segunda-feira, 10 de maio de 2021

Jean-Paul Sartre: O Muro e outros contos


— Muito bem. Serão oito. Ouve-se um grito: “Apontar”, e eu verei oito fuzis apontados para mim. Acho que desejarei penetrar no muro; empurrarei o muro com as costas e toda a minha força, e o muro resistirá, como nos pesadelos. Posso imaginar tudo isso. Ah! Se você soubesse como posso imaginar. Trecho do Conto O Muro, de Jean-Paul Sartre.


Como você agiria sabendo que em algumas horas será fuzilado? O que faz alguém abdicar da sua vida para viver a vida de outro? Por que permanecemos ao lado de outro quando já não há amor? Como formamos a nossa personalidade? Essas são algumas questões que encontramos na coletânea de Contos “O Muro” do Escritor e Filósofo Jean-Paul Sartre. São contos onde desfilam personagens atormentados diante das escolhas que deverão fazer. Pois como nos diz Sartre na sua filosofia – “O homem está condenado a ser livre, condenado porque ele não criou a si, e ainda assim é livre. Pois tão logo é atirado ao mundo, torna-se responsável por tudo que faz”.

O Muro

O conto “O Muro” dá nome a coletânea e também é o que inicia a obra. Aqui o autor nos leva para o contexto da Guerra Civil espanhola. Alguns militantes são presos e após um rápido interrogatório trancafiados numa cela. A partir dali eles sabiam – em algumas horas seriam fuzilados. E é nessas horas que antecedem a execução que Sartre enfatiza, a partir do olhar do personagem principal Pablo Ibbieta, o drama. Nosso autor vai descrevendo de forma magistral os conflitos psíquicos que se instala naquele ambiente – o estado emotivo de cada um, afetados pelo Medo. Enquanto um busca refúgio no silêncio e na observação dos demais. Outro não para de falar. Já o terceiro, o mais jovem, não consegue controlar a emoção e cai no choro. Para compreender melhor o que estou dizendo vejamos um trecho da narrativa de Ibbieta:

“Sentia-me cansado e superexcitado ao mesmo tempo. Não queria mais pensar no que aconteceria de manhã cedinho, nem na morte. Aquilo não tinha sentido, eu não encontrava senão palavras, um vazio. Desde, porém, que tentara começar a pensar em outra coisa, via canos de fuzis apontados para mim. Vivi talvez umas vinte vezes seguidas a minha execução; numa delas cheguei mesmo a pensar que o fuzilamento tinha ocorrido; devo ter dormido um minuto.”

Como nos comportamos diante de determinadas situações? Na minha leitura, eis o problema que Sartre reflete nesse conto. Diante de uma situação que parece não haver saída. O que fazer? Cada um age de uma forma diferente e é isso que pode definir o seu destino. Não vou aqui dar spoiler, como dizem. Mas adianto que o final do conto é surpreendente.

O quarto

Nesse conto Sartre nos apresenta a seguinte estória. Os pais da jovem Éve não se conformam com a vida que a filha vem levando ao lado do esposo Pierre. Esse enlouquecera e vive trancado num quarto numa realidade paralela. Éve se submete a todas as vontades do marido chegando a se isolar voluntariamente do mundo. Os pais dela não compreendem tal decisão, sendo ela tão jovem, tendo tanto para viver. Por que não colocá-lo numa clínica de repouso e retomar sua vida? É o que lhe propõem o pai. Mas ela não lhe dá ouvidos. Estava presa ao marido e qualquer coisa que viesse lembra-la que existia vida fora dali lhe aborrecia:

“Uma transformação profunda se fizera à sua volta. À luz envelhecera, ia ficando grisalha; tornara-se pesada como a água de um vaso de flores, quando esquecemos de renová-la. Sobre os objetos, naquela luz envelhecida, Ève encontrava uma melancolia de que há muito tempo se tinha esquecido; a de uma tarde de fim de outono. Olhou ao redor, hesitante, quase tímida; tudo aquilo estava tão longe; no quarto não havia nem dia, nem noite, nem estações, nem melancolia. Lembrou-se vagamente de outonos muito antigos, de outonos da sua infância, e depois, subitamente, enrijeceu-se; tinha medo das suas recordações”.

Camaradas, que Belo trecho,  não?! É, não estamos diante de um escritor qualquer. Isso é Sartre senhores. Isso é Sartre. Aqui mais uma vez o Medo determinando as ações dos personagens. O Medo nos faz se submeter a situações e condições impensáveis. 

Erostrato

Nesse conto a estória é narrada a partir da perspectiva do personagem principal – um sujeito que se acha superior aos demais e que tentará provar essa superioridade fazendo algo grande. Para tanto adquire um revólver e passa a exercer a sua “superioridade”. Numa conversa com amigos ouve a estória de Erostrato – um sujeito que para se tornar ilustre incendiou o templo de Éfeso – uma das sete maravilhas do mundo. 

“Quanto a mim, que até então jamais ouvira falar de Erostrato, sua história me encorajou. Havia mais de dois mil anos que ele estava morto e sua ação ainda brilhava, como um diamante negro. Comecei a acreditar que meu destino seria curto e trágico. Isso me amedrontou a princípio, depois me habituei. Encarado de certo ângulo é atroz, mas, por outro lado, dá ao instante que passa uma força e uma beleza consideráveis.”

Eis ai como o nosso personagem com mania de grandeza se convence da sua superioridade. Terá um destino curto e trágico, mas será lembrado por toda a eternidade. Corajoso não?! Nem tanto, no final ele se revelará o que realmente é. Como são todos esses com mania de superioridade. 

Intimidade

Nesse conto, dividido em quatro partes, Sartre também trás uma personagem feminina como protagonista. Aqui somos levados a intimidade de um casal em crise – Lulu e Henri. Ela ameaça abandona-lo. Tem um amante que fugiria com ela e uma amiga que encoraja fazê-lo. Ele do seu lado não faz nenhum movimento de mudança para que Lulu não o abandone. 

“Henri começou a roncar e Lulu assobiou. Não consigo dormir, estou me martirizando, e ele ronca, o imbecil. Se me tomasse nos braços, se me suplicasse, se me dissesse: “Você é tudo para mim, Lulu, eu te amo, não vá embora!”, eu faria esse sacrifício, ficaria, sim, permaneceria com ele a minha vida toda para que fosse feliz”.

Temos ai em síntese a realidade de muitas mulheres. Já não há amor, já não há prazer. Mesmo assim está disposta a permanecer ao lado do marido, sacrificando a sua vida e a sua felicidade. Sartre mostra como a personagem tem consciência disso. Mas será que terá coragem para romper com o marido? Eis o que vocês terão que descobrir lendo.

A infância de um Chefe

Eis o conto que encerra a coletânea. E assim como o anterior é uma narrativa de fôlego. Sartre nos apresenta a estória de Lucen – filho de uma família burguesa francesa. Está sendo formado para seguir os passos do pai no comando dos negócios, isto é,  está sendo formado para ser um chefe. Mas até que tome consciência do seu destino passará por muitas provas. A narrativa é perpassada pelas seguintes perguntas: Se eu existo, quem sou? Qual o meu papel nessa sociedade?

““TENHO DIREITOS!” Direitos! Algo parecido com os triângulos, com os círculos: eram tão perfeitos que não existiam, por mais que se traçassem milhares de rodas com compassos, não se chegava a construir um único círculo. Gerações de operários poderiam, do mesmo modo, obedecer escrupulosamente às ordens de Lucien, nunca esgotariam o direito que ele tinha de mandar; os direitos estavam além da existência, como as equações matemáticas e os dogmas religiosos. E eis que Lucien, justamente, era isto: um enorme feixe de responsabilidades e de direitos”.

Nesse conto Sartre nos mostra de forma magistral como é formado a psique das classes dominantes. A concepção de que são sujeitos de direitos enquanto os demais devem obedecer, apenas obedecer.

Enfim, eis ai de forma breve os contos que compõem essa pequena, mas excelente coletânea do Nobel de Literatura do ano de 1964. São estórias interessantes que nos mostram personagens e as suas escolhas – escolhas tomadas sobretudo dominados pelo Medo.

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. 

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