quarta-feira, 15 de abril de 2020

Sobre a diferença entre gostar e confiar

                                                                                                      Á minha sobrinha, Beatriz Ferreira.

Um certo filho sempre reclama da sua mãe por, segundo ele, gostar mais do seu irmão do que dele. A este é permitido uma série de coisas que a ele é negado. Além do fato de que sempre que a mãe vai tomar alguma decisão é o seu irmão que ela consulta. Quando ela vai fazer uma viagem é ao seu irmão  que ela deixa a guarda da casa. Quando ela precisa de algo é ao seu irmão que ela recorre. Tal atitude seria mesmo prova de que a mãe gosta mais de um filho do que de outro? 

O exemplo acima me fez refletir sobre essa e outras questões como: por que alguns pais tratam os filhos de forma diferente? Por que há alguns são permitido determinadas liberdades e a outros não? Foi lendo o diálogo Lísis, do velho Platão que comecei a compreender essas questões – sobretudo o fato de que existe uma diferença entre gostar e confiar. E é a falta de compreensão acerca desses dois sentimentos que faz com que achamos que nas diversas relações não há amor quando o que não há é confiança. 

Em Lísis ou sobre a amizade, Platão descreve o diálogo que Sócrates trava com o jovem Lísis e outros acerca de que “quando alguém se torna amigo de outrem, qual dos dois vem a ser amigo do outro: quem ama se torna amigo de quem é amado, ou quem é amado se torna amigo de quem ama? Ou não há diferença?” Antes de entrar nessa questão que trás o problema central do diálogo, Sócrates questiona Lísis sobre a relação dele com seus pais. E é ai que está a questão que nos interessa aqui – entender por que os pais não permitem a seus filhos fazerem determinadas atividades e se isso se dá por que não os ama.

Sócrates no seu estilo inconfundível  (descrito por Platão) começa por questionar Lísis acerca do amor dos seus pais por ele: “― Suponho, Lísis, que teu pai e tua mãe te amam muito, não?”. O que Lísis responde afirmativamente. E quem ama quer a felicidade do amado – uma ideia que tanto Sócrates como Lísis concordam. Sendo assim Sócrates questiona: “― E te parece ser feliz o homem que é escravo e ao qual não é permitido fazer nada daquilo que deseja?”. O jovem dirá com uma certeza absoluta que não – não é feliz aquele que vive como um escravo e não pode fazer o que deseja.

Sócrates vai tecendo a teia de forma magistral e Lísis vai caindo sem perceber. “― Então, se teu pai e tua mãe te amam e desejam que tu venhas a ser feliz, é claro que cuidam de todas as formas para que sejas feliz”.  Lísis o responde: ― “E como não seria?”. Sócrates então sentencia “― Portanto, permitem que faças aquilo que queres e não te reprovam nem te impedem de fazer o que desejas”. Lisis então revela que não é bem assim, que seus pais o impedem de fazer muitas coisas sim.

Diante disso, Sócrates então questiona: “― Como assim? Embora queiram que sejas feliz, impedem-te de fazer aquilo que queres?”. A partir daí o nosso filósofo vai fazendo uma série de perguntas sobre atividades que os pais do Lísis, lhe permite ou não fazer, Como por exemplo: Andar de carroça sozinho, participar de uma corrida controlando as rédeas do animal, açoitar as mulas. As respostas do jovem é sempre negativa. Nada disso lhe é permitido fazer, mas a um escravo.

Diante dessas respostas, Sócrates diz: “― Então, eles têm mais em conta um escravo do que a ti, filho deles, segundo parece, e confiam-lhe mais as próprias coisas do que a ti e permitem que ele faça o que quiser, enquanto a ti impedem de fazê-lo? Responda-me ainda o seguinte: permitem que governes a ti próprio ou nem isso confiam a ti?” Ao que Lísis responde: “― E como confiariam?”. Sócrates pergunta: “― Mas então alguém te governa?” E Lísis responde: “― Aquele ali, o pedagogo”.  Sócrates então questiona: “― E ele não é um escravo, é?” E  Lísis responde: “― E como não seria? É um dos nossos escravos”. Sócrates então setencia: “― Que terrível! Ser livre, mas ser governado por um escravo!”. 

E Sócrates continua questionando o jovem acerca das atividades que lhe fariam feliz mas que tanto seu pai como sua mãe não lhe permitem fazer. O que o leva a questionar: “― Mas por que, então, te impedem terrivelmente de ser feliz e de fazer o que quiseres e te educam submetendo-te ao longo de todo o dia a uma condição contínua de servidão, na qual quase nada do que desejas podes fazer? Consequentemente, nenhuma utilidade tem tanta riqueza para ti, já que outros a dirigem ao invés de ti, e até mesmo a tua pessoa, tão bem-nascida, também ela é comandada e zelada por outrem. Então, tu nada governas, Lísis, e não fazes nada daquilo que desejas”.

Para Lísis tal fato ocorre por ele não ter ainda idade suficiente. Resposta que Sócrates discorda: “― Temo que não seja por isso que eles te impeçam, filho de Demócrates, visto que ao menos em uma coisa, suponho eu, teu pai e tua mãe confiam em ti e não esperam até que tenhas idade: quando querem que alguém leia ou escreva algo para eles, és tu, presumo eu, quem preferencialmente escolhem entre os da casa. Não é?”. O que Lísis confirma: “― Sim, naturalmente”. E Sócrates continua: “― Então, tu podes, nesse caso, escrever a carta que quiseres: seja uma ou duas. E o mesmo vale para a leitura. E quando pegas a lira, acho que nem teu pai nem tua mãe te impedem de tocar as cordas que quiseres, nem de usar os dedos ou o plectro para tocá- la. Ou te proíbem?”. E Lísis responde: “― Não me proíbem, de fato”.

Por que então em alguns casos o jovem é proibido e outros não lhe proíbem? É o próximo questionamento que Sócrates faz a Lísis: “― Qual então, Lísis, poderia ser a causa de, nestes casos, não te proibirem, mas naquelas outras coisas que dissemos há pouco, te proibirem? Lísis responde: ― Porque nestes assuntos, penso eu, tenho conhecimento, ao passo que naqueles, não”. Resposta com a qual Sócrates concorda: “― Muito bem, meu bom rapaz! Portanto, não é a idade que teu pai aguarda para te confiar tudo; mas no dia em que considerar que tu és mais sábio do que ele, então ele confiará a si próprio e os seus negócios a ti”.

Aqui chegamos num ponto importante que nos faz retornar ao nosso problema apresentado no início desse texto – por que alguns pais tratam os filhos de forma diferente? Por que há alguns são permitido determinadas liberdades e a outros não?  A partir do diálogo entre Sócrates e Lísis podemos dizer que não é por falta de amor, não é por que se gosta mais de um do que de outro. Mas é por uma questão de confiança – essa deve ser conquistada a medida que se mostra que é capaz de fazer ou administrar determinada coisa. E a capacidade de fazer e administrar algo vem através da aquisição do conhecimento. 

Esse é o caso do exemplo que trouxemos no início – do filho que se queixa da mãe por trata-lo de forma diferenciada do irmão – o que segundo ele seria prova de que ela gosta mais do seu irmão do que dele. A questão não é que ela gosta mais de um filho do que do outro. Mas sim que ela confia mais num do que no outro. E se ela confia mais num do que no outro é por que esse que merece a sua confiança fez por onde merece-lá, isto é,  mostrou ser capaz de fazer aquilo que lhe é confiado. Cabe a esse que reclama da maneira que é tratado por sua mãe, refletir sobre as suas próprias ações e atitudes – se elas são dignas de confiança.

No seu diálogo com Lísis, Sócrates salienta que quando alcançamos a sabedoria de determinada coisa conseguimos não só a confiança dos nossos pais, mas também da comunidade em geral. “– E então? Acaso o teu vizinho não terá o mesmo critério que teu pai em relação a ti? Achas que ele confiará a ti a administração da própria casa quando considerar que és mais sábio do que ele mesmo na administração doméstica, ou achas que ele mesmo assumirá essa função?” Ao que Lísis responde: “― Acho que a confiará a mim”. E Sócrates continua: “― E então? Achas que os atenienses não te confiarão os seus negócios, quando perceberem que és suficientemente sábio?”. E Lísis responde: “― Acho que sim”. E o nosso filósofo continua trazendo outros exemplos e por fim conclui:

“― Portanto, eis o que acontece, caro Lísis. Nas coisas em que nos tornarmos sábios, todos confiarão em nós – gregos e bárbaros, homens e mulheres – e, nesse âmbito, faremos o que quisermos sem que ninguém de bom grado nos impeça. Em relação a essas coisas, nós mesmos seremos livres e controlaremos os demais, e nos apoderaremos delas – pois tiraremos vantagens delas. Entretanto, nas coisas em que não tivermos compreensão, ninguém confiará que façamos o que nos parecer conveniente. Pelo contrário,  todos nos impedirão o quanto puderem, não somente pessoas estranhas, como também o nosso pai, a nossa mãe ou qualquer um que nos seja ainda mais íntimo do que eles. Nesse âmbito, nós mesmos obedeceremos a outrem e aquelas coisas nos serão alheias, pois nenhuma vantagem tiraremos delas. Concordas que é assim que sucede?”.

Bem, Lísis responde positivamente para Sócrates. Mas nós, ao analisarmos a realidade atual, dizemos que nem sempre é assim que sucede. O que se dá muito provavelmente pela confusão em compreendermos a diferença entre gostar e confiar, tal como faz o filho com sua mãe, que apresentamos no início. 

                                      “Nas coisas em que nos tornarmos sábios, todos confiarão em nós...”.
                                                                                                                                                   Sócrates 

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins. 

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