terça-feira, 15 de outubro de 2024

Conto: A noite mais longa

Ele nunca imaginou que um dia colocaria os pés num lugar daqueles. Ainda mais agora que já ultrapassara 60 primaveras. Sempre trabalhou duramente para sustentar a família e buscou educar os filhos para que seguissem o seu exemplo. Das tantas noites difíceis que tivera, aquela era a pior. E quanto pior, mais longa, tornando o sofrimento ainda maior.

Algo lhe dizia que não sairia vivo dali. As pessoas que passavam por ele naquele corredor olhavam-o como se estivesse vendo um morto. Ele sabia que isso não ia demorar acontecer. Os anjos da morte nos seus cavalos negros a qualquer momento se materializariam naquele lugar, fazendo ecoar o som feroz de suas armas. Mais tardavam, fazendo com que os minutos se transformassem em horas. – o que fiz para merecer esse final? A tortura psicológica daquele momento era pior que tudo.

Ele não temia a morte. Sempre fora um homem temente a Deus. Este certamente estaria lhe reservando um bom lugar. Lamentava deixar sua esposa, filhos e netos. Mas se o seu destino era pagar com a vida um erro de um filho. Nada podia fazer. Se não orar e pedir a proteção de Deus para aqueles que ficavam. Orava inclusive pela alma dos seus algozes. – Pai, perdoai-vós, eles não sabem o que fazem.

Por ele não estaria mais naquele lugar. Mais fora orientado a aguardar o amanhecer para que pudesse voltar para casa em segurança. Para ele estava apenas adiando o inevitável. Já mais voltaria a ver a casa que construira com tanto sacrifício. Desde cedo trabalhando duro e o máximo que conseguira fora aquela casinha e uma aposentadoria de miséria. Mas não se lamentava, pelo contrário, agradecia a Deus pelo que tinha – era pouco, mas havia conquistado com trabalho.

Não entendia por que o seu amado filho, mesmo com tanto conselho, decidira pelo caminho da criminalidade. Foram noites e noites de joelhos dobrados, juntamente com sua esposa, orando para Deus, pedindo para que aquele menino tomasse juízo. Mas nada de mudança. Agora estava morto. Tão jovem, tão jovem. Tudo bem que não era flor que se cheirasse. Mas será que merecia aquele destino? Questionava-se.

Se o filho, mesmo com o crime que cometera, não merecia a morte sumária. Ele muito menos. Se tinha mentido para Policia num primeiro momento não fora para proteger o filho criminoso, mas por receio do que esse poderia fazer a si e a sua mulher. Agora que havia esclarecido no seu depoimento o por que dá mentira, sua consciência estava mais tranquila do que nunca. Morreria como culpado de cumplicidade, mas seria absolvido pela justiça divina.

Que noite longa. Parecia nunca ter fim. Ele tentou tirar um cochilo. Mas os pensamentos não lhe dava trégua. Pensava na sua esposa, nos filhos, na casa, nos irmãos da igreja, na plantação de mandioca. Mesmo com a idade avançada e sendo aposentado, não fugia do trabalho. Qualquer pedacinho de terra ele aproveitava para plantar uma mandioquinha, um feijão, um milho, uma abóbora, para ajudar no orçamento da família. 

Ele tentava esquecer dos acontecimentos que o fizeram chegar ali – do confronto que levou a morte do seu filho. Tentava inclusive esquecer de onde estava. Imaginava-se no lugar da sua infância em meio a natureza. Como era bom a vida no campo. Não havia a violência que existe nas cidades. A relação de respeito entre pais e filhos eram outra. Mas passos rapidos nos corredores o fizeram lembrar de onde estava.

Quando os anjos da morte chegaram, o local escureceu. Ele não esboçou reação. Estava sereno. Eram muitos, muitos foram os disparos. Seu corpo ficou estendido no corredor. E os anjos partiram deixando um rastro de sangue, na noite mais longa naquela cidade interiorana. 

Por Pedro Ferreira Nunes – Um rapaz latino americano, que gosta de ler, escrever, correr e ouvir Rock in roll. 

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Uma crônica dos últimos momentos das eleições municipais de 2024 em Lajeado

Acompanhando de longe a campanha eleitoral em Lajeado, sobretudo pelas redes sociais, me parecia uma eleição bastante disputada onde não se percebia na reta final um favorito claro. Assim quando cheguei às vésperas da votação tentei sentir o espírito da cidade.

O meu primeiro contato foi com colegas que votariam na Márcia (PSDB). E o que senti nesse bate papo foi uma profunda confiança na eleição da candidata tucana. Eles me disseram que o povão estava todo com a Márcia, ainda que muitos não falassem publicamente. O contato com aqueles que votavam no Tércio foi um pouco diferente. Também acreditavam na vitória, mas pontuando que seria apertado.

Essa visão mudou um pouco depois da carreata promovida pelo candidato republicano que marcou o encerramento da campanha. Eu estive presente participando do ato e fiquei impressionado. Me pareceu ter sido uma estratégia bastante acertada que poderia influenciar os eleitores indecisos. E o sentimento dos que ali estavam é que a vitória era praticamente certa. No entanto, a demonstração de força não impactou na decisão dos eleitores lajeadenses. Tanto que houve vários comentários dizendo que muitos dos que estavam na carreata não eram da cidade. Ou seja, não havia indecisão em relação ao voto por parte do eleitorado.

No domingo a cidade amanheceu tranquila, fui até o meu local de votação entre 11h e 12h, votei e retornei para casa. No período da tarde me organizei para retornar para Palmas. E enquanto estava na margem da rodovia esperando a Van, um colega que fazia parte da campanha do Tércio deu a notícia.

- Perdemos a eleição.

A minha reação foi de surpresa. Quis saber mais detalhes mas ele não tinha. Como ele estava indo para Palmas me ofereceu carona - o que foi providencial pois eu já estava há um bom tempo tentando pegar uma van mas todas que passavam estavam lotadas. Durante a viagem fomos conversando e analisando tanto o resultado como o novo cenário político na cidade. E um ponto bastante enfatizado foi do capital político da Márcia. Ainda não sabíamos de quanto tinha sido a vantagem de um para o outro. E nem quais e quantos vereadores eleitos de cada grupo. Só quando chegamos em Palmas e tivemos acesso a internet é que soubemos.

Para mim ficou evidente que a cidade de Lajeado se moveu num sentido de mudança. E quem melhor incorporou esse sentimento na campanha eleitoral foi a candidata tucana. A renovação de mais de 50% das cadeiras do legislativo lajeadense também corroboram com essa tese. E o mais interessante desse movimento foi ver a eleição de gente jovem com profundas raízes na cidade. Como é o caso do Madruga (Republicanos) e do Márcio Brito (PL). Ouso apostar que essa seja a legislatura mais jovem da história do Lajeado.

Em relação à representação feminina não houve mudança referente à quantidade. Mas o nome da ocupante desta cadeira (Eva Enfermeira/PSDB) é certamente muito significativo tanto pela sua história com o território como pelo seu trabalho como servidora pública da saúde.

Confesso que não me empolguei com a candidatura da Márcia. Para mim será como uma espécie de rainha da Inglaterra. Ou seja, apenas figurativa. Quem realmente vai comandar a administração não será ela. Talvez eu esteja subestimando o seu papel como líder. E espero estar enganado quanto a isso para o bem da cidade.

No geral a gente observou um movimento de mudança. E não podemos ficar tristes diante disso. Sobretudo em relação a eleição para câmara de vereadores com a ascensão de novos parlamentares e a queda de figuras tradicionais da política lajeadense. Óbvio que teremos mudança. Márcia não elegeu a maior bancada na Câmara de Vereadores e precisará ceder espaço para os parlamentares eleitos no grupo do Tércio para poder ter projetos aprovados. Os vereadores por sua vez, mesmo os novatos, nem todos ficaram na oposição.

Enfim, foi assim que vi e acompanhei os momentos finais das eleições em Lajeado. Já não estava na cidade durante a comemoração. Mas pelas postagens nas redes sociais pude perceber a emoção e felicidade do grupo vitorioso. Também pude imaginar a bad trip de quem investiu tanto e viu seus planos frustrados. No interior se vive muito intensamente o período eleitoral de escolha dos representantes locais. E isso deixa suas marcas. No final das contas a única pergunta que importa é: qual a cidade que teremos nos próximos quatro anos?

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

sábado, 5 de outubro de 2024

Leituras: A mão e a luva, Machado de Assis

Imagine uma moça de uma família burguesa, no século XIX, sendo cortejada por três pretendentes totalmente diferentes entre si. É de imaginar toda a pressão social que paira sobre a sua cabeça. Sobretudo por que essa escolha deverá ser referendada pela sua família. É em torno desse drama que se desenvolve “a mão e a luva”, romance machadiano publicado em 1874.

Guiomar é o nome da jovem cortejada. De origem popular, acabou sendo adotada por uma baronesa em substituição a uma filha falecida. De modo que isso lhe deu acesso a uma educação superior bem como uma posição social privilegiada. Não estamos diante de uma personagem frágil ou acomodada. Mas de alguém consciente de si e de onde quer chegar – uma personagem que não se deixa iludir por uma declaração de amor qualquer. De modo que no fundo nunca houve um dilema profundo em relação a sua escolha. Se num determinado momento ela tende a satisfazer a vontade da madrinha é apenas uma estratégia para alcançar o que queria.

Mas Machado de Assis, brilhante como é, consegue manter um suspense em aberto. Segurando-nos até a última linha para saber qual será a luva que encaixará perfeitamente na mão da jovem. Isso se deve pelo fato dele nos fazer sentir simpatia por um dos personagens – que é apresentado como se fosse um protagonista ao lado da moça. Levando nos acreditar que essa será sua escolha, sobretudo pensando com o coração. Mas no final a escolha acaba pairando sobre o menos improvável. Menos improvável para nós românticos. 

Consegui identificar em a mão e a luva algumas semelhanças com outra obra mais célebre do autor (Dom Casmurro) que foi publicada alguns anos depois. Por exemplo, o personagem Estêvão. A sua personalidade me pareceu bastante a do Bentinho. Inclusive o seu final. Trata-se também de um bacharel em direito que gosta de literatura e filosofia mas que mostra uma insegurança e fraqueza enorme. Guiomar por sua vez lembra Capitu – inteligente, articuladora e audaz.

A gente acaba torcendo para que eles fiquem juntos. Mas no fundo percebemos que são incompatíveis. De modo que a escolha de Guiomar é no final das contas uma escolha racional. Ela opta por alguém que  tem um projeto de vida – que sabe o que quer e onde quer chegar. Ou seja, ela abre mão do romântico e apaixonado (Estêvão) por um astuto e ambicioso (Luiz Alves). O terceiro (Jorge) só figurou como uma alterntiva por ser sobrinho da Baronesa e contar com sua simpatia e bênção.

A priori pode parecer que a escolha de Guiomar seguiu o que determina a moral burguesa – onde as relações afetivas são no fundo por interesses comerciais. Ela viu em Luiz Alves, que se tornara deputado, alguém que poderia alça-lá a uma condição de maior destaque na sociedade. Os outros dois pretendentes não eram pobres. Mas não tinham essa característica que ela tanto apreciava – a ambição. 

É importante não ver esse termo de forma pejorativa como se estabeleceu em grande parte do senso comum. A ambição aqui é no sentido de não acomodação. De querer algo e ir atrás. Fazer acontecer. Foi a partir daí que surgiu o amor deles. Dá percepção de que um completava o outro. Não a partir de uma idealização mas de coisas palpáveis. Isso me lembrou Nietzsche e o seu amor fati.

“Minha fórmula para o que há de grande no individuo é amor fati: nada desejar além daquilo que é, nem diante de si, nem atrás de si, nem nos séculos dos séculos. Não se contentar em suportar o inelutável, e ainda menos dissimulá-lo, mas amá-lo”.

Enfim, se “a mão e a luva” não é um dos romances mais célebre do Machado de Assis, não é por falta de qualidade. Trata-se de uma obra agradável de ler e que mostra o gênio literário dessa figura que é sem dúvida um dos maiores da literatura mundial. A obra trás alguns temas que é recorrente na literatura Machadiana como a reflexão sobre a vida, o amor e as relações sociais. E ao final da leitura certamente não saímos os mesmos.

Pedro Ferreira Nunes – Professor da Rede Pública Estadual da Educação do Tocantins. Graduado em Filosofia. Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. E Mestre em Filosofia. 

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Cotidiano

Feira do Aureny I
Aos poucos vou me tornando uma presença conhecida pelas ruas dos aurenys. Seja indo de casa para o trabalho e retornando do trabalho para casa. Nas corridas vespertinas, no comércio local (em especial na distribuidora) e na feira aos domingos.

- Como são as coisas. Quando te vi pela primeira vez achava que se tratava de um hippie. Não imaginava que você fosse um professor.

Comentou comigo um cara que monta uma banquinha de jogos em frente a uma lotérica. De cumprimento em cumprimento fomos nos aproximando e hoje ele é um dos poucos com quem troco algumas palavras. Mas não sei sequer o nome dele. Aliás, preciso aprender. Pois ele sempre me chama pelo nome: - Professor Pedro. Não é certo da minha parte não retribuir. Dificuldade de memorizar não é pois sei o nome de praticamente os quase trezentos alunos para quem dou aula.

- Você estava sumido!

Comentou outro cara quando estava indo para o trabalho após o retorno das férias julinas. Eu não o conhecia. Imaginei que o comentário expressava o fato dele estar habituado em me ver passar por ali. E deu falta de mim durante o mês de julho.

Sou um cara bastante previsível e rotineiro. Costumo sempre sair de casa no mesmo horário e seguir pelo mesmo caminho. De modo que as pessoas que habitam ou circulam por ali acabam se acostumando com a minha presença. Alguns falam comigo. Outros apenas observam. Devem ficar especulando quem sou eu. De onde venho. O que faço. Aqueles que descobrem dizem nunca ter imaginado que eu fosse um professor e dou aula de filosofia no tradicional Santa Rita de Cássia.

Não faço muita questão que saibam, no fundo não quero criar laços. Lembro que uma vez resolvi ir assistir um jogo de futebol numa distribuidora perto de casa. Pedi uma cerveja e sentei sozinho numa mesa. Num determinado momento um senhor se aproximou puxando conversa querendo saber de onde me conhecia. A minha educação não permitiu que eu o repelisse. E assim busquei aplacar sua curiosidade acerca da minha figura. Mas em relação ao meu trabalho disse apenas que era na escola. Não entrando em detalhes sobre a minha ocupação. Não fora a primeira vez que omitira essa informação.

A minha vida social deixo apenas para o trabalho. Em casa quero descansar. Ficar só comigo mesmo. Interação só por meio virtual. Por isso evito, inclusive, de falar com meus vizinhos para não criar intimidade ao ponto de quererem tomar uma cerveja comigo e conversar. A convivência com os estudantes e colegas de trabalho no dia a dia já consome por demais a minha bateria social. Tanto que quando chega o final de semana não saio pra canto algum. Às vezes até planejo, mas acabo preferindo ficar em casa. Raramente, só muito raramente esse fenômeno acontece.

Me sinto bem por aqui. Assim como os moradores dos aurenys já se habituaram com a minha presença, eu também já me habituei com esse território. Já fico pensando comigo caso seja necessário uma mudança. Esta certamente virá. Pois não pretendo envelhecer aqui. Mas não por enquanto. A priori não escolhi estar aqui. Mas já que estou, vou viver. Aproveitar essa experiência para aprender e crescer.

Se não fosse essa minha tendência de se fechar numa rotina e buscar conservá-la, sei que conheceria pessoas incríveis e vivenciaria mais experiências significativas. Pois o fato é que sempre que quebro a rotina coisas interessantes acontecem. Sei que preciso fazer isso mais vezes. Mas não é fácil para mim, não é fácil.

“A gente pode dar uma volta no quarteirão
Nessas noites que a tv não satisfaz
E a cama tá vazia
Nessas noites sempre pinta melancolia
Pros babacas sozinhos como nós
E logo eu que sempre vivi
Com cabeça cheia de sonhos
Afastando qualquer gesto de carinho”.
Saco de Ratos


Pedro Ferreira Nunes - é apenas um rapaz latino-americano que gosta de ler, escrever, correr e ouvir rock in roll.


quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Filosofia, Educação e Direitos Humanos

No contexto das aulas remotas durante a pandemia do SARS-CoV-2 (COVID-19), depois de fazer vários cursos relacionados a área da educação, decidi fazer uma pós-graduação online. Alternativas eram muitas, valores bastantes acessíveis. Me restava escolher algo relacionado a minha área de formação e atuação, numa instituição reconhecida pelo Ministério da Educação (MEC). Foi então que cheguei à especialização em Filosofia e direitos humanos da Universidade Venda Nova do Imigrante (Unifaveni).

Eu tinha consciência que a qualidade dessas pós-graduações deixam bastante a desejar. E pude perceber isso na prática. De modo que durante o curso busquei não me ater apenas as apostilas e videoaulas disponibilizadas pela instituição. Com isso não tive muita dificuldade na realização das tarefas e avaliações. E no final consegui produzir um artigo que muito me orgulha - não por ter obtido a nota máxima sem o auxílio de nenhum orientador, mas sobretudo por ter me direcionado ao Mestrado em Filosofia, como também por ter deixado uma contribuição importante, pelo menos na minha avaliação, para discussão da temática.

Trata-se de um trabalho teórico. Mas, que surgiu de um problema que me incomoda no cotidiano - o discurso contrário aos direitos humanos. Discurso esse reproduzido entre os muros das escolas. E que se evidencia em relações autoritárias. Tentando responder o problema, me pareceu uma boa estratégia utilizar a arte, mais especificamente o cinema, para mostrar essa realidade (corroborando com a tese de que a arte imita a vida, em especial o cinema). O título do artigo foi justamente inspirado num filme (Entre os muros da escola) e dos filósofos nos quais fundamentaria a minha argumentação (Aristóteles, Espinosa e Vladimir Safatle).

O nosso ponto de partida seria a compreensão do que são os afetos e a sua relação com o comportamento humano. O ponto seguinte seria mostrar como isso se dá no cotidiano a partir de nossas ações - ações que nem sempre condizem com o que estabelece os direitos humanos. Depois buscamos entender o que são esses tais direitos humanos que tanto se fala, mas que poucos sabem de fato o que são. Para finalizar mostramos a relação intrínseca entre ética e direitos humanos. Enfatizando que a promoção desses direitos passa necessariamente por uma formação ética, que tanto no contexto clássico, passando pela modernidade, ou na contemporaneidade salienta a necessidade de agirmos de forma racional diante dos afetos que circulam na sociedade.

Quem navega por esse blog já deve ter visto alguns trechos que disponibilizei deste artigo. De modo que não se trata de algo totalmente inédito. No entanto, agora segue o texto na íntegra (que pode ser baixado pelo link: https://drive.google.com/file/d/1SlfqZDWmMQbsWoTUmBhgOcQjkm_WxwCy/view?usp=sharing). Não há nenhuma modificação em relação à escrita que foi submetida à avaliação como requisito para conclusão da especialização. Apesar de já terem passado três anos desde que escrevi esse artigo, vejo que ele está envelhecendo bem. Tanto pelo problema que persiste - e que não vislumbramos a sua superação a curto ou médio prazo. Como também por termos nos apoiado em clássicos. No entanto dei uma modificada no formato, dando uma cara mais de revista - inserindo algumas imagens, não só dos filmes utilizados na análise, como outras que acredito que podem contribuir para quem queira trabalhar a temática em sala de aula (e fora dela) a partir dessas obras.

Recentemente durante uma formação fiquei observando uma discussão acerca do comportamento dos estudantes de uma escola cívico-militar. Durante a discussão um colega pontuava a diferença do comportamento desses estudantes na presença dos militares e na sala de aula apenas com os professores. Enquanto num espaço demonstram respeito às normas, no outro a postura é diferente. Não quis polemizar, mas pensei comigo. Ora, de onde vem esse comportamento se não dá sociedade que vivemos - sociedade esta onde a aparência importa mais do que a essência - o ter mais do que o ser. Como cobrar desses jovens uma postura diferente daquilo que eles veem em casa e nos espaços que frequentam?

Trago esse exemplo para mostrar mais ainda a importância dessa temática. Para a necessidade de olharmos para aquilo menos evidente - as violações que não deixam marcas visíveis. Não deixam marcas visíveis mas estão aí e todos nós de certa forma contribuímos para sua normalização.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor de Filosofia na Rede Pública de Ensino do Tocantins. Possui Graduação em Filosofia (UFT). Especialização em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestrado em Filosofia (UFT).

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Breve comentário sobre assédio sexual

Mesmo sendo criado numa cultura machista onde aprendemos desde pequeno que a mulher é um objeto ao nosso dispor -  de modo que assediar sexualmente uma mulher é visto como um ato de virilidade. A mim sempre pareceu algo abominável. Em grande medida, tal postura surgiu a partir do rechaço ao que eu via na comunidade em que estava inserido. E ao longo do tempo essa postura foi se solidificando à medida que fui tendo uma formação ético-filosófica mais profunda.

Essa não é, no entanto, a postura que prevalece na nossa sociedade. O que podemos inferir a partir de dados como da pesquisa da consultoria deloitte, divulgada em 2024, que aponta que 40% das mulheres brasileiras já sofreram assédio no ambiente de trabalho. Dos casos apontados pela pesquisa, 60% não reportaram o caso ocorrido. O que se deve em grande medida, tanto pelo trauma como pelo medo. Pois não raramente a vítima, nesses casos, é transformada em culpada pelo ocorrido.

Lembro que quando estudante do curso de graduação em Filosofia na Universidade Federal do Tocantins (UFT), duas colegas me procuraram em momentos distintos para falar sobre episódios envolvendo professores da instituição. Enquanto membro do Centro Acadêmico do curso me coloquei à disposição para levar o caso ao colegiado de Filosofia. No entanto, elas pediram que apenas fizéssemos  uma ação de conscientização.

Isso mostra que o assédio sexual às mulheres está em todos os lugares. E a sua superação passa necessariamente por uma mudança de paradigma em relação à cultura machista dominante. No entanto, vislumbrar tal mudança nos marcos da sociedade atual nos parece algo distante.

É inegável que houve avanços nas últimas décadas em relação ao reconhecimento dos direitos das mulheres. No entanto, não basta reconhecer, é preciso garantir.  Com isso apontamos um aspecto importante que é preciso ressaltar - a diferença entre reconhecer e garantir. Por exemplo, em relação ao assédio sexual,  que é considerado um crime previsto no código penal brasileiro, no seu artigo 216-A.

Esse código define o assédio sexual como o crime de: “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”.

A lei não tipifica gênero, mas é evidente quem são a maioria das vítimas. Em relação a pena prevista é de um a dois anos. Porém para que isso ocorra é preciso denúncia. Mas como mostramos no início, a maioria das vítimas não se sentem seguras em levar o caso adiante. É compreensível, sobretudo porque estamos numa sociedade que ao invés de acolher as vítimas, julga-as.

São raros os casos que chegam ao conhecimento do grande público. Geralmente, aqueles que envolvem alguma autoridade ou celebridade. Esses casos são importantes porque jogam luz ao problema. A questão, porém, é que ao serem abordados de maneira espetaculosa pelos meios de comunicação de massa não apontam para sua superação.

Isso evidencia o distanciamento entre reconhecer e garantir. Não basta ter uma legislação reconhecendo um determinado direito, se isso não reverberar no cotidiano. Ou seja, na vida das pessoas, garantindo-lhes uma vida digna.

Esse é um ponto que vale para os direitos humanos em geral. Há toda uma legislação, a começar pela constituição federal (1988) - que estabelece o respeito à dignidade humana como um dos princípios da nação, que reconhece esses direitos como sendo responsabilidade do Estado e da sociedade em geral a sua efetivação. Mas que na prática isso não acontece. Aliás, não raramente o próprio Estado, que deveria ser o seu garantidor, é o seu violador.

Desse modo ressaltamos que a existência de uma legislação que reconhece direitos a determinados grupos marginalizados não significa a sua efetividade. Sobretudo nos marcos de uma sociedade onde a violência é um dos seus pilares de sustentação. Não queremos dizer com isso que a legislação não é importante, que esse reconhecimento não seja um avanço. Mas não podemos parar por aí.

Voltando a questão do assédio sexual, para finalizar, nos atentemos para o que diz Silvia Federici sobre a superação da violência constante na vida das mulheres:  “É necessário entender de onde vem a violência, quais são suas raízes e quais são os processos sociais, políticos e econômicos que a sustentam para entender que mudança social é necessária.”

Essa mudança deve começar por nós mesmos. Pois de nada adianta a gente concordar com o discurso contra a cultura machista dominante, se nas relações que estabeleço no meu cotidiano reproduzo essa cultura.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor de Filosofia na Rede Pública de Ensino do Tocantins. Possui Graduação em Filosofia (UFT). com Especialização em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestrado em Filosofia (UFT).

domingo, 15 de setembro de 2024

Poema: Pedreira



Para o Professor Flávio 

Pedreira, ei de ti cantar
recordando os velhos tempos.
Refúgio de dias nublados 
inesquecíveis momentos. 

Depois do fim de um relacionamento, 
de uma crise existencial. 
Respirar um ar diferente 
era fundamental. 

Daí não pensei duas vezes
quando um amigo me convidou.
Parti para Comunidade Pedreira 
um lugar acolhedor. 

Pedreira, ei de ti cantar
recordando os velhos tempos.
Refúgio de dias nublados 
inesquecíveis momentos. 

Lembro quando a tarde
saíamos para caminhar.
Encontrávamos uma morena
varrendo o terreiro do bar.

A noite seguiamos 
para a escola JK.
Depois dávamos uma esticada
até o orelhão do lugar. 

Pedreira, ei de ti cantar
recordando os velhos tempos.
Refúgio de dias nublados 
inesquecíveis momentos. 

Educação era nossa obsessão 
ficávamos a debater.
Por que não se avança?
o que era preciso fazer?

E assim os dias passavam
eu até me esquecia.
Da morena tatuada 
que roubara minha alegria. 

Pedreira, ei de ti cantar
recordando os velhos tempos.
Refúgio de dias nublados 
inesquecíveis momentos. 

Agora depois de tanto tempo 
quando passo nesse lugar.
Me recordo daqueles dias,
que ia me refugiar. 

Pedreira, querida Pedreira 
quase 20 anos se passou.
Você já não é a mesma 
o mesmo eu não sou.

Alguma coisa ficou
lembranças daqueles dias.
Que você me acolheu
e devolveste minha alegria. 

Pedreira, ei de ti cantar
recordando os velhos tempos.
Refúgio de dias nublados 
inesquecíveis momentos. 

Pedro Ferreira Nunes. Comunidade Pedreira. Lajeado -TO. 23 de Outubro de 2022.