segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Byung-Chul Han e a Sociedade do Desempenho

“Hoje o indivíduo se explora e acha que isso é realização”. Essa frase é do Filósofo Sul-Coreano Byung-Chul Han, autor de obras como “Sociedade do Cansaço”, “Morte e alteridade”, “O que é poder?” entre outros. A frase em questão pode ser melhor compreendida a partir da leitura do seu texto intitulado de “Sociedade do Esgotamento” – onde ele afirma que a Sociedade da Disciplina apontada por Foucault se tornou primordialmente uma sociedade do Desempenho.

Como isso se deu? Antes de responder essa pergunta precisamos compreender o que seria a Sociedade Disciplinar. Para responder precisamos recorrer ao filósofo francês Michel Foucault. Mais especificamente a sua obra “Vigiar e Punir” (1975) – onde ele analisa o surgimento das prisões. Chegando a conclusão que a sociedade moderna inaugura novas formas de disciplinar o indivíduo – não mais utilizando o suplício característico do período anterior. Até por que o novo modo de produção precisa de corpos produtivos – corpos dóceis – por meio de um aparato disciplinar onde a estrutura panóptica permite um estado de vigilância contínuo. Essa lógica está presente em toda a sociedade – nas escolas por exemplo através da imposição de toda uma rotina por meio de um regimento escolar que determina horários, formas de se vestir e comportar. E caso aja alguma transgressão vem a punição. Ou seja, a lógica do vigiar e punir – que tornou-se até mais eficaz com os aparelhos eletrônicos de monitoramento.

Han por sua vez vê uma mudança de paradigma. Para esse filósofo não estamos mais numa sociedade onde a disciplina é o fator primordial, mas o desempenho. Óbvio que para alcançar determinado objetivo é necessário disciplina. Porém essa não é mais imposta por um fator interno, mas assimilada pelo próprio indivíduo como algo necessário para alcançar uma meta.

“A sociedade de hoje não é mais primordialmente uma sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho, que está cada vez mais se desvinculando da negatividade das proibições e se organizando como sociedade da liberdade” (2017, p. 79).

Enquanto na sociedade disciplinar não há liberdade. E são imposta aos indivíduos uma série de “tu não deves” – proibições. Na sociedade do desempenho o sentimento é de liberdade.

Marcuse já apontava para esse fato ao analisar a ideologia da sociedade industrial e a construção do homem unidimensional. Para o filósofo Frankfurtiano, os indivíduos acreditam ser livres para fazer escolhas quando não são. Ele ressalta a introjeção de valores que faz com que os indivíduos auto se explorem. Por isso, ele não fala mais em alienação, mas em autoalienação. Marcuse chegará a conclusão de que sob um manto de liberdade, a sociedade atual é tão autoritária como a anterior.

Retornemos a Han. Para esse filósofo o sujeito atual tem como lema: liberdade e boa vontade. Desse modo ele não se submete a um trabalho obrigatório. E nem se move a partir de deveres ou da relação com o coletivo. “Ele ouve a si mesmo. Deve ser um empreendedor de si mesmo. Assim ele se desvincula da negatividade das ordens do outro”. Conseguindo assim emancipar-se e libertar-se do outro. 

Nosso filósofo aponta porém que essa “dialética misteriosa da liberdade transforma essa liberdade em novas coações” (2017, p. 83). O ponto chave desse processo é a transformação do indivíduo no seu próprio algoz. Ele coage a si mesmo a ter um determinado desempenho – forçando-se a produzir cada vez mais sem já mais alcançar um ponto de repouso da gratificação. Pois essa se dá na relação com o outro. Assim “vive constantemente num sentimento de carência e culpa” (2017, p. 87). O que leva-o a um estado de adoecimento mental.

Para Han (2017) o sujeito do desempenho só se realiza na morte. Ou seja, a sua realização é a autodestruição:

“O sujeito do desempenho esgotado, depressivo está, de certo modo, desgastado consigo mesmo. Está cansado, esgotado de si mesmo, de lutar consigo mesmo. Totalmente incapaz de sair de si, estar lá fora, de confiar no outro, no mundo, fica se remoendo, o que paradoxalmente acaba levando a autoerosão e ao esvaziamento” (2017, p. 91).

As palavras de Han bate forte como um soco no estômago. Elas nos mostra um fato que está aí mas que, submersos nesse contexto, nos negamos a ver. E não é fácil mesmo. Há todo um aparato tecnológico (o mundo digital) desempenhando um papel central nesse sentido. Logo as perspectivas de mudanças não são animadoras. Mas pensando dialeticamente não podemos dizer que é impossível. Ainda que o horizonte nos parece cada vez menos animador. 

Pedro Ferreira Nunes – Professor da Educação Básica. Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. 

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Juvenal Savian Filho: Somos ou estamos na Natureza?

O modo como nos relacionamos com a Natureza tem a ver com a nossa visão acerca dela. É a reflexão que nos propõe o filósofo Juvenal Savian Filho ao abordar essa questão no seu livro “Filosofia e filosofias – existências e sentindos”. Nessa obra ele nos aponta duas visões que foi se formando ao longo da história: uma que parte da ideia da Natureza como uma máquina e a outra como um organismo vivo. Nas linhas a seguir vamos conhecer melhor essas visões e refletir sobre as suas consequências. 

O primeiro aspecto para o qual Savian Filho (2018) chama atenção é a de que ao mesmo tempo  que nos colocamos entre os demais animais, nos destacamos do seu conjunto. Isto é, “tomamos o ser humano como parte da Natureza e marcamos sua diferença em meio ao conjunto”. Somos um animal, mas um animal que tem sentimento e pensa. Nosso autor ressalta porém que “há um risco em descolar os seres humanos do grupo dos outros seres, o risco de encararmos a Natureza como uma casa que é nossa, mas da qual não nos sentimos realmente membros” (2018, p. 230). 

Por outro lado há aqueles que defendem uma integração total a natureza, voltando a um estado primitivo. Para Savian Filho (2018) é preciso buscar uma síntese entre essas duas posições. Levando em consideração a crise ambiental e suas consequências para o planeta terra e aos que aqui vivem.

Na contemporaneidade, a questão ambiental vem sensibilizando e mobilizando parte significativa da população, sobretudo a juventude. Mas ainda é muito forte a visão da Natureza como uma máquina.  Isto é,  como algo que está a nosso serviço, que quando sofre algum problema pode ser consertado. 

Savian Filho (2018) salienta que a ideia da Natureza como máquina surgiu do seu funcionamento mecânico e independente. A partir daí filósofos e cientistas passaram a pensar que as próprias leis da Natureza eram matemáticas, utilizando inclusive como metáfora a dinâmica de um relógio. Entre os pensadores que consagraram essa metáfora destacam-se: Galileu Galilei, Johannes Kepler e René Descartes.

Com a revolução industrial, no século XVIII, temos uma imposição dessa visão mecanicista acerca da Natureza. Podemos então afirmar que ela caminha em consonância com o modo de produção capitalista. 

Savian Filho (2018) salienta que a perspectiva mecanicista gerou importantes avanços, proporcionando uma melhor qualidade de vida para população, por outro lado os problemas ecológicos decorrente desse modelo não podem ser negados, levando a uma crise climática que tem se agravado cada vez mais diante da inércia dos Governos.

Em contra partida a visão mecanicista temos a ideia da Natureza como um organismo vivo. Desse modo, quando destruímos a Natureza, estamos destruindo a nós mesmos. Pensadores como Leonardo da Vinci, Friedrich Schelling e Alfred North Whintead, são alguns dos que defendem essa visão que tem ganhado bastante força na contemporaneidade, sobretudo a partir do movimento ambientalista e da luta dos povos originários. 

Porém o modelo mecaniscita permanece como hegemônico, sobretudo por que de acordo com o nosso autor (2018) há interesses comerciais que o sustenta. Isto é, há toda uma economia que opera a partir dessa lógica de desenvolvimento que enxerga a Natureza como um objeto que nos fornece recursos ilimitadamente.

Savian Filho (2018) salienta que do ponto de vista da Filosofia, não cabe a defesa de uma ou de outra visão acerca da Natureza. Mas analisar as razões que as fundamentam. Porém, na minha perspectiva, ao fazermos essa análise certamente não ficaremos numa postura neutra.

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. Atua como Professor da Educação Básica no CENSP-LAJEADO.

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Resenha: Era uma vez... na Barra da Aroeira

Para quem nasceu no sertão tocantinense ou nas barrancas do Rio Tocantins, uma das lembranças da infância era quando sentavamos ao redor de uma lamparina para ouvir os mais velhos contar estórias de troncoso ou dos tempos da caroxinha. Eram contos da tradição oral que iam sendo passadas de geração em geração – que nos encantava e alimentava nossas mentes de crianças. Uma mostra dessa tradição pode ser conferido no livro Era uma vez... na Barra da Aroeira, organizado por Irma Galhardo.

Publicado em 2022, a obra trás uma coletânea de contos tradicionais da Comunidade Quilombola da Barra da Aroeira, localizado no territorio do Estado do Tocantins. São contos oriundos da cultura oral que perpassa pelo mundo fantástico, o enfrentamento de desafios, a superação de dificuldades, lições morais entre outros. E partir do trabalho de lapidação da Irma Galhardo, referência literária no Tocantins, podemos dizer que estamos diante de um clássico – que inclusive foi contemplada com o Prêmio Aldir Blanc Tocantins. 

Na apresentação do livro, Amanda Fernandes – Doutora em Letras pela USP. Chama atenção para o fato dos 13 contos presente na coletânea terem como porta voz – mulheres. Diante disso ela afirma que “as mulheres, cuidadoras ancestrais da infância,  são as grandes guardiãs dos contos tradicionais” (2022, p. 15). Lembrando da minha infância isso de fato se confirma. Geralmente quem nos contava essas estórias eram mulheres – minha avó Jovelina, minha mãe Maria Lúcia, Dona Caetana e Dona Júlia.

Ao final da obra a gente pode conhecer visualmente essas guardiãs dos contos tradicionais do Barra da Aroeira – Diolina Fernandes Rodrigues, Erminia Rodrigues, Andressa Rodrigues e Salviana Rodrigues. 

Já a organizadora da obra dispensa maiores apresentações. Como já dissemos, é uma referência literária no Tocantins. Já tendo publicado diversas obras entre elas o clássico Epopéia Tocantinense. Ela é também Mestre em Literatura pela UFT e em Cultura Popular pelo Ministério da Cultura. Além de ser uma divulgadora da literatura tocantinense por meio do Projeto Tocantins Poético e Lendário. 

A capa do livro de autoria do Danilo Itty merece uma menção especial – um belo desenho que mostra a beleza afro. O livro também conta com um pequeno glossário e um texto da Professora Maria Aparecida de Oliveira Lopes – da Universidade Federal do Sul da Bahia – que nos situa a Comunidade Quilombola Barra da Aroeira.

A leitura vale pela obra completa, mas para destacar um que me lembrou um personagem icônico da literatura brasileira – João Grilo do Auto da Compadecida, destacaria O rei e o esperto, narrado pela Andressa Rodrigues. A estória narra o desafio que o rei impõe a um jovem apaixonado que quer se casar com sua bela filha. Nessa narrativa encontramos o exemplo da inteligência do povo para superar os obstáculos. Já no O rico e o pobre, narrado pela Diolina Fernandes Rodrigues, temos uma lição moral típico das grandes fábulas, ou seja, uma lição de onde a ambição pode nos levar e a mensagem de que a maldade que fazemos com o outro pode se voltar contra nós. 

Além de já ter lido a obra. Também trabalhei a mesma com estudantes dos anos finais do Ensino Fundamental. E a reação deles durante a leitura me surpreendeu. Eu tinha consciência da importância da obra, por isso da escolha em trabalha-la. Mas não tinha noção da potência. E foi o envolvimento dos estudantes que me mostrou isso.

Diante dessa experiência não só recomendo a leitura do mesmo, como também recomendo a utilização do livro em aulas diversas – arte, literatura, história, geografia e projeto de vida. Tanto no Ensino Fundamental como no Ensino Médio. 

Por Pedro Ferreira Nunes – Professor da Educação Básica. Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. 

domingo, 15 de outubro de 2023

Conto: Dois espíritos livres numa madrugada

Eu sei que houve um tempo em que tu e eu
Fomos dois pássaros loucos
Voámos pelas ruas que fizemos céu
Somos a pele um do outro...

Pedro Abrunhosa

Estávamos ali na frente um do outro – tomando cerveja e conversando alegremente. Quem diria que há poucos dias eu havia dito a ela que precisaria me afastar. E jurado para mim mesmo que não iria mais procura-la. 

É. Se afastar, e até mesmo bloquear, alguém é fácil quando estamos no mundo virtual. Mas no mundo real a coisa muda de figura. Ainda mais quando se mora numa cidade pequena, e para piorar, se trabalha no mesmo local. 

Não tinha jeito, precisávamos conviver. - Como será essa convivência depois de tudo que dissemos? Pensava comigo. A ideia era agir profissionalmente. De modo algum misturar questões pessoais com questões profissionais. 

Quando nos encontramos no trabalho busquei agir da melhor forma possível. Mostrando para ela que não precisaria se preocupar. Mas internamente eu estava destroçado. Seria muito difícil superar aquela paixão convivendo com ela todos os dias. Fazer o que? Pedir um afastamento do trabalho ou cortar os pulsos estava fora de cogitação. O remédio é meter a cara no trabalho. Até por que os relatórios não se fazem sozinhos.

Ela agia normalmente – como se nada houvesse acontecido. – Quanta maturidade. Pensava comigo. Não sei por que. Me fez lembrar de Capitu.

Se a minha ideia era evitar conversar assuntos não relacionados ao trabalho. Ela fez questão de me lembrar de umas promessas que eu havia feito no âmbito pessoal. O que me desconcertou e me desarmou totalmente. Pensei no quanto estava sendo imaturo. Se não nutríamos o mesmo sentimento um pelo outro, não era motivo para agir assim. Ora, nos privar da companhia um do outro naquele lugar onde espíritos livres como nós eram raros, não era muito inteligente.

E foi a partir desses questionamentos que chegamos aonde estávamos. Sentados na sala da casa dela, tomando cerveja e conversando alegremente. Eu gostava de estar com ela – me sentia tão a vontade. Até parecia que nos conhecíamos há séculos. Ela também gostava da minha companhia. Dizia que comigo conversava horas e horas, e não faltava assunto. 

Não era a primeira vez que nos encontrávamos em sua casa para tomar cerveja e conversar até alta madrugada. No entanto naquela noite havia algo diferente. Ela estava sob uma áurea de leveza e felicidade. Eu não nutria nenhuma esperança de que teríamos algo mais do que uma ótima conversa. E para mim, tudo bem.

Conversávamos sobre tudo. De Fato nunca faltava assunto entre a gente. De repente começamos a conversar sobre dança. Ela confessou que as vezes ficava dançando sozinha enquanto cuidava de afazeres domésticos. Daí ela me perguntou se eu sabia dançar. Respondi que enganava bem. E o assunto então foi encerrado com nós dois arriscando um forró agarradinho.

O tempo parecia voar quando estávamos juntos. Já era alta madrugada. A cerveja acabara e naquele horário não encontraríamos nada aberto para comprar mais. Mas já estava ótimo. Tudo tinha sido maravilhoso, tomamos todas, conversamos e até dançamos forró agarradinho – coisa que nunca tínhamos feito. Era hora deu ir para casa.

Ela propôs ficarmos mais um pouco. Tinha uma cachaça com murici. Propôs um jogo de palito. Quem perdesse tomava uma dose. Sorri da ideia. – Se eu tomar isso não vou conseguir chegar em casa. Mas vamos tentar.

Como não haviam palitos improvisamos com macarrão palito. Ali percebi por que nos dávamos tão bem, por que gostávamos da companhia um do outro. Éramos dois pássaros loucos. Bem distante do que aparentávamos ser no trabalho. 

Ganhei a primeira, ela teve que beber a dose. E assim o fez. Ganhei também a segunda. Ela bebeu novamente. Eu estava com sorte. Então decidi arriscar. Já que estávamos livres, leves e soltos. – Se eu ganhar a próxima quero um beijo na boca. Para minha surpresa ela não recusou. – Agora que vale um beijo vou perder. Disse sorrindo. Mas não é que ganhei!

– Um beijo, né?! Agora? Ela perguntou. E eu respondi afirmativamente. Ela então se levantou e veio até mim, que continuei sentado. Ela então aproximou o rosto do meu para me dar o prêmio e eu recebi. E que prêmio. Achava que seria um beijo para cumprir tabela. Mas foi um beijo com paixão. Pronto o mundo podia acabar naquele momento que eu estaria feliz.

Continuamos a disputa e a minha sorte parece que foi roubada com o beijo. Ela então ganhou a primeira. Tive que tomar a dose de cachaça. Perdi novamente. Outra dose de cachaça. – Desse jeito não chego em casa. Comentei. Ela deve ter ficado com pena. Disse que se ganhasse a próxima eu deveria beijar a sua nuca de um jeito especial. Pronto, agora eu não fazia nenhuma questão de ganhar. Seria um prazer. Perdi novamente, agora era hora de lhe dar o prêmio. 

Levantei e fui até ela – que continuou sentada. Segurei-a levemente pelos ombros e encostei meus lábios na sua nuca. Enquanto a beijava sentia sua respiração. Para finalizar dei umas leves mordidas o que a fez respirar profundamente.

Estávamos nos divertindo como duas crianças (sem a inocência). Riamos, riamos tanto e tão alto que comentei com ela que os vizinhos iam pensar que estávamos loucos. Falar em vizinhos pelo avançar da hora logo o sol nasceria e toda a cidade despertaria. 

Tudo estava perfeito mas era hora de ir para casa. Sei que se continuássemos com o jogo poderíamos terminar na cama. Mas alcoolizados como estávamos não seria legal. 

Então nos despedimos – nos abraçamos, eu a agradeci pela noite inesquecível. Ela também me agradeceu, por tudo. Nos beijamos mais uma vez. Agora de forma breve. E prometemos nos encontrar logo, logo. No entanto, quando voltava para casa, numa esquina, um tiro... aquela seria a última vez que nos veríamos. 

Por Pedro Ferreira Nunes – É Poeta, Escritor e Educador Popular

terça-feira, 10 de outubro de 2023

A Construção do Projeto Político Pedagógico da Escola

Como o documento norteador da unidade escolar, o Projeto Político Pedagógico (PPP) não pode deixar de refletir a realidade da comunidade escolar. Para tanto ele deve ser construído por muitas mãos. E aqui está o desafio – envolver todos os membros da comunidade escolar na sua construção. Não é algo simples, pois si tem a ideia de que é uma coisa burocrática que não vai refletir na sala de aula e nas ações e projetos desenvolvidos pela escola.

Como o próprio nome diz, o PPP é o documento onde a comunidade escolar explícita a sua linha política e pedagógica. Essa deve ser precedida de um breve histórico da escola bem como do território que ela está inserida. Da construção do perfil da comunidade escolar e de uma análise dos dados da aprendizagem, incluindo o fluxo – aprovação, reprovação, evasão e abandono. Também é necessário descrever as condições estruturais, o quadro de pessoal bem como toda a rotina escolar. É a partir dessa estrutura que emergirá as opções políticas e pedagógicas da comunidade escolar – isso se o documento tiver a participação efetiva dessa no seu processo de construção. 

Nesse contexto é importante ressaltar alguns aspectos. O primeiro é que se trata de um documento construído a partir de uma metodologia cientifica. Segundo, segue as orientações e normativas vigentes. Desse modo, não estamos falando de um documento elaborado de qualquer forma. Tal cuidado se dá sobretudo para que se evite ações e projetos que não estão em consonância com aquilo que o PPP aponta. Ou seja, fora da realidade da comunidade escolar.

É esse cuidado que devemos ter ao elaborar o plano de ação do PPP, que será executado anualmente. Esse plano de ação deve ser uma resposta aos desafios, apontados na análise feita no documento, e dos objetivos traçados a partir daí. 

É aqui que geralmente, sobretudo quem está na sala de aula, sente a importância do PPP. Ou seja, no momento de transpor para prática o que está escrito no documento. Se o que está escrito no documento não reflete a realidade, esse processo se torna algo praticamente impossível.

Nesse momento surge reclamações de que as coisas são impostas de cima para baixo. No entanto, durante o processo de elaboração, grande parte desses não deu a importância devida. 

Por outro lado há de se questionar também até que ponto a gestão da escola criou as condições para essa participação efetiva. Pois de nada adianta convocar a comunidade escolar para contribuir na construção e revisão do PPP (atendendo exigências burocráticas), sem criar as condições para tal.

Outro fator que interfere nesse processo é deixar de fora da sistematização do documento as contribuições do coletivo. Fazendo com que se perca o interesse nesse processo. Há também a falta de identidade de determinados servidores com a unidade escolar – estão ali apenas para dar suas aulas – cumprir a carga-horária. 

Tomei conhecimento da existência de um projeto político pedagógico na escola durante a faculdade. Tendo como um dos exercícios do estágio estudar o PPP da unidade escolar onde estava estagiando (Colégio Estadual Nossa Senhora da Providência). Foi uma atividade muito significativa que depois me ajudou na adaptação quando me tornei professor dessa mesma escola.

Desde então tenho contribuído na revisão anual do PPP e feito um esforço para que o mesmo seja um reflexo da comunidade escolar. Também temos buscado envolver o máximo de mãos possíveis nesse processo criando mecanismos de participação na sua elaboração. De modo que não tenho receio em afirma que o documento atual reflete a comunidade escolar.

Óbvio que ainda é necessário avançar bastante no que consiste uma maior apropriação do PPP por parte de toda comunidade escolar. E um envolvimento mais efetivo nas discussões e deliberações durante o processo de elaboração. No entanto,  podemos dizer que hoje se trata de um documento acessível a toda a comunidade escolar (inclusive virtualmente). Além de está sempre em pauta nas reuniões de alinhamento pedagógico-administrativo e nas formações continuadas. Ou seja, conseguimos mudar a cultura de um PPP visto apenas como algo que diz respeito a Coordenação Pedagógica que depois de elaborado tem como destino o fundo de um armário ou uma pasta num computador.

Como isso foi possível? Por meio de ações contínuas que pauta o PPP. O desenvolvimento e aplicação de instrumentais que promova a escuta, o desenvolvimento de metodologias que permite uma apropriação maior do documento e, sobretudo, mostrando nas reuniões estratégicas a relação do cotidiano escolar com o que está no documento. Ou seja, se estamos avançando ou retrocedendo, se dá em grande medida pela capacidade de execução do que foi planejado. 

Nesse sentido cabe destacar a contribuição do Professor Celso Vasconcellos acerca do planejamento. De acordo com este autor: “planejar é antecipar ações para atingir certos objetivos, que vêm de necessidades criadas por uma determinada realidade, e, sobretudo, agir de acordo com essas ideias antecipadas”. É justamente isso que fazemos com o PPP. Ou seja, o PPP é o nosso planejamento macro. Logo, se os objetivos estabelecido pela unidade escolar não está sendo atingido, há que se questionar como que se deu esse planejamento  (a construção do PPP). Sob quais bases e daí por diante.

Enfim, esse é um desafio permanente – a construção de um Projeto Político Pedagógico pela comunidade escolar. Esse é inclusive um dos elementos de uma gestão verdadeiramente democrática. Eu diria, para polemizar, que até mais do que a eleição de um diretor ou diretora para comandar a gestão da unidade escolar. Quando a comunidade escolar se atentar para isso perceberam que tem mais poder na efetivação de uma educação consequente do que imaginam. Mas entendo que é mais fácil culpar o sistema de ensino por tudo. Assim, justificamos para nós mesmos a nossa mediocridade.

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. 


quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Resenha: Documentário “Filhos do Rio Tocantins”

E se amanhã não tivesse mais o rio? É com uma pergunta mais ou menos assim que encerra o documentário “Filhos do Rio Tocantins”. A resposta que sintetiza as demais é mais ou menos assim:  - seria como quebrar nossas pernas. Façam esse exercício também: Como seria se do dia para noite lhe tirassem a sua fonte de subsistência e existência?

O documentário “Filhos do Rio Tocantins” (2022), produzido por Lucas Sales Reges, retrata a relação dos pescadores de Praia Norte – município tocantinense – localizado na região do Bico do Papagaio – com o Rio Tocantins. Através da câmera de um aparelho celular, somos levados a conhecer o cotidiano de pessoas que tem o rio como sua fonte de sobrevivência – seja por meio da pesca ou transportando turistas no verão tocantinense. Num ambiente majoritariamente masculino, uma voz feminina se destaca – a da Presidenta da Colônia de Pescadores do município – Enilcilene Cardoso.

A partir dessa personagem outro aspecto não menos importante que o filme mostra é a organização coletiva – fundamental para que eles se coloquem como agentes políticos, no sentido aristotélico do termo, em defesa das suas demandas e consequentemente da comunidade. Pois, apesar da baixa escolaridade, eles mostram ter consciência de que uma melhor qualidade de vida passa pela preservação do Rio Tocantins. E fazer isso coletivamente é mais eficaz do que cada um individualmente. 

Daí a importância da organização na Colônia de Pescadores. “A finalidade da organização é despertar e juntar a parte do povo que se dispõe a entrar no processo de luta, organizar uma base social, elevar seu nivel de consciência e mobilizar o conjunto da classe visando alcançar seus objetivos imediatos e interesses históricos” (Peloso, 2012, p. 57).  Ou seja, quando um determinado grupo se organiza em defesa dos seus direitos acaba se tornando exemplo para que outros também o faça. 

Um momento marcante no documentário é quando eles se reúnem para decidir o preço da tarifa a ser cobrado durante a temporada de praia bem como a organização para construção do pier que facilitará o embarque e desembarque de passageiros. Percebemos aí o exercício democrático no processo de tomada de decisões do grupo. Nesse processo o conflito faz parte, e diria que necessário. Mas desde que não leve a ruptura. E sim na busca por consensos. Quando este não é possível, prevalece a maioria.

Todos nas suas falas ressaltam a importância desse período para melhoria de suas rendas e da economia local. Sobretudo em relação ao período de incerteza em que dependem da pesca artesanal – ou seja, quase o ano todo. Ressaltando o período de piracema – em que devem respeitar a reprodução dos peixes.

Percebemos que não é uma rotina fácil. Acordar cedo, ficar dias longe da família, enfrentar perigos, ter que lhe dar com a imprevisibilidade – ou seja, tem dia que você pega o pescado e tem dia que você não pega. No entanto percebemos uma certa paixão deles por aquela vida. São homens experientes – que inclusive herdaram isso dos pais. E não demonstram arrependimento. Pelo contrário, diante do questionamento do que fariam se não tivesse o rio é como se alguém lhes tirasse o chão. 

Enfim, o documentário Filhos do Rio Tocantins não é o primeiro a abordar essa temática e mostrar a importância do rio  (da natureza, na verdade) como fonte de sobrevivência para muitas famílias. O que não faz desse trabalho um trabalho menos necessário. Pelo contrário. Precisamos cada vez mais chamar atenção da sociedade e sensibiliza-la para importância de um desenvolvimento sustentável. Nesse sentido outras produções como essa são fundamentais. 

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos.