Essa não é, no entanto, a postura que prevalece na nossa sociedade. O que podemos inferir a partir de dados como da pesquisa da consultoria deloitte, divulgada em 2024, que aponta que 40% das mulheres brasileiras já sofreram assédio no ambiente de trabalho. Dos casos apontados pela pesquisa, 60% não reportaram o caso ocorrido. O que se deve em grande medida, tanto pelo trauma como pelo medo. Pois não raramente a vítima, nesses casos, é transformada em culpada pelo ocorrido.
Lembro que quando estudante do curso de graduação em Filosofia na Universidade Federal do Tocantins (UFT), duas colegas me procuraram em momentos distintos para falar sobre episódios envolvendo professores da instituição. Enquanto membro do Centro Acadêmico do curso me coloquei à disposição para levar o caso ao colegiado de Filosofia. No entanto, elas pediram que apenas fizéssemos uma ação de conscientização.
Isso mostra que o assédio sexual às mulheres está em todos os lugares. E a sua superação passa necessariamente por uma mudança de paradigma em relação à cultura machista dominante. No entanto, vislumbrar tal mudança nos marcos da sociedade atual nos parece algo distante.
É inegável que houve avanços nas últimas décadas em relação ao reconhecimento dos direitos das mulheres. No entanto, não basta reconhecer, é preciso garantir. Com isso apontamos um aspecto importante que é preciso ressaltar - a diferença entre reconhecer e garantir. Por exemplo, em relação ao assédio sexual, que é considerado um crime previsto no código penal brasileiro, no seu artigo 216-A.
Esse código define o assédio sexual como o crime de: “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”.
A lei não tipifica gênero, mas é evidente quem são a maioria das vítimas. Em relação a pena prevista é de um a dois anos. Porém para que isso ocorra é preciso denúncia. Mas como mostramos no início, a maioria das vítimas não se sentem seguras em levar o caso adiante. É compreensível, sobretudo porque estamos numa sociedade que ao invés de acolher as vítimas, julga-as.
São raros os casos que chegam ao conhecimento do grande público. Geralmente, aqueles que envolvem alguma autoridade ou celebridade. Esses casos são importantes porque jogam luz ao problema. A questão, porém, é que ao serem abordados de maneira espetaculosa pelos meios de comunicação de massa não apontam para sua superação.
Isso evidencia o distanciamento entre reconhecer e garantir. Não basta ter uma legislação reconhecendo um determinado direito, se isso não reverberar no cotidiano. Ou seja, na vida das pessoas, garantindo-lhes uma vida digna.
Esse é um ponto que vale para os direitos humanos em geral. Há toda uma legislação, a começar pela constituição federal (1988) - que estabelece o respeito à dignidade humana como um dos princípios da nação, que reconhece esses direitos como sendo responsabilidade do Estado e da sociedade em geral a sua efetivação. Mas que na prática isso não acontece. Aliás, não raramente o próprio Estado, que deveria ser o seu garantidor, é o seu violador.
Desse modo ressaltamos que a existência de uma legislação que reconhece direitos a determinados grupos marginalizados não significa a sua efetividade. Sobretudo nos marcos de uma sociedade onde a violência é um dos seus pilares de sustentação. Não queremos dizer com isso que a legislação não é importante, que esse reconhecimento não seja um avanço. Mas não podemos parar por aí.
Voltando a questão do assédio sexual, para finalizar, nos atentemos para o que diz Silvia Federici sobre a superação da violência constante na vida das mulheres: “É necessário entender de onde vem a violência, quais são suas raízes e quais são os processos sociais, políticos e econômicos que a sustentam para entender que mudança social é necessária.”
Essa mudança deve começar por nós mesmos. Pois de nada adianta a gente concordar com o discurso contra a cultura machista dominante, se nas relações que estabeleço no meu cotidiano reproduzo essa cultura.
Pedro Ferreira Nunes - É Professor de Filosofia na Rede Pública de Ensino do Tocantins. Possui Graduação em Filosofia (UFT). com Especialização em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestrado em Filosofia (UFT).
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