“São faces marcadas que temem a revolução...”
Ratos de Porão
Por Pedro Ferreira Nunes
“Um espectro ronda a Europa: o espectro do comunismo”. Assim começa o Manifesto do Partido Comunista escrito por Marx e Engels entre o final de 1847 e o início de 1848 (com a importante contribuição de Jenny – esposa de Marx) chamando atenção para a campanha de difamação que o movimento comunista sofre por parte das elites dominantes da época. Diante dessa campanha o que fazer? Ficar na defensiva? Pegar a bandeira e dá no pé? Como diz uma certa canção. Não para Marx e Engels. Para os dois, os comunistas devem expor abertamente – sua visão de mundo, seus objetivos e suas tendências. E é justamente essa divisão que segue o manifesto. Começando, portanto, apresentando a visão de mundo dos comunistas.
E qual seria essa visão? De que “a história de todas as sociedades até agora tem sido a história das lutas de classes”. Marx e Engels defendem a ideia de que as diferentes sociedades são frutos da luta entre as diferentes classes que as compõem. E nesse contexto a sociedade burguesa não é diferente, a não ser pela tendência de simplificar os antagonismos de classes em dois campos: a burguesia e o proletariado. A partir dai os autores apresentaram esses dois campos e o porquê que estão em oposição um ao outro.
Marx e Engels nos diz que a burguesia moderna é “o produto de um longo processo, moldado por uma série de transformações nas formas de produção e circulação” (desenvolvimento da indústria, ampliação do comercio e criação do mercado mundial). Essa transformação econômica levou também a uma mudança tanto do ponto de vista político como social da sociedade. Do ponto de vista político o poder do Estado moderno foi transformado num “comitê que administra os negócios comuns da classe burguesa como um todo”. Já no aspecto social se “dissolveu a dignidade pessoal no valor de troca e substituiu as muitas liberdades, conquistadas e decretadas, por uma determinada liberdade, a de comércio”. E ainda “rasgou o véu comovente e sentimental do relacionamento familiar e o reduziu a uma relação puramente monetária”.
E o proletariado? São os trabalhadores modernos que assim como a burguesia se desenvolveu a partir do desenvolvimento do Capital. “Esses trabalhadores, que são forçados a se vender diariamente, constituem uma mercadoria como outra qualquer, por isso exposta a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as turbulências do mercado”. Para não serem reduzidos a uma mera mercadoria os operários precisam se organizar e se mobilizar contra a burguesia – uma luta que no primeiro momento é pela sua própria sobrevivência. Mas que não pode se esgotar aí.
“Os proletários só podem se apoderar das forças produtivas sociais se abolirem o modo de apropriação típico destas e, por conseguinte, todo o modo de apropriação em vigor até hoje. Os proletários nada têm de seu para salvaguardar; eles têm que destruir todas as seguranças e todas as garantias da propriedade privada até aqui existentes”. Para tanto o movimento proletário (que se constitui da maioria da sociedade) precisa destruir as classes dominantes. E é essa própria classe dominante, a burguesia, que cria as condições para o desenvolvimento e a tomada de consciência dos proletários. Com isso ela produz os seus próprios coveiros.
Em suma, a burguesia e o proletariado estão em campos opostos nesse tabuleiro, pois possuem interesses antagônicos. A burguesia para manter a sua dominação sobre o proletariado deve reduzi-lo a condição de mercadoria – sujeito as leis do mercado. Isso significa retirar direitos, reduzir salários e etc. Já o proletariado precisa se organizar enquanto classe e lutar não apenas por sua sobrevivência, mas também pela supressão do modo de produção burguês e da própria burguesia.
Diante disso surge a seguinte questão: Qual o papel dos Comunistas diante da luta entre burguesia e proletários? Para responde-la Marx e Engels faram uma caracterização do que é o Comunismo e de quais são seus objetivos.
Para Marx e Engels os Comunistas não são diferentes dos demais partidos proletários, e nem tem objetivos diferentes destes. “O objetivo imediato dos Comunistas é o mesmo dos demais partidos proletários: a constituição do proletariado em classe, a derrubada do domínio da burguesia, a conquista do poder político pelo proletariado”. No entanto os Comunistas se colocam como a vanguarda desse movimento sobretudo pela compreensão teórica que se dá a partir da análise do movimento histórico da sociedade.
Dito isso, “o que caracteriza o Comunismo não é a supressão da propriedade em si, mas a supressão da propriedade burguesa”. Pois essa propriedade é o principal instrumento de dominação e exploração de uma classe por outra. Portanto se se quiser superar essa dominação e exploração é necessário a supressão da propriedade privada. E é a partir dai que temos a primeira acusação contra os Comunistas.
“Vocês horrorizam com o fato de que queremos abolir a propriedade privada. No entanto, a propriedade privada foi abolida para nove décimos dos integrantes de sua sociedade; ela existe para vocês exatamente por que para nove décimos ela não existe. Vocês nos acusam de querer suprimir a propriedade cuja premissa é privar de propriedade a imensa maioria da sociedade”. Por tanto, o que pretende os Comunistas, e eles não omitem suas intenções, é acabar sim com essa propriedade privada que para existir para uma pequena minoria, priva a grande maioria de possui-la.
Outra acusação contra os Comunistas que Marx e Engels respondem é a de que estes querem acabar com a individualidade a partir do momento que o trabalho não puder mais ser transformado em Capital ou “a partir do momento em que a propriedade individual não possa mais se tornar burguesa”. Tal ideia parte da concepção, portanto, de que apenas o burguês pode ter direito a individualidade. Nesse sentido, Marx e Engels não vacilam ao dizer que o individuo que os Comunistas pretendem abolir é o burguês. Eles esclarecem que “o Comunismo não retira de ninguém o poder de apropriar-se de produtos sociais; apenas suprime o poder de, através dessa apropriação, subjugar trabalho alheio”.
Marx e Engels também respondem a acusação de que “com a abolição da propriedade privada, toda atividade seria paralisada e a preguiça se disseminaria”. Ressaltando que nessa lógica a sociedade burguesa já teria se autodestruída pois nela quem trabalha não lucra e quem lucra não trabalha. O fato é que as críticas da burguesia ao modo de produção Comunista é uma reação contra a perda dos seus privilégios. “Vocês tomam como padrão para a abolição da propriedade burguesa a sua concepção burguesa de liberdade, educação, direito etc. Suas ideias são produto das relações burguesas de produção e de propriedade”. Desse modo é compreensível que rechacem mesmo a perspectiva Comunista (o problema é quando isso parte do proletariado e outras classes subalternas).
Nossos filósofos, também respondem a acusação de que os Comunistas querem acabar com a família (qualquer semelhança com o contexto atual não é mera coincidência). “Em que se baseia a família atual, burguesa? No capital, no lucro privado”. E na medida que se muda o modo de produção a tendência é que esse modelo de família seja abolido. Já em relação a acusação de que os Comunistas querem abolir a exploração das crianças pelos pais, Marx e Engels respondem: - “Nós confessamos esse crime”.
Outra questão importante é acerca da educação. Sobretudo em relação a acusação de que os Comunistas querem substituir a educação domestica pela social. Para nossos filósofos a educação burguesa também é determinada pela sociedade. Desse modo “os Comunistas não inventaram a interferência da sociedade na educação; eles apenas modificam seu caráter e tiram a educação da influência da classe dominante”. Marx e Engels ressaltam que o discurso acerca da família e da educação por parte da burguesia não passa de um engodo, pois na sociedade burguesa tanto a família como a educação são transformados em artigos de comércio e instrumentos de trabalho.
Em relação a acusação de que os Comunistas pretendem introduzir a comunidade das mulheres, Marx e Engels respondem: “o burguês vê sua mulher como mero instrumento de produção” e o que pretende os Comunistas é – “abolir o papel da mulher como simples instrumento de produção”. Já a acusação de que os Comunistas pretendem abolir a pátria, a nacionalidade. Nossos filósofos dizem: - “os trabalhadores não têm pátria. Não se lhes pode tomar uma coisa que não possuem”. O ponto fundamental é abolir a exploração de um individuo por outro, e na medida que isso ocorra, também será abolido a exploração de uma nação por outra. Eles também defendem que com o desaparecimento dos antagonismos de classe dentro das nações favorecerá para o desaparecimento da hostilidade entre nações.
Ainda em relação as acusações contra os Comunistas está a de que estes pretendem abolir as verdades eternas e suprimir a religião e a moral – desse modo caminha-se para uma negação de toda evolução histórica anterior. Marx e Engels defendem que a mudança proposta pelos Comunistas é mais radical que as mudanças que ocorreram anteriormente. Desse modo “não é de se espantar que, em seu desenvolvimento, rompa-se de modo mais radical com as ideias do passado”.
Nesse sentido a primeira tarefa do proletariado é se tornar a classe dominante através da conquista do poder político. A partir daí o objetivo é retirar todo “o capital da burguesia e concentrar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado”. Ainda de acordo com nossos filósofos: “uma vez que, no processo, desapareçam as diferenças de classe e toda a produção esteja concentrada nas mãos dos indivíduos associados, o poder público perderá o seu caráter político”. Pois o poder político só tem sentido numa sociedade dividida em classes, onde esse se configura num instrumento de dominação. Quando, portanto, através de uma revolução o proletariado abole os antagonismos de classes, o poder político perde o seu sentido.
Com isso “no lugar da velha sociedade burguesa, com suas classes e seus antagonismos de classe, surge uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um é pressuposto para o livre desenvolvimento de todos”. Em suma, uma sociedade sem desigualdades, sem exploração, sem dominação, sem opressão – em que uma minoria privilegiada não mantenha seus privilégios às custas da miséria da grande maioria.
Seria uma espécie de paraíso na terra? Nossos filósofos estavam a sonhar em demasia com coisas impossíveis? Olhando para nossa realidade é o que nos parece – sobretudo por que o domínio do Capital hoje é bem mais perverso do que há 171 anos, quando Marx e Engels escreveram o “Manifesto do Partido Comunista”. De modo que vislumbrar outro modelo de produção, especialmente baseado numa concepção Comunista, parece algo por demais utópico.
Mas ainda que seja difícil vislumbrar esse processo revolucionário de transformação do modo de produção dominante. Para nós que pertencemos as classes dominadas, abrir mão dessa perspectiva significa abrir mão da nossa libertação – Significa aceitar o estado de coisas tal como está – estado de coisas que não é nem um pouco diferente do que descreve Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista.
Na última parte do “Manifesto...”, Marx e Engels apresentam e caracterizam as diferentes tendências socialistas e comunistas, não poupando crítica as linhas reformistas e oportunistas. Entre essas tendências está o socialismo feudal, o socialismo burguês e o Socialismo e Comunismo utópico. Segundo nossos filósofos, o socialismo feudal tem um caráter reacionário e na prática “participam de todas as medidas violentas contra a classe operária”. Já os socialistas burgueses seriam reformistas – “querem as condições de vida moderna, sem os conflitos e os perigos que dela necessariamente decorrem”. Buscam afastar o proletariado do movimento revolucionário defendendo que o foco da luta deve ser econômico (na melhoria das condições de vida) e não na domada do poder político. E os socialistas e comunistas utópicos fazem uma analise fantasiosa da sociedade e se colocam a cima da luta de classes – “rejeitam toda ação política, quer dizer, revolucionária; querem atingir seu objetivo por meios pacíficos e tentam abrir caminho para o novo evangelho social pela força do exemplo, por meio de experimentos inexpressivos que, naturalmente, sempre fracassam”.
Diante disso qual deve ser a posição dos Comunistas diante dos partidos de oposição? É respondendo essa questão que Marx e Engels encerram o Manifesto do Partido Comunista. Eles salientam que “os Comunistas lutam pelos objetivos e interesses mais imediatos da classe operária, mas, ao mesmo tempo, representam no movimento atual o futuro do movimento”. Desse modo eles defendem a aliança dos Comunistas com os diversos partidos de oposição que estão na luta pela melhoria das condições de vida do proletariado, mas sem perder de vista a relação antagônica entre burguesia e proletariado.
Marx e Engels ressaltam que “os Comunistas apoiam em toda parte todo movimento revolucionário contra as condições sociais e políticas atuais”. Sempre pautando nesses movimentos a questão da propriedade. Os Comunistas também devem lutar pela união dos diversos partidos progressistas e pela construção de frentes democráticas, sem, no entanto, abrir mão dos seus princípios. E concluem afirmando que as classes dominantes devem tremer diante de uma revolução Comunista. Já os proletários “não têm nada a perder, além de seus grilhões. Têm um mundo a conquistar”. E por tanto nossos filósofos conclamam: - “Proletários de todos os países, uni-vos!”.
Por fim, para mim, ler o “Manifesto do Partido Comunista” é como ouvir um bom disco de Punk Rock. Você ouve sempre e não se cansa. O estilo duro e direto dos autores – como um soco no estômago – também lembra as letras de canções punks. Marx e Engels distribui socos e ponta pés para todos os lados, do início ao fim da obra. Seria, portanto, o “Manifesto...” o primeiro material punk da história?
Li-o pela primeira vez lá pelos idos de 2005-2006 se não me engano. Justamente no mesmo período em que descobri o punk através de bandas como Sex Pistols, Ramones e Ratos de Porão. Desde então a leitura desta obra tornou-se um hábito para mim. Sobretudo por que apesar de ter sido escrita já há mais de 170 anos (quando o estágio de desenvolvimento do capitalismo era ainda embrionário) a crítica desses revolucionários permanece bastante atual – ainda mais num contexto em que se fala tanto em comunismo, mas sem consciência do que isso seja de fato.
Falar em comunismo, seja a favor ou contra, sem ter lido o Manifesto do Partido Comunista é inaceitável. Quem o faz não merece o mínimo de credibilidade, pois nada mais está fazendo do que repetir ideias de terceiro. É óbvio que não dá para reduzir a compreensão do movimento comunista a esse livro unicamente, mas tão pouco é possível compreende-lo sem a leitura dessa obra que inspirou e inspira a luta anticapitalista mundo afora – incluindo o Movimento Punk.
Referência Bibliográfica
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 1º ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
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