“Piranhas devoram o baú de lembranças/ nos quartos dos fundos dos casarões.../ Algumas paredes ruíram/ sobre os sonhos acalentados da infância...”.
Pedro Tierra
Quando assisti o filme pela primeira vez me lembro ter sido afetado sobretudo pelo recorte que a obra trás da ditadura Cívil-Militar. Creio que isso se deu pelo fato de ser esses um dos períodos da história do Brasil que mais me atrai. E da identificação que tive com o personagem Hermes (interpretado pelo Carlos Alberto Riccelli) – um militante contra o regime ditatorial – fugindo da perseguição política. Com o tempo o meu interesse pela obra não diminuiu e fui percebendo outras nuances.
A história do filme se desenvolve em torno da memória da personagem Ana Paula (vivido no presente pela atriz Beth Goulart e na adolescência por sua filha Vanessa Goulart). Com isso a narrativa é perpassada por dois tempos histórico: O presente e o passado. O presente é o ponto de partida quando Ana Paula retorna a uma propriedade rural da família localizada no município de Dois Córregos no interior paulista. E esse retorno a um lugar que marcou sua adolescência trará lembranças que lhe afetará profundamente. Então, somos levados ao passado, quando Ana Paula chega naquele lugar acompanhada da amiga Lydia (personagem de Luciana Brasil) para uns dias de descanso.
A presença dos militares na Estação da pequena Dois Córrego mostra o contexto histórico que estamos vivendo. O que ficará mais evidente através das lembranças do Hermes. Tendo os seus direitos políticos cassado, acaba sendo convencido por um amigo a ingressar na luta armada contra a ditadura Civil-Militar. Ele entra na clandestinidade e é obrigado a se afastar dos filhos. Fugindo da perseguição dos militares se refugia naquela propriedade rural que pertence a sua irmã. A lembranças das crianças e dos seus companheiros de luta o atormentam dia e noite. E ele não vê a hora de reencontrar os filhos de quem já não lembra dos rostos. Mesmo não concordando com as escolhas de vida do irmão, a mãe de Ana Paula, o deixa se refugiar ali. E ainda manda sua empregada para servi-ló.
Teresa (personagem de Ingra Lyberato) foi criada pela mãe de Ana Paula. É filha de uma ex-empregada que tivera um caso com Hermes. Tornou-se uma espécie de governanta da família por quem Ana Paula tem um grande carinho. Enquanto cuida do sítio durante a permanência de Hermes por ali. Acaba se envolvendo com um militar casado, com quem se encontra quando vai até a cidade buscar algum mantimento.
Esses personagens se encontram então nesse lugar. E apesar do pouco tempo que iram conviver no mesmo ambiente. Terão a vida marcada pelos acontecimentos. Focando sobretudo na personagem da Ana Paula percebemos ali um processo de passagem. De uma transição da adolescência para maioridade. Filha de uma mãe autoritária é a primeira viagem que ela faz sem a companhia dos pais. Nutre uma admiração pelo tio e encontra nele o carinho que não recebe da mãe. Ele num primeiro momento recua diante da semelhança física de Ana Paula com sua mãe, com quem nunca teve uma boa relação. Mas depois se aproxima. Em Lydia, Hermes recorda de um amor de outrara. Filha de militar Lydia está tendo possibilidade de viver uma experiência longe do olhar rígido do pai. Elas não sabem exatamente por que Hermes está se escondendo. Mas diante do contexto político do qual não estão alheias, suspeitam. Teresa por sua vez foi criada para servir. E serve a todos com muita satisfação. Vive uma relação frustrada com um homem que não a assume. Ela então se aproximará de Hermes. Ele também corresponderá e com isso vislumbraram construir uma vida juntos.
É interessante observar como a narrativa é construída e a riqueza de cada personagem. Indivíduos de diferentes origens, personalidade e história. Que na convivência do dia a dia vão construindo laços. Laços fundamentais para que sobrevivam numa realidade melancólica. Tão bem delineada pela trilha do Ivan Lins.
Quando tudo parece caminhar para uma certa direção. Tal como uma tragédia grega, acontece algo que muda o destino de todos. Ou melhor, que os trás de volta a realidade. Hermes a sua condição de fugitivo, Teresa de serviçal, Ana Paula e Lydia de filhas de uma família conservadora. Anos depois Ana Paula retorna aquele lugar e busca as reminiscências daquele tempo. Essas reminiscências mostra a ela o que é a vida – ou seja, verdades submersas no tempo.
Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. Atualmente atua como Professor da Educação Básica no CENSP-LAJEADO.
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