mortes, por exemplo de indígenas,  tem ocorrido apenas de um dos lados do conflito. Mas é bom não se iludirem achando que será sempre assim.

Pedro Ferreira Nunes – é Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins. 

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Sobre a diferença entre gostar e confiar

                                                                                                      Á minha sobrinha, Beatriz Ferreira.

Um certo filho sempre reclama da sua mãe por, segundo ele, gostar mais do seu irmão do que dele. A este é permitido uma série de coisas que a ele é negado. Além do fato de que sempre que a mãe vai tomar alguma decisão é o seu irmão que ela consulta. Quando ela vai fazer uma viagem é ao seu irmão  que ela deixa a guarda da casa. Quando ela precisa de algo é ao seu irmão que ela recorre. Tal atitude seria mesmo prova de que a mãe gosta mais de um filho do que de outro? 

O exemplo acima me fez refletir sobre essa e outras questões como: por que alguns pais tratam os filhos de forma diferente? Por que há alguns são permitido determinadas liberdades e a outros não? Foi lendo o diálogo Lísis, do velho Platão que comecei a compreender essas questões – sobretudo o fato de que existe uma diferença entre gostar e confiar. E é a falta de compreensão acerca desses dois sentimentos que faz com que achamos que nas diversas relações não há amor quando o que não há é confiança. 

Em Lísis ou sobre a amizade, Platão descreve o diálogo que Sócrates trava com o jovem Lísis e outros acerca de que “quando alguém se torna amigo de outrem, qual dos dois vem a ser amigo do outro: quem ama se torna amigo de quem é amado, ou quem é amado se torna amigo de quem ama? Ou não há diferença?” Antes de entrar nessa questão que trás o problema central do diálogo, Sócrates questiona Lísis sobre a relação dele com seus pais. E é ai que está a questão que nos interessa aqui – entender por que os pais não permitem a seus filhos fazerem determinadas atividades e se isso se dá por que não os ama.

Sócrates no seu estilo inconfundível  (descrito por Platão) começa por questionar Lísis acerca do amor dos seus pais por ele: “― Suponho, Lísis, que teu pai e tua mãe te amam muito, não?”. O que Lísis responde afirmativamente. E quem ama quer a felicidade do amado – uma ideia que tanto Sócrates como Lísis concordam. Sendo assim Sócrates questiona: “― E te parece ser feliz o homem que é escravo e ao qual não é permitido fazer nada daquilo que deseja?”. O jovem dirá com uma certeza absoluta que não – não é feliz aquele que vive como um escravo e não pode fazer o que deseja.

Sócrates vai tecendo a teia de forma magistral e Lísis vai caindo sem perceber. “― Então, se teu pai e tua mãe te amam e desejam que tu venhas a ser feliz, é claro que cuidam de todas as formas para que sejas feliz”.  Lísis o responde: ― “E como não seria?”. Sócrates então sentencia “― Portanto, permitem que faças aquilo que queres e não te reprovam nem te impedem de fazer o que desejas”. Lisis então revela que não é bem assim, que seus pais o impedem de fazer muitas coisas sim.

Diante disso, Sócrates então questiona: “― Como assim? Embora queiram que sejas feliz, impedem-te de fazer aquilo que queres?”. A partir daí o nosso filósofo vai fazendo uma série de perguntas sobre atividades que os pais do Lísis, lhe permite ou não fazer, Como por exemplo: Andar de carroça sozinho, participar de uma corrida controlando as rédeas do animal, açoitar as mulas. As respostas do jovem é sempre negativa. Nada disso lhe é permitido fazer, mas a um escravo.

Diante dessas respostas, Sócrates diz: “― Então, eles têm mais em conta um escravo do que a ti, filho deles, segundo parece, e confiam-lhe mais as próprias coisas do que a ti e permitem que ele faça o que quiser, enquanto a ti impedem de fazê-lo? Responda-me ainda o seguinte: permitem que governes a ti próprio ou nem isso confiam a ti?” Ao que Lísis responde: “― E como confiariam?”. Sócrates pergunta: “― Mas então alguém te governa?” E Lísis responde: “― Aquele ali, o pedagogo”.  Sócrates então questiona: “― E ele não é um escravo, é?” E  Lísis responde: “― E como não seria? É um dos nossos escravos”. Sócrates então setencia: “― Que terrível! Ser livre, mas ser governado por um escravo!”. 

E Sócrates continua questionando o jovem acerca das atividades que lhe fariam feliz mas que tanto seu pai como sua mãe não lhe permitem fazer. O que o leva a questionar: “― Mas por que, então, te impedem terrivelmente de ser feliz e de fazer o que quiseres e te educam submetendo-te ao longo de todo o dia a uma condição contínua de servidão, na qual quase nada do que desejas podes fazer? Consequentemente, nenhuma utilidade tem tanta riqueza para ti, já que outros a dirigem ao invés de ti, e até mesmo a tua pessoa, tão bem-nascida, também ela é comandada e zelada por outrem. Então, tu nada governas, Lísis, e não fazes nada daquilo que desejas”.

Para Lísis tal fato ocorre por ele não ter ainda idade suficiente. Resposta que Sócrates discorda: “― Temo que não seja por isso que eles te impeçam, filho de Demócrates, visto que ao menos em uma coisa, suponho eu, teu pai e tua mãe confiam em ti e não esperam até que tenhas idade: quando querem que alguém leia ou escreva algo para eles, és tu, presumo eu, quem preferencialmente escolhem entre os da casa. Não é?”. O que Lísis confirma: “― Sim, naturalmente”. E Sócrates continua: “― Então, tu podes, nesse caso, escrever a carta que quiseres: seja uma ou duas. E o mesmo vale para a leitura. E quando pegas a lira, acho que nem teu pai nem tua mãe te impedem de tocar as cordas que quiseres, nem de usar os dedos ou o plectro para tocá- la. Ou te proíbem?”. E Lísis responde: “― Não me proíbem, de fato”.

Por que então em alguns casos o jovem é proibido e outros não lhe proíbem? É o próximo questionamento que Sócrates faz a Lísis: “― Qual então, Lísis, poderia ser a causa de, nestes casos, não te proibirem, mas naquelas outras coisas que dissemos há pouco, te proibirem? Lísis responde: ― Porque nestes assuntos, penso eu, tenho conhecimento, ao passo que naqueles, não”. Resposta com a qual Sócrates concorda: “― Muito bem, meu bom rapaz! Portanto, não é a idade que teu pai aguarda para te confiar tudo; mas no dia em que considerar que tu és mais sábio do que ele, então ele confiará a si próprio e os seus negócios a ti”.

Aqui chegamos num ponto importante que nos faz retornar ao nosso problema apresentado no início desse texto – por que alguns pais tratam os filhos de forma diferente? Por que há alguns são permitido determinadas liberdades e a outros não?  A partir do diálogo entre Sócrates e Lísis podemos dizer que não é por falta de amor, não é por que se gosta mais de um do que de outro. Mas é por uma questão de confiança – essa deve ser conquistada a medida que se mostra que é capaz de fazer ou administrar determinada coisa. E a capacidade de fazer e administrar algo vem através da aquisição do conhecimento. 

Esse é o caso do exemplo que trouxemos no início – do filho que se queixa da mãe por trata-lo de forma diferenciada do irmão – o que segundo ele seria prova de que ela gosta mais do seu irmão do que dele. A questão não é que ela gosta mais de um filho do que do outro. Mas sim que ela confia mais num do que no outro. E se ela confia mais num do que no outro é por que esse que merece a sua confiança fez por onde merece-lá, isto é,  mostrou ser capaz de fazer aquilo que lhe é confiado. Cabe a esse que reclama da maneira que é tratado por sua mãe, refletir sobre as suas próprias ações e atitudes – se elas são dignas de confiança.

No seu diálogo com Lísis, Sócrates salienta que quando alcançamos a sabedoria de determinada coisa conseguimos não só a confiança dos nossos pais, mas também da comunidade em geral. “– E então? Acaso o teu vizinho não terá o mesmo critério que teu pai em relação a ti? Achas que ele confiará a ti a administração da própria casa quando considerar que és mais sábio do que ele mesmo na administração doméstica, ou achas que ele mesmo assumirá essa função?” Ao que Lísis responde: “― Acho que a confiará a mim”. E Sócrates continua: “― E então? Achas que os atenienses não te confiarão os seus negócios, quando perceberem que és suficientemente sábio?”. E Lísis responde: “― Acho que sim”. E o nosso filósofo continua trazendo outros exemplos e por fim conclui:

“― Portanto, eis o que acontece, caro Lísis. Nas coisas em que nos tornarmos sábios, todos confiarão em nós – gregos e bárbaros, homens e mulheres – e, nesse âmbito, faremos o que quisermos sem que ninguém de bom grado nos impeça. Em relação a essas coisas, nós mesmos seremos livres e controlaremos os demais, e nos apoderaremos delas – pois tiraremos vantagens delas. Entretanto, nas coisas em que não tivermos compreensão, ninguém confiará que façamos o que nos parecer conveniente. Pelo contrário,  todos nos impedirão o quanto puderem, não somente pessoas estranhas, como também o nosso pai, a nossa mãe ou qualquer um que nos seja ainda mais íntimo do que eles. Nesse âmbito, nós mesmos obedeceremos a outrem e aquelas coisas nos serão alheias, pois nenhuma vantagem tiraremos delas. Concordas que é assim que sucede?”.

Bem, Lísis responde positivamente para Sócrates. Mas nós, ao analisarmos a realidade atual, dizemos que nem sempre é assim que sucede. O que se dá muito provavelmente pela confusão em compreendermos a diferença entre gostar e confiar, tal como faz o filho com sua mãe, que apresentamos no início. 

                                      “Nas coisas em que nos tornarmos sábios, todos confiarão em nós...”.
                                                                                                                                                   Sócrates 

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins. 

terça-feira, 7 de abril de 2020

Sobre a Medida Provisória de privatização das Rodovias Estaduais pelo governo Carlesse.

Em pleno isolamento social, imposto pelas autoridades estaduais e municipais, para contenção do novo coronavírus, o governo Carlesse por meio de medida provisória (MP-09) autorizou a Agência Tocantinense de Transportes e Obras (AGETO) a concessão de 640,40 km de rodovia estadual para a iniciativa privada.

Em qualquer situação seria contra essa medida. Mas na situação atual não só nos posicionamos contra como também ficamos indignados por uma medida dessas que impactará a vida de toda a população ser tomada no momento que a atenção da população está totalmente desviada para o combate ao novo coronavírus.

Não é com surpresa que recebemos essa medida provisória autorizando a concessão das rodovias estaduais para iniciativa privada. Sobretudo pelo fato de que o governador Mauro Carlesse (DEM) nunca escondeu a perspectiva neoliberal do seu governo. Mas surpreende o fato dessa medida ser anunciada num momento em que a população está em isolamento social – onde toda a atenção da sociedade está voltada para o combate a pandemia de COVID-19.

O que nos parece é que o governo está aproveitando o momento para fazer avançar sem questionamentos uma medida impopular. Pois muito provavelmente, apesar do discurso do governo, a maioria da população Tocantinense se posicionaria contra tal projeto que vai onerar mais ainda o bolso da população já tão cansada de pagar imposto sem ver o retorno desejado.

Não podemos também esquecer o histórico de privatizações fracassadas de bens e serviços em áreas como saúde, água e energia. Privatizações que ocorreram nos governos Siqueira Campos e Marcelo Miranda, que nunca trouxeram as melhorias prometidas na prestação de serviço, pelo contrário – por exemplo, em relação ao serviço de água foi inclusive necessário a reestatização do serviço em alguns municípios e em outros vimos as Câmaras de Vereadores abrirem comissões parlamentares de inquérito (CPI) para investigar os serviços fornecidos pela concessionária de água.

Parte significativa da população compreende que quando se privatiza um serviço público, significa que teremos que pagar em dobro por um determinado serviço. Pois além de continuar pagando os impostos ao governo, também iremos pagar as concessionárias que vislumbram exclusivamente o lucro.  No caso da concessão das rodovias além de pagar os impostos ao governo, como o IPVA e ICMS, passará também a pagar os pedágios para as concessionárias. E isso não pesará apenas no bolso de quem tem veículos mas de toda a população pois haverá um aumento geral nos preços de produtos e serviços. 

É sabendo de tudo isso que o governador Mauro Carlesse (DEM) aproveitou esse momento para sancionar a medida. E se tratando de uma MP a sua validade é imediata. 

Dito isso, é importante compreendermos melhor o que é uma Medida Provisória (MP): 

De acordo com Gabriel Marques (2015) “excepcionalmente, em casos de relevância e urgência, a nossa constituição garantiu ao poder executivo a criação de atos com força de lei”. Esses atos são as medidas provisórias que “representam espécies normativas, editadas pelo poder executivo em casos de urgência e relevância  dotadas de incidência imediatas”.

Dito isso, dizei-me camarada, qual a urgência e relevância que o Tocantins tem nesse momento de isolamento social da população pela COVID-19 de uma medida provisória privatizando as rodovias do nosso Estado? 

Tudo bem. Aceitemos a justificativa de que a medida irá contribuir para modernização da malha viária estadual. Também aceitemos a justificativa de que isso irá melhorar a vida dos cidadãos. Aceitemos até o discurso neoliberal de que o estado precisa interferir o mínimo possível na sociedade. Mas agora aceitar que essa medida é urgente, é no mínimo duvidar da nossa capacidade de raciocínio. 

Para nós isso é mais uma evidência de que o governo está aproveitando o momento conturbado para fazer passar sem oposição uma medida impopular. E se analisarmos á repercussão na imprensa e á falta de resposta dos grupos políticos de oposição, digamos que á tática do governo, pelo menos nesse primeiro momento foi exitosa.

No entanto como se trata de uma MP, para se transformar em lei precisará da digital dos deputados e deputadas estaduais. Tudo bem, sei que não é para comemorar. Sobretudo por que o parlamento tem estado fortemente aliado com as medidas do executivo. Mas pelo menos poderá haver tempo para um debate honesto com á população – e uma oportunidade dela se mobilizar contrariamente a transformação da medida provisória em lei. Óbvio, para tanto o parlamento tocantinense não pode aprovar essa MP á toque de caixa.

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins. 

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Crônicas da quarentena: A difícil tarefa de ficar em casa no verão tocantinense.

Abril chegou e trouxe com ele uma nova estação. Saimos do período quente e entramos no extremamente quente. Pois por essas bandas do norte não tem outra opção. Por aqui não há primavera e outono, mas apenas o inverno (periodo das chuvas) e o verão (periodo da seca). A partir de agora a chuva é um elemento cada vez mais raro e o sol é aquele de 50 graus na sombra. Mas para compensar os rios, lagos e córregos se transformam num refúgio ideal para quem quer se refrescar e relaxar.

Oficialmente o período de praia só inicia lá para o mês de junho quando a chuva some de vez. Em julho, devido às férias escolares, temos o auge da temporada. E em agosto, o mês mais crítico devido ao longo período sem chuvas, a temporada é encerrada. Mas para o povo que mora por essas bandas não tem isso de esperar o período oficial de praia. O negócio é fugir do calor como dá. E parece que nem a ameaça da COVID-19 irá mudar isso. Pelo menos é o que tenho notado pelo movimento de gente nos pontos de banho em Lajeado. E olha que abril não é nem tão quente assim como os meses que estão por vim. Mesmo assim as pessoas já não estão conseguindo ficar em casa. Imagine os próximos meses.

Entre morrer de calor em casa ou correr o risco de ser infectado pelo novo coronavírus. Muita gente tem optado pela segunda opção. Até por que como diz o presidente da República, o vírus não passa de uma gripezinha. O problema é quando essa gripezinha começar a fazer os estragos que está fazendo em outros países. Aí o discurso muda, mas será tarde de mais. Não adiantará rezar pois não haverá deus que nos acuda. Nos restará então contar nossos mortos como se tem feito em países como China, Itália,  Espanha, Inglaterra e Estados Unidos. 

Por enquanto tudo isso parece muito distante. Apesar de haver, segundo o G1 Tocantins, a confirmação de 16 casos no Tocantins – nos municípios de Palmas (11), Araguaína (4) e Dianópolis (1). Mas ninguém ainda morreu de COVID-19 no estado corroborando com a tese daqueles que vêem um certo exagero nas medidas governamentais. Daí a pressão para que aja uma  flexibilização das medidas de contenção do novo coronavírus. Pressão que surtiu efeito em vários municípios como Araguaína, Porto Nacional, Paraíso, Pedro Afonso e Miracema. A justificativa é de que o comércio não pode parar pois as pessoas precisão sobreviver.

E falando em sobrevivência a temporada de praia não é só um período para as pessoas fugirem do calor mas é também fonte de sobrevivência para muitas famílias. Desse modo não faltará lobby para que aja, por parte do governo, uma flexibilização nesse setor, se até lá essa situação não tiver sido superada. E se por acaso não houver essa flexibilização, na prática ocorrerá o que já está ocorrendo – as pessoas não respeitarão e o governo  (tanto em nível local, estadual e federal) fará vista grossa, isto é, fingirá que não está vendo. Tanto é assim que levantamentos (Revista Exame) apontam que entre os Estados brasileiros, o Tocantins está na última posição no índice de isolamento.

Se mau entramos em abril e já estamos assim imagine de agora em diante. A tendência é as pessoas irem abandonando o isolamento na medida que o calor vai aumentando e as águas dos rios vão baixando – os ventos gerais vão ganhando força e as queimadas farão seus estragos. É camarada, não será uma tarefa fácil convencer as pessoas a ficarem isoladas nas suas casas nesse clima cruel do Tocantins. No tempo das chuvas até que vai, mas quando entra o verão não há campanha que sensibilize o povo. Desse modo creio que o maior desafio que o governo (do Estado e dos municípios) terá de agora em diante para manter um isolamento eficaz, será a questão do clima.

Pelo que observei no primeiro final de semana do mês de abril será uma tarefa árdua manter esse isolamento de agora em diante. As pessoas começaram a se rebelar e os gestores municipais de olho nas eleições não fazem tanto esforço para conter a rebelião. Por outro lado, em cidades turísticas como Lajeado, quando se consegui convencer as pessoas a ficarem em suas casas, vem a turistada, sobretudo de Palmas (onde tem o maior foco de COVID-19 no Tocantins), e coloca toda a população local em risco. De modo que não tem muito para onde fugir. 

Por fim, o jeito é esperar que o verão tocantinense com suas temperaturas vulcânicas seja uma barreira mais eficaz contra a expansão do novo coronavírus. Pois a depender do isolamento da população, sobretudo no período de estiagem, pode começar a preparar o aumento da produção de caixão. 

Por Pedro Ferreira Nunes – Poeta, Escritor e Educador Popular. 

terça-feira, 31 de março de 2020

Literatura tocantinense: Pedro Tierra e o seu Porto submerso.

“Tocantins: veia aberta num brejal
que se derrama pelo cerrado vasto
e reconfigura a estampa da paisagem...”.
Pedro Tierra 

Lá pelos idos de 2009 ganhei um livro de poesia com poemas de um tal Pedro Tierra. Pelo nome pensei se tratar de um poeta espanhol ou de algum país latino-americano de língua espanhola. Mas qual foi a minha surpresa ao descobrir que aquele tal Pedro Tierra era do Tocantins – mais precisamente da cidade de Porto Nacional – “uma cidade com janelas olhando para o rio Tocantins”, escreveu em certa feita o poeta.

Nesse tempo eu morava em Goiânia e fiquei a me questionar por que nunca havia visto no Tocantins (sobretudo na escola) falarem de um poeta daquela envergadura. Hoje, novamente morando no Tocantins, percebo que Pedro Tierra tem tido algum reconhecimento – tendo recebido importantes homenagens como o título de Doutor Honores Causa da Universidade Federal do Tocantins  (UFT). Mas creio que esse reconhecimento ainda é bastante aquém do que ele merece por sua importante contribuição a cultura literária nacional.

Pedro Tierra é na verdade o pseudônimo de Hamilton Pereira da Silva (1948) – que escreveu  os poemas que comporiam o seu primeiro livro na prisão  (Poemas do Povo da Noite, 1977) durante a ditadura militar. Tierra fora preso por sua militância no movimento estudantil lutando contra a repressão do regime militar. Mas se o objetivo dos militares era silencia-lo o resultado foi outro – através da poesia, Tierra fez ecoar pelo mundo “o grito de liberdade preso na garganta” (Aos fuzilados da CSN, Garotos Podres) dos presos políticos nos porões da ditadura no Brasil – o seu primeiro livro foi publicado primeiro na Itália (1977) e depois na Espanha (1978). E no Brasil quando publicado em 1979 se tornou uma referência para os presos políticos e para os movimentos de luta pela redemocratização do país.

Os poemas do Pedro Tierra se assemelham a preces (talvez por influência da sua formação católica). O que contribuia para manter acesa a chama da esperança no coração daqueles que lutavam contra a ditadura militar: “Prossigo, ainda que a presença do inimigo, a vigiar meus sapatos molhados na rua sem trânsito, me devolva a impressão de ter regressado, aos primeiros dias de treva...”. (Campo de flores, 1974 – do livro Poema do Povo da Noite). Foi portanto na militância política, na luta contra a ditadura militar que Hamilton Pereira da Silva se tornou Pedro Tierra. E Pedro Tierra forjou a sua poesia – como o ferreiro forja o ferro transformando-o em instrumentos diversos. E dessa labuta vieram outras obras como “Água de rebelião” (1983), “Inventar o fogo” (1986) “A palavra contra o mundo” (2013) e “Porto submerso” (2005) que é a obra que enfocaremos aqui – e se trata daquele livro que disse lá no início – onde fui apresentado a poesia de um tal Pedro Tierra. 

Em “O Porto Submerso” (Pedro Tierra que sempre teve uma militância política ativa no campo da esquerda e acabou se radicando em Brasília – onde inclusive por duas ocasiões foi Secretário de Cultura) retorna a suas origens para falar da sua terra natal – á velha Porto Nacional – que já não é a mesma da sua infância. “Piranhas devoram o baú de lembranças/ nos quartos dos fundos dos casarões.../ Algumas paredes ruíram/ sobre os sonhos acalentados na infância:/ não resistiram talvez ao assédio da umidade/ a essa flor que próspera nos pântanos/ forçando os precários alicerces de tudo/ ao abandono de tantos anos...”. Diz o poeta no poema que dá título ao livro. 

Mas ao buscar no baú de lembranças a memória da sua infância ele não deixa de falar da nova Porto Nacional – onde o velho rio Tocantins, que antes via da janela de sua casa, já não é o mesmo – suas águas já não seguem livremente como antes da construção da Usina Hidrelétrica Luiz Eduardo Magalhães: “Ao primeiro olhar o rio assume as feições/ De lagoa. De útero. Misteriosa oficina de vida/ Melhor, um avesso de útero:/ vai devorando ilhas/ que se opõem à sua placenta corrosiva./ Dissolve areias e memórias... Tocantins: veia aberta num brejal/ que se derrama pelo cerrado vasto/ e reconfigura a estampa da paisagem... O rio teima em se manter-se rio corrente:/ uma veia de esmeralda líquida e retesa/ varando o ventre do lago,/ feito alma submersa/ e luminosa a lhe dar sentido/ Vencido, o rio se abranda em barros e silêncios...”. Diz o poeta no poema “Barragem”.

Do seu baú de lembranças da infância ele trás poemas como “Querosene” que é um belo retrato dos causos interioranos e do seu povo. “Nunca se soube/ se por fome/ sede/ ou pura danação./ Foi apanhado/ estendido sobre o ladrilho da taverna/ mamando querosene/ na torneira do tambor./ adquiriu desde então/ um tom esverdeado,/ guenzo/ e uns olhos iluminados/ como se tivesse tragado as nascentes da lua./ Os meninos da rua lhe atiravam fósforos/ para conferir se acendia,/ querosene. Eis aí um poema belo, simplesmente belo. Mas o que é o belo? Nos questiona Sócrates. 

Não desviemos o rumo da prosa, deixemos as filosofadas para depois. Voltemos á poesia – não que poesia e filosofia estejam em campos opostos como acreditam uns. E Pedro Tierra mostra isso de forma magistral em vários poemas do seu “Porto submerso”, entre eles “trama”, onde reflete sobre a vida: “E se o corpo é uma canoa/ de madeira amarga/ e terna,/ a alma é um rio agudo/ com dedos de água/ e fuga,/ a marca dos meus roteiros./ dedos sábios de rendeira/ tecem os fios incontáveis/ a trama do meu destino...”. Em “Os bilros” o poeta também filósofa sobre a vida: “Na dança dura do dia/ entre os dedos da rendeira/ Os bilros trançam nos fios/ a renda da vida inteira... Nessa trama dos aflitos,/ nessa dança dos contrários/ a renda tece a rendeira/ na ponta escura dos bilros...”. Já em “Os impossíveis” o poeta reflete sobre a poesia: “Poesia é assim:/ Os impossíveis./ é quando prevalece/ a vontade da palavra...”.

Pedro Tierra também nos faz viajar pelo cerrado com suas riquezas e seus encantos em poemas como “Buriti”: “Em Palma Verde de buriti,/ tranço um balaio de versos/ para tentar uma última vez.../ recolher os milagres das chuvas...”. No poema “Concerto para jacumã e remo”: “Mergulho o remo/ e remo sem rumo/ sem pauta/ sem porto algum/ que me recolha ao fim da madrugada./ jacumã é lugar de partida./ e de chegada...”. No poema “Mirindiba”: “...Entre raizes/ (Mirindiba fruta humilde/ nutrindo peixe celestes...)...”. E no poema “Paus d’arcos”: “Paus d’arcos./ Agosto./ cerrados./ o pau d’arco/ desata os laços/ do tempo que se despede,/ mas permanece contido/ na cortina que protege o tronco/ contra os açoites da seca...”.

E como não poderia ser diferente Pedro Tierra não deixa de denunciar através dos seus versos o avanço da destruição do cerrado pelo agronegócio: “...o trabalho dos homens organiza o cerrado./ Organiza desertos transgênicos de soja./ desertos verdes de soja./ desertos secos de soja,/ desertos.” Lamenta o poeta no poema “Carvoeiros”. E também no poema “Carvão” onde diz: “... meus olhos cansados/ miram a tarde que morre/ e registram ruínas de árvores/ que exigem o silêncio da alma/ como catedrais tombadas./ Ardem os ossos das árvores:/ o Verde derrotado,/ o fulgor da labareda,/ a palha, a cinza, antigas certezas/ pulverizadas,/ a potassa exposta à viração./ a busca feroz do carvão”. Mas o poeta não perde a esperança – sabe que o cerrado é resistência,  sabe que o cerrado é vida: “- O cerrado sabe seus atalhos.../ a promessa de vida que no ovo lateja,/ o trabalho de vida que no ovo lateja,/ o disparo de vida interrompida no ovo/ adia a vida que pulsa nos seus guardados:/ a vida sabe,/ a vida se esquiva para prosseguir...”.

Essa pequena amostra creio dar conta de sintetizar todos os poemas do livro apresentado, por tanto fiquemos por aqui. Não sem antes ressaltar que na minha opinião como leitor – se esse livro (O Porto submerso) não é o maior clássico da literatura tocantinense, está entre eles sem dúvida. De modo que nós tocantinenses não podemos deixar de reconhecer e prestar as devidas reverências a esse poeta e escritor – e a maior reverência que podemos fazer a um poeta e escritor é ler e discutir sua obra – e aqui não estou falando apenas do livro “O Porto submerso”.

Pedro Ferreira Nunes – É Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins. Também se arrisca a escrever poemas entre outras coisas.

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Referências 

Tierra, Pedro. O Porto submerso. Brasília: Edição do autor, 2005.

Tierra, Pedro. Quem sou eu. Disponível em: http://pedrotierracultura.blogspot.com/?m=1. Acesso em: 30 mar. 2020.

Revista Prosa Verso e Arte. Pedro Tierra – poemas. Disponível em: https://www.revistaprosaversoearte.com/pedro-tierra-poemas/. Acesso em: 30 mar. 2020.

quinta-feira, 26 de março de 2020

Byung Chul Han e Slavoj Zizek: Duas perspectivas para o mundo pós-pandemia de COVID-19.

Á Loyane Marques.

Ruas desertas, transporte público parado, comércio vazio, escolas fechadas – todo mundo entrincheirado em suas casas para combater o inimigo invisível. É, parafraseando uma canção do velho Ozzy  – estamos  “num trem maluco saindo dos trilhos”. Mas sair dos trilhos as vezes é bom, sobretudo quando esse trilho está nos levando para o precipício. Por outro lado essa saída dos trilhos pode ser apenas uma ilusão – acreditamos estar escapando do precipício quando na verdade rumamos mais aceleradamente para ele.

Para onde estamos indo com a crise imposta pela pandemia de COVID-19? Quem escapar da morte tem a fome e a miséria a sua espreita. Fala-se muito em solidariedade e cooperação para que o trem maluco que estamos não saía dos trilhos. Mas esses valores há muito tempo foram esquecidos dando lugar a competição de todos contra todos. E agora esperam que do dia para noite todos se tornem solidários e cooperativos? Santa hipocrisia, santa hipocrisia. O que não poderia ser diferente, não é verdade?! Afinal de contas a hipocrisia é um dos elementos que compõe a moral burguesa – essa classe de abutres que se alimenta da desgraça para continuar dominando – dominando até quando? Será que a crise atual nos dá possibilidade para destrona-lá juntamente com seu modo de produção nefasto? Ou continuaremos sob seu domínio com uma espoliação ainda maior?

O filósofo Sulcoreano (radicado na Alemanha) Byung Chul Han e o Esloveno Slavoj Zizek nos ajudam a refletir sobre essas questões, apontando diferentes perspectivas. Enquanto Zizek, com um tom otimista, enxerga uma possibilidade de ruptura, que nos levará a um outro modelo de sociedade. Byung Chul Han, num tom mais pessimista (alguns diriam, realista), dirá que após a pandemia o que teremos é um capitalismo mais pujante. Ambos concordam num fato – é preciso mudar, pois não podemos continuar submetidos a ordem hegemônica do capital. Como essa mudança ocorrerá, quem serão os autores dela e o modelo de sociedade que emergirá daí, não há acordo. No final o que temos é um belo debate entre dois pesos-pesados da filosofia na atualidade. 

Para Zizek essa crise pode ter o seu lado
positivo a medida que ela nos proporciona “a pensar uma sociedade alternativa, uma sociedade para além dos Estados-nação, uma sociedade que se atualiza nas formas de solidariedade e cooperação global”. Ele defende “que não podemos seguir pelo mesmo caminho que viemos até agora”, de modo que se faz necessário “uma mudança radical”. Zizek alerta, “não estamos lidando apenas com ameaças virais – outras catástrofes já estão surgindo no horizonte ou mesmo acontecendo: secas, ondas de calor, tempestades fora de controle, etc. Para todos esses casos, a resposta não é o pânico, mas o trabalho árduo e urgente para estabelecer algum tipo de coordenação global eficiente”.

O filósofo esloveno lamenta que seja necessário uma catástrofe para que repensemos as características básica da sociedade que vivemos. Que só a partir daí tenha surgido uma solidariedade global em torno de ações do cotidiano para evitar o avanço do vírus  (que é algo real e não virtual). Uma solidariedade que é necessário se fortalecer pois é preciso aceitar  que “a ameaça veio para ficar. E “Mesmo se a onda passar, ela reaparecerá em novas formas – quiçá bem mais perigosas”.

Zizek chama atenção para reação dos mercados como uma reação para manter o modelo econômico atual que busca um crescimento desenfreado acima de tudo. De acordo com ele isso reafirma a necessidade de mudança para “alguma forma de organização mundial que consiga  controlar e regular a economia”.  Por fim, Zizek propõe um comunismo reinventado “com base na confiança nas pessoas e nas ciências”.

Byung Chul Han por sua vez não é tão otimista assim. Para ele “após a pandemia, o capitalismo continuará com ainda mais pujança. E os turistas continuarão pisoteando o planeta”. Ao invés de solidariedade e cooperação poderemos ter uma sociedade mais policiada digitalmente tal como já ocorre hoje nos países asiáticos, em especial a China. Aliás, ele ressalta que ao contrário do que pensa Zizek, o vírus não destruirá o capitalismo e nem mesmo o regime político chinês – “a China poderá agora vender o seu Estado policial digital como um modelo de sucesso contra a pandemia”. 

O filósofo Sulcoreano questiona a tão propalada cooperação e solidariedade no contexto atual. A esse respeito ele diz: - “a solidariedade que consiste em guardar distâncias mútuas não é uma solidariedade que permite sonhar com uma sociedade diferente, mais pacífica, mais justa”. Por isso ele enfatiza que “nenhum vírus é capaz de fazer a revolução. O vírus nos isola e individualiza. Não gera nenhum sentimento coletivo forte” e “de alguma maneira, cada um se preocupa somente por sua própria sobrevivência”. 

Para Byung Chul Han o capitalismo destrutivo precisa ser freado, mas não é o vírus que fará isso, e sim a razão. É a razão que pode colocar limite a um mercado financeiro que não conhece limite tanto é assim que o pânico atual não é por medo do vírus mas “o medo a si mesmo”. Para o filósofo Sulcoreano “o crash poderia ter ocorrido também sem o vírus” e  “talvez o vírus seja somente o prelúdio de um crash muito maior”.

 Nesse contexto Byung Chul Han é enfático ao defender que não “podemos deixar a revolução nas mãos do vírus. Precisamos acreditar que após o vírus virá uma revolução humana. Somos nós pessoas dotadas de razão, que precisamos repensar e restringir radicalmente o capitalismo destrutivo, e nossa ilimitada e destrutiva mobilidade, para nos salvar, salvar o clima e nosso belo planeta”.

Bom, eis aí de forma breve alguns pontos da argumentação dos dois filósofos acerca das perspetivas para o mundo pós-pandemia de COVID-19. Para uma compreensão ainda maior indico a leitura completa dois textos utilizados como referência para escrever essas linhas. O texto do Slavoj Zizek você encontra no Blog da Boitempo (link:https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/12/zizek-bem-vindo-ao-deserto-do-viral-coronavirus-e-a-reinvencso-do-comunismo/) e o Texto do Byung Chul Han no site do El país (link: https://Brasil.legais.com/ideas/2020-03-22/o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-segundo-o-filosofo-byung-chul-hab.html). Boa leitura e boas reflexões.

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins.