domingo, 10 de setembro de 2023

Conto: As moscas

Para pequena Maria Cecília 


Enquanto esperava o ônibus de volta da faculdade para casa não pôde deixar de ouvir a conversa entre duas meninas que também estavam ali esperando suas condução.

- O que você andou aprontando nesse final de semana?

- Fui na praia do lixão. Respondeu sorrindo. 

- Praia do Lixão?

- Amiga. É assim que a gente apelidou aquela praia. Tem um lixão bem na entrada.

Ele conhecia bem o lugar. Sempre passava ali correndo de tardezinha. Pensava consigo: - que bela referência para o principal ponto turístico da cidade.

Essa lembrança veio a sua cabeça quando passava correndo por aquelas bandas: - se aquelas meninas voltarem aqui já não veram aquela paisagem degradante. Creio que saíram com outra impressão. A usina de compostagem foi desativada e o mato verde dá uma impressão de área recuperada. 

Mas se caso elas resolvessem, assim como ele, praticar uma corrida por aquelas bandas veriam que não passa de aparência. O odor que dali exala não deixa dúvidas – o lixão continua ativo contaminando o solo e o ar. E o pior é que além da praia agora há um setor de moradias.

- Como fica a saúde das pessoas que moram ali? Pensou sobretudo nas crianças. – Respirar esse ar certamente não é saudável. 

- E as moscas. Disse-lhe certa vez um amigo.

- Mas moscas tem em todo lugar.

- Não como lá. 

Ele não tinha como discordar. Não morava lá. Passava apenas correndo. E apesar do odor não podia deixar de invejar aqueles que ali viviam, por terem uma bela vista da cidade.

- A gente até evita de chamar um amigo para um almoço em casa. Ter que ficar abanando mosca da comida. Ninguém merece.

Ele não disse nada. Mas pensou que havia naquela declaração uma certa dose de exagero.

- Um dia você vai ver. 

Moscas há em todo lugar. Mas não naquela quantidade. Imediatamente ele lembrou do amigo. – É,  não era exagero. Foi durante um almoço de celebração de aniversário de outro amigo que morava por ali que ele viu o fenômeno. Mesmo não sendo um especialista ele tinha certeza que aquilo não era natural. 

- Essas moscas. Era o que mais se ouvia por ali.

Ele lembrou da célebre peça do Jean-Paul Sartre (As moscas, 1943) – onde o filósofo e escritor francês faz uma alusão a ocupação nazista da França a partir da lenda grega de Oristes. Mas as moscas aqui não são simbólicas. São bem reais. Porém há algo em comum entre as moscas de Sartre e a daquele lugar. Ambas nos leva a política. Nesse sentido o povo daqui tem muito que se inspirar na peça Sartreana. Sobretudo a necessidade de resistência para mudar determinada situação. 

– Haverá algum Orestes nesse lugar? Certemente não na Câmara de Vereadores da  cidade. Pensa consigo.

Mais um dia de corrida por aquelas bandas. Ele não pôde deixar de observar as crianças brincado, enquanto as moscas as espreitam. Qual será o futuro daquelas crianças? Questinava-se. Enquanto isso no seu fone de ouvido, Jão  da Periferia S.A berra: “Todos devemos protestar/Não podemos nos intimidar/A terra nunca foi lugar de amor e paz/E quem está aqui tem que lutar”. Quem sabe um dia. Quem sabe um dia. Dizia para si mesmo.

Por Pedro Ferreira Nunes – apenas um rapaz latino-americano que gosta de ler, escrever, correr e ouvir Rock in roll. 

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