quinta-feira, 20 de abril de 2023

O filme Vazante e as relações de poder

Para nós que crescemos numa cultura ribeirinha, vazante é o nome dado as porções de terra onde o rio chega no período de cheia levando nutrientes que contribuirá para que se torne um local propício para o cultivo de plantação como milho, feijão, melancia, mandioca entre outros. Algo totalmente contrário ao ambiente retratado pela cineasta Daniela Thomas no longa-metragem Vazante 2017) – um recorte do Brasil Colônia.

O longa-metragem é mais uma obra-prima do cinema nacional, com uma fotografia belíssima e um bom elenco. Com destaques para atuação do ator português Adriano Carvalho no papel do tropeiro Antônio. E Toumani Kouyaté no papel de um escravo rebelde. Aliás esses personagens retratam bem a dinâmica da narrativa construida em torno de relações entre dominador e dominado. Ainda que essa não se restringe a questão da cor como podemos perceber na relação do Antônio com sua esposa Beatriz. 

A sinopse do filme é a seguinte: “Em 1821, no interior do Brasil, nas serras pedregosas das Minas Gerais, depois da economia local, que era baseada na extração de diamantes, ter entrado em colapso, Antônio, um patriarca do século XIX, que ao voltar de uma longa viagem conduzindo uma tropa de escravos descobre que sua mulher morreu em trabalho de parto”, se casa com a jovem Beatriz, que na ausência do marido, fica sozinha com os escravos. “Solidão, incomunicabilidade e preconceito levam a uma espiral de violência.”

 A priori o filme não é sobre Antônio e Beatriz – mas sobre um período da nossa história marcado pela condição desumana que os negros eram submetidos (regime escravocrata). Isso fica evidente já no início da obra quando escravos  acorrentados são conduzidos por um caminho inóspito rumo a fazenda comandada por Antônio. Como também ao longo do filme através das cenas que mostra a condição degradante que os escravos vivem na Fazenda. No entanto, parece que isso não foi tão recebido pela crítica que acusou inclusive, no seu lançamento em 2017, a Diretora Daniela Thomas de racismo. Pode ser ingenuidade da minha parte, mas assistindo o filme não vi nada disso que a crítica aponta.

No entanto me pareceu que o conflito psicológico dos personagens acaba se sobrepondo ao aspecto histórico – este acaba ficando como pano de fundo de uma discussão sobre dominação – uma dominação que se dá a partir de uma relação de força que é estabelecida entre os indivíduos. Lembrando assim a microfísica do poder de Foucault. 

De acordo com Foucault “o poder não é algo que se detém como uma coisa, como uma propriedade, que se possui ou não. Não existe de um lado os que têm o poder e de outro aqueles que se encontram dele apartados”. Para nosso filósofo “rigorosamente falando, o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder. O poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona.” Como isso se dá? De acordo com Foucault “onde há poder há resistência, não existe propriamente o lugar de resistência, mas pontos móveis e transitórios que também se distribuem por toda a estrutura social. A guerra é luta, afrontamento, relação de força, situação estratégica. Não é um lugar que se ocupa, nem um objeto que se possui. Ele se exerce, se disputa. Nessa disputa ou se ganha ou se perde.”

Em vazante não há vencedores. Sobretudo por que a disputa não leva a outro paradigma – onde as relações de poder são estabelecidas a partir de uma ótica diferente. O que há é uma espécie de vazão de ódio que leva a eliminação do outro. Culminando assim numa tragédia. Talvez ai esteja uma justificativa para o nome do filme – a ideia de vazante como algo que sai do controle. Essa ideia de controle vem da ilusão de que possuímos o poder, mas lembrando de Foucault – o poder não é algo que se possui – é o que Antônio irá descobrir da pior forma possível. 

Nesse sentido a mensagem do filme parece caminhar para a ideia de que num contexto onde prevalece relações de dominação de um indivíduo sobre  o outro não há perspectiva para paz. Pelo contrário, caminha-se para um desfecho trágico. 

Enfim, vale a pena ver o filme. Além dos problemas filosóficos que a obra suscita, da questão histórica e outros elementos. Cabe destacar a beleza estética – a fotografia, a atuação do elenco – muito mais através de gestos, olhares ou de um suspiro. E o ritmo – um ritmo lento mas que não deixa de segurar o espectador pela dinâmica dos acontecimentos que vão sendo costurados de uma forma que a gente sabe que vai desembocar em algo e assim ficamos amarrados para saber o quê e como será. 

Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos.

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