terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Qual a sua playlist?

Cena do filme Mesmo se nada der certo
- Você pode saber muito sobre uma pessoa pelo conteúdo da playlist dela. Essa frase é de uma cena do filme Mesmo se nada der certo (2013). Não foi esse filme que me motivou a fazer um exercício com os estudantes da 1ª série do ensino médio no componente curricular de Projeto de Vida. Pelo menos não de forma consciente. Mas essa premissa certamente estava na minha cabeça quando pensei e propus o exercício.

Acredito que todos que iniciam um trabalho com pessoas que não conhecem a primeira coisa a se fazer é buscar conhecê-las. Se tratando da educação, sobretudo na sala de aula, isso é ainda mais necessário. Sobretudo se você é professor de Projeto de Vida. Foi o que fiz ao iniciar a minha trajetória como professor no Colégio Santa Rita de Cássia. Para tanto propus algo que já havia feito em situações anteriores - a elaboração de uma produção textual a partir da temática: quem é você.

Esse exercício é tanto uma forma de conhecê-los para além do nome como também deles próprios se conhecerem. E é incrível como a gente recebe uns relatos bem elaborados com elementos que faz com que a gente olhe para aquelas criaturas com outro olhar. Mas também há sempre aqueles que têm uma dificuldade maior de falar de si. E só com o tempo vão tendo mais confiança em se abrir com a gente. Para que isso ocorra vou instigando-os, por meio de diferentes atividades. Foi nessa de pensar e elaborar essas atividades que me veio a ideia de pedir que fizessem uma playlist com artistas e canções que ouvem quando estão com determinado humor.

A pergunta imediata que fizeram foi: - é sério isso? Eu respondi afirmativamente.

Percebi que todos ficaram empolgadíssimos com a atividade. Até então nunca havia proposto uma atividade em que 100% dos estudantes fizessem sem reclamar. Até eu mesmo me empolguei e compartilhei alguns artistas que estão na minha playlist, seja em momentos alegres ou tristes. Geralmente artistas do rock. Alguns mais pesados como Sepultura, Motorhead e Ratos de Porão. Outros mais tranquilos como The Beatles, Bob Dylan e Ira!

O interessante foi quando comecei a descobrir o que eles ouviam. Tive a impressão que 95% eram de artistas que eu não conhecia. Quiz saber quem eram. Que tipo de ritmo tocavam. O que lhes afetavam nessas canções. Eles falavam com empolgação. Colocavam para eu ouvir. E tinham coisas realmente muito boas. Me questionei como pode a gente não ouvir falar dessa gente que está fazendo um trabalho de muita qualidade.

Foi a mesma impressão que tive tempo depois quando fui no festival calango e me deparei com artistas que nunca havia ouvido falar, como o Yago Opriprio, que fazem um som muito potente, cantado por toda a plateia.

A partir desses exemplos, percebemos que apesar da indústria cultural querer impor um único estilo musical, alguns artistas conseguem furar essa bolha, e isso não é de hoje. Que o diga grupos como Racionais MC´s e artistas como o Edson Gomes.

Refletindo sobre a experiência cheguei a conclusão de que aquele exercício falou para mim, mais sobre mim do que sobre eles. Ao confrontar a minha playlist com a deles percebi que envelheci. Que apesar de reconhecer e apreciar o talento desses novos artistas, as minhas referências são cada vez mais do passado. Na minha visão não por amor ou reverência ao passado, mas porque para mim são atemporais. 

Sei que muitos dos artistas que os meus estudantes ouvem hoje, não serão os mesmos que ouviram na maturidade. Ou se ouvirem não serão afetados da mesma forma que são atualmente. E tudo bem. Ruim seria se ficassem a vida toda ouvindo as mesmas coisas. Mas vai chegar um momento que, assim como eu, terão uma playlist mais restrita fruto das experiências vividas ao longo da vida. E nessa playlist haverá cada vez menos espaço para o novo, ainda que como diz Belchior numa célebre canção: o novo sempre vem.

Pedro Ferreira Nunes - é apenas um rapaz latino-americano, que gosta de ler, escrever, correr e ouvir rock n roll.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Fim da equipe multiprofissional das unidades escolares de pequeno e médio porte é retrocesso na Rede Pública Estadual de Educação do Tocantins

Quando achamos que estamos avançando na esfera educacional, acontecem decisões que nos fazem retroceder. Esse é o caso da medida que retirou das unidades escolares (da Rede Pública Estadual do Tocantins) de pequeno e médio porte dois profissionais fundamentais: Psicólogo e Assistente Social. A presença desses profissionais nos últimos anos trouxe um enorme ganho, sobretudo na política de permanência estudantil. De modo que tal medida terá certamente um impacto negativo para a comunidade escolar.

Numa sociedade que tem funcionado a cada dia como uma máquina de adoecer gente, seria ingenuidade esperar que tal fenômeno não afetaria a sala de aula. De modo que a realidade que encontramos na escola é bem diferente de outrora. Exigindo portanto a presença de diferentes profissionais que possam contribuir para o enfrentamento às expressões da questão social que afeta o aprendizado e a formação integral dos sujeitos.

O filósofo Vladimir Safatle defende que vivemos uma era de crise psíquica como consequência de um modo de produção que impõe determinadas condições sociais. Ele salienta que hoje há tanta categoria clínica que é impossível o indivíduo sair de uma clínica sem o diagnóstico de algum transtorno.

Safatle (2024) nos diz:

“Sabemos que não há sujeito sem sintoma, ou seja, não há sujeito sem marcas de uma socialização que se confunde com formas de alienação. Mas há algo a mais hoje que dá ao processo de formação social do Eu um caráter ainda mais insuportável. As exigências de iniciativa, de responsabilização individual, de “fazer seu corre”, que a precarização social absoluta e a implosão de relações elementares de solidariedade produziram no neoliberalismo, geraram, na verdade, aprofundamento da desagregação psíquica.”

Esse fenômeno é vivenciado por nós no chão da escola. E como não temos força para mudar essa realidade, acabamos tentando minimizar as consequências. É nessa linha que podemos considerar a presença de assistentes sociais e psicólogos nas unidades escolares.

A chegada desses profissionais nas escolas públicas, sobretudo nas regiões periféricas, trouxe um enorme ganho para comunidade escolar. Tirando das costas de outros profissionais que atuam nesse ambiente, sobretudo dos professores, a obrigação de lhe dar com um trabalho que não foram formado para tanto. Além do fato de que, por mais sensíveis que sejam. Estudar, planejar, organizar e ministrar uma aula, bem como fazer os devidos registros, toma tempo suficiente. Além do desamparo diante dos seus próprios problemas psicológicos.

Juntamente com o pedagogo (no cargo de orientador educacional), os assistentes sociais e psicólogos formaram a equipe tríade - responsável pela execução da política de permanência estudantil, sobretudo a partir da busca ativa escolar, onde o acolhimento é parte fundamental.

Nós que estamos na escola sabemos o quanto foi positivo a presença desses profissionais, e mais ainda dessa equipe. A queda nos índices da evasão escolar e uma melhor acolhida dos estudantes, sobretudo aqueles que estão passando por uma crise psíquica corrobora com essa tese.

Certamente houve casos de atenção. Afinal de contas é uma experiência recente. Mas creio que no geral as comunidades escolares são favoráveis a continuidade da equipe multiprofissional.

No entanto, surpreendentemente ficamos sabendo que a normativa de modulação para o ano letivo de 2025 não prevê a presença desses profissionais nas escolas de pequeno e médio porte. Essas escolas serão atendidas por profissionais lotados nas superintendências regionais de ensino. Ora, não precisa de muito raciocínio para saber que não será a mesma coisa. O que será um grande retrocesso.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Palavras sobre o documentário “Não é permitido - um recorte a censura ao punk rock no Brasil

“Nós sobrevivemos”.
Essa é a mensagem final do documentário “não é permitido” que apresenta um recorte da ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), mais especificamente acerca da censura promovida pelo regime contra artistas do movimento punk. Em tempos onde voltamos a flertar com o autoritarismo, compreender esse momento da nossa história é fundamental. Ainda mais por parte daqueles que estavam à margem da sociedade na periferia das grandes cidades.

O documentário é dirigido por um quarteto: Fernando Calderan, Fernando Luiz Bovo, Matheus de Moraes e Renan Negri. E como um disco punk temos uma narrativa breve (34min). E conta com a participação de ícones do gênero: Jão (Ratos de Porão), Mao (Garotos Podres), Clemente (Inocentes), Ariel (Invasores de Cérebro), Vlad (Ulster), Pierre e Val (Cólera). Que por meio de suas narrativas nos dão uma ideia do que enfrentaram, conseguindo no entanto perseverar sobre a censura e o regime.

Mas uma fala do Ariel ficou na minha cabeça - a de que a censura nunca acabou. E se formos analisarmos bem ele tem toda razão. É fato que não temos mais um departamento do governo dizendo o que pode e o que não pode em relação a expressões artísticas como a música. Mas é evidente que determinados artistas não têm o mesmo espaço que outros. Por exemplo, não veremos uma banda como Ratos de Porão tocando numa rádio comercial ou num programa dominical na tv aberta.

Isso vai na linha da crítica Marcuseana a sociedade contemporânea onde ele revela o caráter autoritário desta por meio da imposição (sem o uso da força) de uma racionalidade tecnológica criando “um universo verdadeiramente totalitário no qual sociedade e natureza, corpo e mente são mantidos num estado de permanente mobilização para a defesa desse universo".

Nesse contexto, uma arte libertária como o punk tem que ficar à margem. Pois o seu discurso não serve ao status quo. Pelo contrário. Como podemos perceber numa fala do Pierre quando ele fala sobre a sua transformação a partir do punk. 

Outra fala que me chamou atenção foi a do Jão (Guitarrista e membro fundador do Ratos de Porão) sobre as temáticas que as letras censuradas abordavam. Enquanto alguns artistas buscavam se expressar por meio de metáforas. Os punks colocavam o dedo na ferida. Com a fúria e agressividade do gênero. Um dos exemplos é a letra de Corrupção:

A corrupção está acabando com a Nação
E todo mundo está fingindo ser irmão
A sociedade pensa que nós somos vagabundos
E que só eles vão conquistar o mundo…

Da banda Inocentes uma das canções censuradas foi a icônica: miséria e fome:

É tão difícil viver entre a miséria e a fome
Senti-la na carne e ter que ficar parado, calado
É tão difícil entender como homens armados
Expulsam outros homens das terras em que
Eles nasceram e se criaram, que são deles
Por direito para lá plantarem nada, nada, nada…

Dos Garotos Podres, Johnny:

Mas um dia tudo terminou
Johnny foi preso
Extraditado pro Brasil
Aquele país que está na corda bamba
Que só tem carnaval, futebol e samba
Um país idiota
Cheio de moleque
Onde ainda se toca discoteque…

Falando em Garotos Podres, o Mao (seu vocalista) dá uma verdadeira aula do que foi e do que é uma ditadura: “A ditadura ela não apenas reprime e persegue opositores políticos mas tenta controlar o pensamento”. Pierre (Cólera) complementa: “Qualquer forma de ter uma ideia, um pensamento diferente daquilo que eles querem que seja feito” é objeto da censura. Jão, no entanto, diz algo interessante: “Para gente que é punk é bom ser censurado. Se não alguma coisa estaria errada. Você em plena ditadura fazendo música de protesto e não ti censurarem, né”. Ou seja, não eram jovens ingênuos. Eles sabiam exatamente o que queriam. Ou melhor. O que não queriam. E a partir daí ajudaram a moldar no nosso país uma cultura de resistência a partir da periferia que permanece viva.

O fato desses artistas não conseguirem o devido reconhecimento por parte do status quo é mais uma comprovação, de que apesar da mudança de regime, seu caráter autoritário prevalece. Não mais pelo uso da força. Mas pela introjeção de determinados valores que criam seres submissos.

Acesse e assista o documentário no link: https://youtu.be/EEJHRoy2gAo?si=I8U9syzveTKwhh_0

Pedro Ferreira Nunes - é apenas um rapaz latino-americano, que gosta de ler, escrever, correr e ouvir rock n roll.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Marcuse: Por uma Pedagogia Radical no Caminho de Construção de uma Educação para Emancipação

Na sua principal obra “O homem unidimensional” (1964) Marcuse nos chama atenção para um projeto político de dominação a partir de novas formas de controle que busca substituir a racionalidade humana por uma racionalidade tecnológica. Como parte da sociedade, a educação não está alheia a esse processo. Pelo contrário, torna-se um instrumento importante na naturalização de um pensamento unidimensional. A partir do pensamento de Marcuse, Douglas Kellner (2011), irá desenvolver a ideia de uma pedagogia radical como resistência a uma educação unidimensional. E é essa reflexão que serve de subsídio para as linhas a seguir. 

Comecemos já por afirmar nossa tese central, a de que Marcuse, a partir da sua teoria crítica nos dá uma importante contribuição para pensarmos uma educação para emancipação a partir de uma pedagogia radical. Primeiro ao chamar atenção para as consequências de uma educação unidimensional, que funciona a partir da substituição do negativo por uma consciência feliz. Tirando do indivíduo a capacidade crítica, tornando-o alheio aos problemas da comunidade. Segundo propondo a superação dessa educação por meio de uma pedagogia radical (bildung) que a partir de um movimento crítico reconstrua a racionalidade humana, em substituição a racionalidade tecnológica, caminhando em direção a possibilidades futuras.

Não sejamos ingênuos. O contexto atual nos deixa bastante pessimista quanto à possibilidade de uma mudança qualitativa tanto na esfera educacional como na sociedade em geral. O status quo conseguiu de tal forma controlar os indivíduos, sobretudo por meio do consumo, que parece impossível vislumbrar alguma ruptura. A não ser tutelada pela classe dominante. Dito isso, uma possibilidade de mudança na esfera educacional que restaure a racionalidade humana parece cada vez mais remota.

Olhando para o contexto brasileiro percebe-se que as mudanças do último período tem como fim transformar a educação pública em mercadoria. Marcuse (1964) já apontava para esse movimento nas sociedades desenvolvidas onde percebia uma contradição entre o aumento do acesso à educação por um lado, mas a perda de potencialidade por outro. Vemos esse movimento no contexto atual com a diminuição da carga-horária de componentes curriculares como Arte, Geografia, História, Filosofia e Sociologia em benefício de Projeto de Vida e eletivas de empreendedorismo. Tolhendo a criatividade e o pensamento crítico.

Ora, uma educação voltada para o atendimento dos interesses mercadológicos não necessita da crítica. Sobretudo porque em última análise a educação unidimensional é doutrinária. E sendo doutrinária não há espaço para o contraditório. Isso fica mais evidente quando analisamos os documentos orientadores que estabelece inclusive o que e como o professor deve desenvolver os objetos de conhecimento trabalhados em sala de aula.

A priori isso parece não ser nada nocivo. São “sugestões” para que o professor possa desenvolver na sala de aula de forma mais eficaz as competências e habilidades que estão sendo trabalhadas. Ele não precisa pesquisar nada. O objeto já vem determinado, as referências a ser utilizadas, os textos, os instrumentos a serem utilizados. É só pegar e aplicar. Mas quando o professor se torna apenas um replicador daquilo que é pensado por um técnico perde a sua capacidade de pensar. E a partir daí pode perfeitamente ser substituído por uma máquina.

Acreditamos que apesar dos limites é possível, e necessário, assumirmos uma pedagogia radical, que a partir de diferentes estratégias didáticas, em especial o papel da arte, restaure a razão crítica e a busca pela libertação política, no caminho de construção de uma educação para emancipação. Para tanto é necessário compreender criticamente as tendências em curso no campo educacional, seja no ensino superior ou na educação básica, e a partir daí podemos vislumbrarmos mudanças qualitativas.

Entender o nosso papel enquanto educadores, que somos os responsáveis por concretizar o currículo na sala de aula, é fundamental. É preciso compreender, e Marcuse salienta isso, o papel político no ato de educar. Nesse caso não se trata de doutrinação. Mas, a partir de diferentes estratégias didático-pedagógicas, pode-se instigar o pensamento crítico. Acreditando na linha do que diz o filósofo brasileiro Paulo Arantes (2023), de que enquanto houver pensamento crítico há possibilidade de que surjam cidadãos. Cidadãos de fato, ou seja, aqueles que lutam pelos seus direitos.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

O que a esquerda pode aprender com o seu Osmar ou sobre Gusttavo Lima candidato a presidente do Brasil

Acompanhei com certa tristeza as reações por parte de pessoas do campo da esquerda à declaração do cantor e empresário Gusttavo Lima sobre sua pretensão de se candidatar a presidente do Brasil no pleito vindouro. Reações que no geral mostram o nível de mediocridade que chegamos. Um vídeo do seu Osmar (personagem do humorista Evoney Fernandes) satirizando a declaração do artista mineiro foi a melhor reação que vi. O que me fez refletir que este personagem tem muito a ensinar à esquerda.

Na verdade, o vídeo do Evoney (Seu Osmar) me remeteu a banca de defesa da minha dissertação do Mestrado. Em que um dos arguidores, o Professor Dr° Roberto Rondon (Universidade Federal da Paraíba). Destacou que eu deveria ter explorado mais esse personagem citado no texto. Salientando se tratar de uma figura presente na cultura brasileira, tida como um bobo, mas que de bobo não tem nada. De fato eu havia citado esse personagem ao falar do objetivo para o desenvolvimento sustentável da Organização das Nações Unidas (Onu) - ODS 08 - Trabalho decente e crescimento econômico. Apenas para ilustrar uma situação. Não esperava, porém, que isso seria apontado como algo que se melhor explorado, enriqueceria minha dissertação.

Depois fiquei imaginando comigo que o Professor Rondon tinha toda razão. Imagina o quanto teria sido rico trabalhar alguns desses vídeos na sala de aula. Não tenho dúvida que conhecendo a popularidade do personagem, teria um grande engajamento dos estudantes.

A situação que ilustrei na dissertação com um vídeo do Seu Osmar é a mentalidade, muito presente no interior, de que o empregado é dependente do patrão e portanto deve suportar qualquer condição de trabalho sem reclamar. Pelo contrário, deve agradecer ao seu empregador pois sem este não terá emprego.

Isso é resquício do regime oligárquico que por muito tempo prevaleceu no Brasil - que Paulo Freire pontua bem no seu Educação como Prática da Liberdade (1967):

“Mesmo quando as relações humanas se façam, em certo aspecto, macias, de senhores para escravo, de nobre para plebeu, no grande domínio não há  diálogo. Há paternalismo…” (Freire, 2024).

Na situação retratada, Roberto (Hitalon Bastos) é contratado para fazer um serviço para o Seu Osmar (Evoney Fernandes). Quando termina o serviço vai cobrar o seu direito. Mas é enrolado por Seu Osmar que por meio de um discurso manipulador faz Roberto se sentir um ingrato - que sai com as mãos abanando. Há outras versões também dos dois personagens retratando essa situação, numa delas a descrição é: Recebi meu salário e ainda sai devendo.

Talvez não tenha sido a intenção do artista denunciar essa situação. Ainda que por sua origem não duvidamos que a inspiração para esses vídeos venha de situações vividas por ele ou observadas na realidade em que está inserida. E ao espelhar a realidade esses vídeos tornam-se poderosos instrumentos de reflexão. Quando isso é feito de forma cômica o seu alcance tende a ser maior. Ainda que para muitos fique apenas no aspecto cômico.

Já em relação ao vídeo em que Seu Osmar satiriza a declaração de Gusttavo Lima, temos o seguinte cenário: Ele aparece sem camisa, numa mesa de sinuca com um toca na mão e uma cerveja barata. Começa sua fala fazendo alusão ao Governo Bolsonaro (tempo das armas) e ao Governo Lula (tempo da picanha). Sem tomar partido de um e de outro declara que agora é a vez do povo dos botecos. E então diz ter sido convidado pelo Gusttavo Lima para ser seu vice-presidente. Ele diz que sua intenção era ser presidente, mas aceitará a vice -presidência.

Achei essa resposta magistral. Porque trata a situação como deveria ser tratada. Como uma piada. E diante de uma piada a melhor reação é o riso (a não ser que não a compreendemos). Evoney Fernandes compreendeu e por meio do Seu Osmar deu uma ótima resposta.

Enquanto isso, um montão de gente que se diz de esquerda fica perdendo energia discutindo se Gusttavo Lima é qualificado ou não para disputar a presidência. Quando na verdade deveria estar preocupado com o que fazer para barrar o retorno da extrema direita ao poder e aos ataques aos direitos da classe trabalhadora. Inclusive por parte de um governo que se diz progressista (Governo Lula).

Mas a esquerda parece não ter aprendido nada nos últimos anos. É incrível. Há uma onda de ressentimento que nos faz comportar como moralistas e punitivistas (Movimento Bolsonaro na Cadeia). Ou seja, nos tornamos aquilo que dizíamos combater. E ainda tem quem fique indignado quando o Safatle diz que a esquerda morreu - por não compreender que um dos motivos para essa morte é o afastamento do povo - representado bem na figura do seu Osmar - que tem por isso, muito a ensinar a esquerda.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Pública Estadual de Ensino do Tocantins. Graduado em Filosofia (UFT). Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (Unifaveni). E Mestre em Filosofia (UFT).