Como trabalhar o ensino de Filosofia na educação básica num contexto de mudanças na educação caracterizado pela redução do espaço das ciências humanas na grade curricular de ensino com a implantação do Novo Ensino Médio? Esse desafio se torna ainda maior quando trabalhamos numa escola (pública) periférica localizada no interior do Tocantins. Esse é o nosso caso – atuando no Colégio Estadual Nossa Senhora da Providência em Lajeado. Nesse contexto, acreditamos que é fundamental pensar o ensino de filosofia a partir de uma perspectiva filosófica. E foi isso que fizemos instigado pelas discussões proporcionadas pela disciplina Filosofia do Ensino de Filosofia do PROF-FILO.
A minha trajetória enquanto docente é um tanto recente. Me graduei em 2019 e comecei a atuar na educação básica em 2020. No entanto, com duas semanas de sala de aula fomos surpreendidos com a suspensão das aulas presenciais como medida necessária para contenção da pandemia de COVID-19. A partir daí tivemos que encarar durante dois anos o ensino remoto e híbrido - um período marcado por muita dificuldade na relação entre professor e aluno – a meu ver, fundamental no ensino de Filosofia. Fizemos o que foi possível, dentro das condições que tínhamos, para que o estudante pudesse minimamente manter o vínculo com a escola e não abrir mão de uma formação escolar. Em 2022, retornamos de forma 100% presencial, num contexto bastante desafiador. Do ponto de vista pessoal tinha a questão da minha pouca experiência de sala de aula. De outro lado, teríamos pela frente o início da implantação do Novo Ensino Médio e também o desafio de enfrentar o déficit de aprendizagem da pandemia – que certamente seria mais grave em português e Matemática, mas que afetaria no desenvolvimento do ensino de Filosofia.
Nesse contexto ter ingressado no Mestrado Profissional de Filosofia (PROF-FILO) foi muito importante pois me proporcionou a pensar minha prática docente enquanto professor de Filosofia. E a partir daí encontrar respostas para os desafios do cotidiano. Assim temos feito. E creio que o resultado tem sido positivo. A visão da comunidade escolar acerca do ensino de filosofia tem mudado – o engajamento dos estudantes nas aulas e o nosso espaço nos projetos também. A partir da nossa orientação três estudantes conseguiram um resultado de destaque num concurso nacional de redação com a temática dos direitos humanos e a questão do idoso na nossa sociedade – o que mostrou o potencial da filosofia para além das aulas desse componente curricular.
Aparentemente pode parecer que estou fugindo do proposito desse trabalho. Que é escrever um memorial da disciplina Filosofia do Ensino de Filosofia, destacando filósofas e filósofos que me chamaram atenção bem como as temáticas trabalhadas. Mas creio que não. Uma das questões fundamentais que as aulas me suscitaram foi pensar a minha prática docente. Daí creio ser fundamental fazer essa retomada da minha trajetória e dos desafios enfrentados como também dos avanços obtidos.
Outro ponto importante das aulas, sobretudo as trabalhadas pelo Professor Lucas Faustino, foi a retomada histórica da constituição do Ensino de Filosofia no Brasil e os seus desafios sobretudo a partir de 2014 onde vimos a ascensão da extrema direita ao poder. Desse modo, além de instigar uma reflexão acerca da nossa prática docente também nos levou a entender o Ensino de Filosofia como uma trincheira de resistência ao projeto de dominação - como diria os marcusianos, através da racionalidade tecnológica.
Como resistir a esse processo? Por meio do pensamento crítico. Desse modo, o ensino de Filosofia deve promover esse pensamento a partir de diferentes pensadores. E como isso se dá? O professor Lucas Faustino nos propôs pensar a Filosofia como um canteiro de obra. Na minha prática docente busquei utilizar o termo: laboratório experimental. Por que acredito que foi isso que fizemos ao longo de 2022 – transformamos a sala de aula num laboratório experimental onde observávamos o que funcionava ou não. E a partir daí buscávamos desenvolver os objetos de conhecimento divididos da seguinte forma:
No 1° bimestre a temática seria o conhecimento, trabalhando na 1ª série a filosofia antiga e medieval e na 2ª série a moderna e contemporânea. No 2° bimestre a temática seria a política, trabalhando na 1ª série a filosofia antiga e medieval e na 2ª série a moderna e contemporânea. No 3° bimestre a temática seria a ética, trabalhando na1ª série a filosofia antiga e medieval e na 2ª série a moderna e contemporânea. E por fim, no 4ª bimestre a temática seria a ciências, trabalhando na 1ª série a filosofia antiga e medieval e na 2ª série a moderna e contemporânea.
Observamos que a estratégia de definir um objeto de conhecimento por bimestre foi bastante acertada e nos permitiu aprofundá-lo mais. Isso foi ressaltado inclusive pelos estudantes que relataram a dificuldade em outros componentes curriculares onde se trabalha muito objetos de conhecimento de forma superficial. Nós sabemos que a filosofia abrange uma infinidade de objetos de conhecimento. Sendo impossível trabalhar todos em três anos do ensino médio com uma aula por semana (quando não tem um feriado, um recesso ou culminância de um projeto). De modo que o caminho que assumimos foi o de reconhecer essa impossibilidade e a partir daí fazer um recorte daquilo que acreditamos ser fundamental numa formação básica.
Na 3ª série do ensino médio pegamos um caminho diferente. Após uma aula de introdução a filosofia onde utilizamos o texto “Quem tem medo de Filosofia” do Valerio Rohden. Dividimos os estudantes em grupos e pedimos que eles discutissem e escolhessem três temáticas que eles gostariam de ver nas aulas de Filosofia. A partir daí todas as aulas de filosofia foram planejadas em cima das temáticas propostas pelos estudantes, entre essas temáticas destacamos: violência contra a mulher, direitos humanos, discriminação racial, desigualdade e liberdade.
Pensando o ensino de Filosofia como um canteiro de obras, o professor Lucas Faustino nos mostrou que precisamos seguir algumas etapas. Ora, quando você vai construir uma casa não começa do telhado, não é mesmo?! Aí que entra a questão da metodologia. Na minha prática docente assumi como metodologia a problematização. E aqui ressaltamos as aulas da Professora Solange Campos Costa, sobretudo acerca de uma pensadora que passou a fazer parte do meu hall de referências.
Antes de falar dessa pensadora é importante enfatizarmos o quanto a presença das mulheres é negligenciada no Ensino de Filosofia. Daí a importância de disciplinas que fazem esse resgate.
Nas aulas da professora Solange também compreendi o ensino de filosofia como resistência, mas a partir de uma perspectiva feminina. Todas as pensadoras que nos foi apresentada tem a sua relevância, mas confesso ter me simpatizado mais com a bell hooks. Ainda mais depois que a professora Solange nos mostrou a relação dela com o pensamento do Paulo Freire. Digo isso não pelo fato de que seria necessário existir essa relação, mas porque tenho um certo domínio da metodologia freiriana. E isso contribuiu para que houvesse da minha parte uma maior assimilação da perspectiva educacional proposta pela hooks.
Creio que essa pensadora foi fundamental para que eu pensasse nessa ideia da sala de aula como um laboratório experimental. Em uma das suas falas sobre a sala de aula bell hooks nos diz que mesmo com suas limitações, esse espaço está cheio de possibilidades. E nesse campo de possibilidades “temos a oportunidade de trabalhar para a liberdade”. Para tanto precisamos abrir a mente e o coração para podermos enfrentar a realidade – uma realidade muitas vezes intragável para quem mora no interior do interior do Brasil – para quem tem como horizonte terminar o ensino médio e vender sua força de trabalho num emprego precário.
Parece um tanto utópico falar em liberdade numa sociedade em que os indivíduos são forçados a se comportar e agir de determinada forma. Nesse sentido, vemos surgir componentes curriculares como o Projeto de Vida – que segue justamente numa perspectiva de formação acrítica - de preparar corpos doceis para o mercado de trabalho.
Mas é justamente nesse contexto que o ensino de Filosofia se impõe como resistência. E como prática da liberdade. Não podemos perder de vista essa questão. Para tanto devemos usar mão de diferentes possibilidades, mas sobretudo a leitura e a escrita, como meios para formação de uma consciência crítica.
Na nossa experiência em sala de aula avançamos muito nesse sentido. Inclusive no componente curricular de Projeto de Vida, onde buscamos fazer uma articulação com a filosofia trabalhando Paulo Freire, bell hooks, Platão, Espinoza, Sartre entre outros. Buscamos fugir das aulas meramente expositivas, ainda que tenham sido necessárias, sobretudo no momento de trabalhar os conceitos. E nesse sentido a escrita foi importante, porque percebi que eles tinham dificuldade em falar, em se expressar. E nos exercícios de escrita eles se soltavam mais sobretudo quando a questão era o conhecimento de si. Já em relação a leitura buscamos ir para além dos manuais e ler os próprios filósofos e filósofas. Também buscamos trabalhar obras literárias a partir de uma perspectiva filosófica como por exemplo o romance O cortiço do Aluízio Azevedo entre outros.
Enfim, acredito que mesmo num contexto adverso o ensino de Filosofia tem mostrado sua força. Aqueles que tentaram tirá-lo da grade curricular da educação básica acabaram contribuindo para que ocorresse o contrário. No entanto precisamos continuar atentos e com o espirito de bell hooks e tantos outros fazendo da sala de aula um espaço de possibilidade de formação para liberdade.
*Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. Atua como Professor da Educação Básica no CENSP-LAJEADO.