"Ai de mim Natividade
Já estou com saudades
Depois de conhecer teus becos
Não me encanta outra cidade".
Ainda
não era 07h da manhã, mas o sol da capital anunciava mais um dia quente. Nem um
sinal de chuva. Nem uma nuvenzinha se quer no céu – ai de nós, há três meses
que não chove por essas bandas. Sentamos no ponto esperando o ônibus para então
seguirmos viajem. Na minha frente observei alguns pés de ipê com todas as
flores no chão. Então me lembrei do que disse um velho amigo – quando caírem
todas as flores do ipê vai chover. Será? Fiquei pensando – pela quentura do sol
acho pouco provável. Era por volta das 07h30 quando deixamos Palmas rumo a
Natividade no interior do Estado. Não podíamos esconder a empolgação de que em
algumas horas conheceríamos o berço histórico do Estado do Tocantins – uma
cidade que nasceu ainda no século XVIII, em 1734 mais precisamente, a partir do
garimpo de ouro e diamante na serra da Costeira – onde então se formou o
Arraial São Luiz. Boa parte de nós nunca havia estado naquele lugar e um
sentimento de conhecer profundamente nossas raízes culturais nos animava
profundamente mesmo tendo que enfrentar o sol escaldante do cerrado
tocantinense. Ah nosso cerrado, tão devastado pelo agronegócio – é o que vemos
ao longo do caminho – imensos desertos – aonde antes víamos com abundância –
pequi, buriti, cajuí, bacaba, buritirana, jatobá, mangaba, tucum entre outros
frutos do cerrado.
Deixamos
Porto Nacional para trás e outras pequenas cidadezinhas – entre elas Santa Rosa
onde paramos por alguns minutos para nos refrescar, tomar um cafezinho e fumar
um palheiro. A viagem seguia e a paisagem não se alterava – imensas áreas
devastadas para plantação de soja e algumas ilhotas de mata nativa. Já passava
das 11h00 quando entramos na histórica cidade de Natividade – oh, e quão bela é
Natividade protegida pelas cordilheiras da serra da Costeira. Com suas ruas
estreitas, seus becos de pedras, suas igrejas antigas, seus casarões, mas,
sobretudo pela sua cultura e a sua História construída ao longo de três
séculos. E ali, naquele lugar, naquela paisagem foi impossível não se lembrar
daqueles que por ali deixaram seus rastros.
Seguíamos
andando pelas ruas da cidade, que diga se de passagem, parecia não ter uma alma
viva. Ora, mas quem em sana consciência andaria pelas ruas sob um sol de quase
50 graus ao meio dia? Só nós mesmos. Assim não foi possível conversar com as
pessoas da cidade, não tanto como gostaríamos, porém aproveitávamos cada
milímetro daqueles becos históricos – becos que outrora nos conta um jovem guia
– era possível encontrar ouro. E foi justamente esse jovem guia que nos
recepcionou mostrando as riquezas e estórias do lugar – desde o garimpo na
serra da Costeira, do arraial São Luiz, das construções históricas,
especialmente das igrejas, dos casarões do século XVIII e do século XIX, das
festas populares, sobretudo em louvor ao Divino Espirito Santo, das danças,
especialmente a sucia, da lagoa encantada e a lenda da serpente, a pedra perdida
entre outras estórias. Em sua fala percebemos o quanto ele se orgulha de sua
cidade, de sua história, de sua cultura. Mas que também não tapa os olhos para
os problemas que precisam ser superado para que a cidade possa dá um salto de
desenvolvimento – claro preservando seu patrimônio histórico, artístico e
cultural. Continuamos nossa caminhada pelas ruas históricas da cidade e foi
então que chegamos à ourivesaria do mestre Juvenal – grande artista que
preservou a arte de filigrana, transformando o ouro bruto em lindas joias. O
mestre Juvenal já não vive, mas deixou formados 40 discípulos que mantem viva a
sua oficina e especialmente a sua arte. Em seguida visitamos a igreja de São
Benedito – construída ainda no século XVIII – pelos escravos que trabalhavam no
garimpo. Ai os escravos – negros arrancados da mãe África – que sob sangue,
suor e chibata construíram tudo ali. Como a majestosa ruína da igreja de nossa
senhora do Rosário que não fora concluída devido à decadência do garimpo, no
entanto sua ruína sobrevive nos mostrando o rastro daqueles que ali viveram.
Logo ao mesmo tempo em que nos encantamos com tão bela obra, não podemos deixar
de sentir a dor dos nossos ancestrais que foram obrigados a carregarem aquelas
pedras no lombo. Descansamos por alguns minutos a sombra de uma imensa
mangueira e aproveitamos para fumar um palheiro enquanto ouvíamos a professora
falar sobre a construção da igreja de Nossa Senhora dos Pretos. Aliás,
Natividade poderia também ser chamada de cidade das mangueiras, há muitos pés
de manga no lugar. Depois seguimos até a igreja matriz – a igreja de Nossa
Senhora da Natividade construída em 1759 – uma curiosidade é que tanto a imagem
da santa como os sinos chegaram ao local mesmo antes da construção da igreja.
Outra questão a se destacar é a visão privilegiada da serra da Costeira. Enfim
fomos conhecer o amor perfeito, isso mesmo, quem vai a Natividade tem o
privilegio de conhecer o amor perfeito. E isso não é coisa de poeta, ti
garanto. É na cozinha de Dona Naninha – preparado à lenha e nos forros de
barro. Infelizmente não pudemos conhecer pessoalmente Dona Naninha, mas sua
filha nos recepcionou e nos deu a oportunidade de experimentar essa maravilha.
Depois de conhecermos o amor perfeito, sentamos a sombra de uma mangueira e nos
deliciamos com a farofa de cuscuz com carne seca da Magna e a torta da Alitania
– que, diga-se de passagem, são obras primas da culinária tocantinense. E
depois de comer dá sempre aquela vontade de tirar uma sonequinha, mas o tempo
urge e é preciso caminhar. Fomos então conhecer o museu histórico de Natividade
que fica exatamente no antigo prédio da cadeia pública local – construído ainda
no império. O local funcionou como cadeia até 1995. As peças expostas que ali
encontramos nos mostrou um pouco da alma do povo que ali viveu – rastros e mais
rastros, quantos rastros naquele lugar – do povo que ali viveu e morreu – dos
escravos, dos camponeses, dos viajantes. Rastro dos presos que morreram
condenados. Por quais crimes? E daqueles que foram libertos por Prestes e sua
Coluna e que acabaram seguindo o cavaleiro da esperança pelos sertões do país.
Depois saímos dali e fomos ao encontro do espetacular.
Isso
mesmo, encontro do espetacular, pois não há palavra mais apropriada para
definir Dona Romana e sua obra. Não são poucos os adjetivos que tentam
“satanizar” sua figura e suas criações – feiticeira, catimbozeira, bruxa, casa
do demônio, no entanto será que essas pessoas em algum momento deixaram o
preconceito de lado e foram visitar sua casa para conhecê-la pessoalmente e
ouvir suas estórias? Independente de se acreditar ou não no que ela diz – na
sua crença, no seu misticismo. Uma coisa é fato – sua figura simples, sua voz
tranquila, mas firme ao mesmo tempo, nos mostra que estamos diante de uma
figura que transborda energia positiva – e se há uma coisa que suas peças
feitas de pedras nos transmite é paz. Sim, a Casa de Dona Romana é, sobretudo,
um recanto de paz. Como também de memória dos nossos ancestrais que morreram no
garimpo – explorando riquezas para as elites. E a sua figura de mulher negra
nos faz recordar de outros tantos negros que morreram durante a escravidão
naquele território. Aliás, qual espaço ocupa hoje o negro na sociedade
Nativitana. Onde vive, no centro ou na periferia? Não temos respostas para essas
questões – talvez no futuro algum estudo nos possa apontar. No entanto é
inegável a forte influência dos negros na cultura do local – e Dona Romana
talvez seja o maior exemplo dessa influência. “Quando a gente assumi uma missão
meu filho, somos vistos como loucos”. Diz dona Romana com toda a sua sabedoria
– sabedoria tirada das pedras que ela encontrou pelo caminho. E por que quem
faz uma obra tão espetacular como é a sua acaba sendo taxado de louco?
Simplesmente pelo fato de que decidimos romper com uma vida medíocre que
permeia a existência da maioria dos indivíduos. E esse é o preço dos que ousam
romper com a mediocridade – ser taxado de loucos. Porém só os loucos como Dona
Romana pode conseguir ser espetacular. Poderíamos ficar horas e horas ali conversando
com a aquela senhora que transmite como ninguém a alma do povo do interior
tocantinense – simples e hospitaleiro. No entanto precisávamos pegar a estrada
de volta para casa.
Já
se aproximava das 17h00 quando deixamos Natividade rumo a Palmas, todos muito
cansados de uma viagem exaustiva em mais um dia extremamente quente como é de
praxe no Tocantins, porém quando passávamos por Porto Nacional começou cair uma
chuva e foi sob chuva que chegamos à capital, e não teve como não se lembrar
das flores do ipê que eu havia visto pela manhã no chão e do que havia me dito
um camarada. Já era noite – no céu uma linda lua cheia nos encantava com seu
brilho. Todos nós estávamos extremamente felizes e realizados por tudo que
havíamos conhecido – uma experiência que carregaremos eternamente em nossas
memórias. É fato que outras viagens virão – há tanto ainda por conhecer desse
nosso imenso Tocantins e desse nosso imenso Brasil – mas esta viagem sempre
ficará num cantinho especial de nossas memórias.
Pedro Ferreira
Nunes
Casa da Maria
Lucia, Lajeado-TO.
Lua Cheia,
inverno de 2016.
Simplesmente irretocável sua narrativa sobre sua estada no nosso pé de serra.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAmei seu trabalho. Natividade é sempre amada pelos que aqui moram e pelos que passam. Natividade, Natividade, cidade amada.
ResponderExcluirFalar sobre NATIVIDADE é falar da história do Norte de Goiás, hoje TOCANTINS. Cidade cantada em prosa e verso pelas autoridades do Estado, contudo esquecida pelas mesmas. Natividade do 'já teve', do 'já foi', contudo para seus filhos de nascimentos e adotados de coração ela continua sendo. Lembro-me do Livro de Poesias: VIBRAÇÕES do escritor, poeta e advogado, JOSÉ LOPES RODRIGUES: Natividade, minha velha cidade, minha terra ... Sabendo do seu passado glorioso de outrora e vendo-a triste como a veja agora, quanta pena me dá Natividade.
ResponderExcluirObrigado todas e todos pelos comentários.
ResponderExcluir