“A verdadeira função social da Filosofia consiste na crítica do estabelecido”.
Valério Rohden
Essa questão feita por Valério Rohden em 1979
(durante a fase final da ditadura militar) voltou á tona nos últimos anos no Brasil. Sobretudo a partir da proposta de reforma do Ensino Médio no governo de Michel Temer (MDB), onde se propunha entre outras coisas a retirada do ensino de Filosofia como disciplina obrigatória da grade curricular. Com a chegada do Sr. Jair Bolsonaro a presidência da república essa questão volta com força sobretudo com os ataques do governo a universidade pública, em especial os cursos de humanas, e em particular os cursos de Filosofia.
Rohden foi um filósofo brasileiro referência no pensamento kantiano – traduziu do alemão as três críticas desse filósofo e presidiu a Sociedade Kant Brasileira. Também presidiu e foi um dos fundadores da ANPOF (Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia). Gradou-se em Filosofia em 1960 e o doutorado com livre-docência pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul ocorreu em 1976. Já o pós-doutorado foi na Universidade de Munster (Alemanha). Rohden desenvolveu pesquisas em diversas universidades em países como Alemanha, França, Itália e no Brasil – onde atuou como docente na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e na Universidade Luterana do Brasil. Além de traduzir, também escreveu diversas obras entre elas: “Interesse da razão e liberdade” (1981), “Kant e a instituição da paz” (1997) e “Filosofia, liberdade e conhecimento...” (1999).
Em “Quem tem medo da Filosofia?” Rodhen chama atenção para as prevenções que se tem com a Filosofia. Ele se questiona do por que dessas prevenções se no Brasil a Filosofia não tem grande relevância, como dizem seus críticos. Ora, se a Filosofia é tão irrelevante assim, a ponto de ser retirada da grade curricular do segundo grau, por que o Estado persegue os professores, afastando-os? Não há ai uma contradição? Questiona Rohden.
“O Estado arroga-se o direito de julgar quem é bom ou mau em Filosofia, afastando aqueles que julgou serem maus, justamente aqueles que na verdade eram bons. Parece que a base desse procedimento reside num medo à Filosofia: numa hostilidade que sempre houve contra ela, e que parece traduzir-se sob a forma de um medo ao pensamento e à crítica” (1984, p. 3).
É a partir dessa reflexão que surge o questionamento acerca de quem tem medo da Filosofia e por quê. Para refletir sobre essas questões o nosso filósofo recorrerá a três textos de diferentes autores: “Crítica da razão tupiniquim” do Roberto Gomes, “Teoria tradicional e teoria crítica” do Max Horkheimer e “Schopenhauer como educador” do Friedrich Nietzsche. A esse respeito, Rohden nos diz:
“Refletindo sobre esses textos consegui detectar três diferentes centros de medo, cada um assumindo suas conotações próprias: I. O Medo do próprio filósofo: medo de expor-se; II. O Medo da opinião pública: medo da crítica; E III. O Medo do Estado: medo da verdade” (1984, p.4). Vejamos cada um deles.
I. O Medo do próprio filósofo: medo de expor-se;
Rohden identifica esse medo – o medo de expor-se – a partir do que expõem Roberto Gomes em “Crítica da razão tupiniquim”. Trata-se de um medo do próprio filósofo “porque uma vez expostos e nus não teriam o que mostrar para além do seu formalismo exterior de terno e gravata”. Isto é, reproduzir discurso academicista de autores europeus. Ele salienta que se expor significa colocar-se sob o julgo da opinião pública e estar preparado para arcar com as consequências que daí advém. Por saber disso nossos filósofos preferem se silenciar. E assim, nas palavras do próprio Rohden, “em termos rigorosos seriam, pois, filósofos “mudos”, ou loquazes mas sem pensamento – enfim uma forma estranhíssima de seres que propriamente não falariam e nem pensariam. Sua expressão seria falsificada por uma retórica dominada por categorias assimiladas e repetidas, sem nenhuma mediação de pensamento e de meio” (1984, p. 4). Ao invés de assumir uma posição e se arriscar a ela, independente das consequências, preferem se esconder atrás de uma suposta “isenção e da ‘objetividade’– que tudo concilia, dissolvendo as oposições e não radicalizando nada” (1984, p. 5). Em suma, para Rohden, nossos filósofos tem medo de assumir uma posição e de se desligar da cultura européia.
II. O Medo da opinião pública: medo da crítica;
Rohden, ainda a partir do Roberto Gomes, identifica o medo da crítica a partir de uma análise das características culturais do brasileiro. Ele salienta que “o decantado espírito de conciliação e tolerância típico do brasileiro facilmente converte-se no seu oposto, ou seja, no fanatismo de quem não admite uma posição diferente da sua” (1984, p. 5). Nosso filósofo diz que isso é consequência da falta de convivência racional e democratica. Essa falta faz com que sejamos incapazes de conviver e dialogar com alguém que pense diferente de nós. O curioso, ressalta Rohden, é que conseguimos conviver com autores e obras distintas. Mas, citando Gomes, “ao nível social, divergir é crime. Discordar é subversão. Perguntar já é um hábito de desobediência. Isso no país do jeitinho, do homem cordial, do carnaval eterno” (1984, p. 5). Isso leva a uma ausência de consciência crítica – que por sua vez gera intolerância, sectarismo, o partidarismo estéril, a repressão, a censura, o irracinalismo e à autoritarismo políticos. “Em tal contexto a Filosofia não tem condições para exercer-se e cumprir sua missão” (1984, p. 5). E qual é essa missão? Para responder essa questão Rohden recorrerá a Horkheimer – e a partir daí afirmará que “a verdadeira função social da Filosofia consiste na crítica do estabelecido”. Para Rohden “é como crítica, e não por alguma outra utilidade mais imediata, que a Filosofia desempenha uma função social” (1984, p. 6).
Ainda de acordo com nosso filósofo: “O conflito da Filosofia com a sociedade deriva dos seus princípios imanentes: A Filosofia afirma a liberdade das ações humanas, reivindica a necessidade geral da crítica, opõe-se a tradição, à resignação e lança luz sobre hábitos tão arraigados que parecem naturais. A defesa desta dimensão da Filosofia levou Sócrates à morte, e por esta dimensão ela mantém até hoje uma relevância originária” (1984, p.6).
III. O Medo do Estado: medo da verdade.
É a partir de Nietzsche que Rodhen definirá esse terceiro medo – o medo da verdade por parte do Estado. “O Estado tem medo de homens que fazem verdadeira filosofia. Tais homens, pela sua própria estatura de pensamento e de homens, não servem ao Estado, e ele não os favorecerá, ou seja, não favorecerá a verdadeira Filosofia” (1984, p. 7). Mas para dar uma aparência de que presa pela verdade e pela Filosofia o Estado favorece alguns filósofos, claro apenas aqueles dos quais ela não teme. Busca convencer a opinião pública de que esses são os bons filósofos, obriga-os a ensinar e a falar mesmo quando não tem nada a dizer e “compromete a Filosofia a fazer o papel da erudição, de produzir repensadores e pós-pensadores de pensadores anteriores” (1984, p. 7). E com isso ao invés de contribuir para fortalecer o pensamento filosófico enfraquece-o afastando os estudantes que darão graças a Deus por não serem filósofos.
“Se com essa erudição só se aproveita uma educação para a prova – que leva os estudantes a suspirarem ao fim do semestre com um ‘graças a Deus que não sou filósofo, mas cristão e cidadão do meu Estado’ – então devemos dar também razão a Nietzsche ao perguntar: ‘e se esse suspiro profundo fosse justamente o propósito do Estado, e a educação para a Filosofia, em vez de conduzir a ela, servisse somente para afastar da Filosofia?’” (1984, p. 8).
Que fazer?!
Rohden propõe a seguinte estratégia para combater esses medos. Primeiro, em relação ao medo no filósofo, ele defende o desenvolvimento do pensamento autônomo e crítico da realidade. Segundo, em relação a opinião pública, ele propõe mostrar o seu engano, mas mostrando também como a Filosofia está ao seu lado. Em terceiro, em relação ao Estado, ele defende a desmistificação das falsas legitimações, procurando desenvolver uma política verdadeira e exigindo do Estado o direito à liberdade do exercício público e ilimitado do pensamento.
Para concluir
Primeiro ponto, não é de agora que a Filosofia no Brasil é vista como algo inútil que deve ser retirada da grade curricular de ensino e que os filósofos (dignos desse nome) sejam desqualificados e perseguidos. Segundo, passado 40 anos da publicação desse texto, podemos dizer que as reflexões levantadas pelo filósofo Valério Rohden continuam válidas pois as prevenções com a Filosofia permanece e por conseguinte os medos que daí advém – os filósofos ainda não superaram o medo de exporem-se, a opinião pública não superou o medo da crítica, e o Estado o medo da verdade – ainda que já não estejamos mais numa ditadura militar, que tenhamos conseguido manter a obrigatoriedade do ensino de Filosofia no Ensino Médio e de termos conseguido ampliar os cursos superiores nessa área. Por isso não podemos deixar de questionar: Quem tem medo da Filosofia? Ousamos responder: Quem tem medo da crítica, do debate, do contraditório. Que esse medo seja por parte do Estado (que busca manter a ordem dominante) é até compreensivo – o que não significa dizer que temos que aceitar. Mas quando falamos em nível social aí é um problema. E mais problemático ainda é quando esse medo está em nós.
Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins.
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Referência
ROHDEN, V. Quem tem medo da Filosofia?. In Introdução à Filosofia. Universidade Católica de Pernambuco – Departamento de Filosofia. Subsídios Didáticos – Fascículo I. Recife, 1984. Pág. 3-8.
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