domingo, 15 de outubro de 2023

Conto: Dois espíritos livres numa madrugada

Eu sei que houve um tempo em que tu e eu
Fomos dois pássaros loucos
Voámos pelas ruas que fizemos céu
Somos a pele um do outro...

Pedro Abrunhosa

Estávamos ali na frente um do outro – tomando cerveja e conversando alegremente. Quem diria que há poucos dias eu havia dito a ela que precisaria me afastar. E jurado para mim mesmo que não iria mais procura-la. 

É. Se afastar, e até mesmo bloquear, alguém é fácil quando estamos no mundo virtual. Mas no mundo real a coisa muda de figura. Ainda mais quando se mora numa cidade pequena, e para piorar, se trabalha no mesmo local. 

Não tinha jeito, precisávamos conviver. - Como será essa convivência depois de tudo que dissemos? Pensava comigo. A ideia era agir profissionalmente. De modo algum misturar questões pessoais com questões profissionais. 

Quando nos encontramos no trabalho busquei agir da melhor forma possível. Mostrando para ela que não precisaria se preocupar. Mas internamente eu estava destroçado. Seria muito difícil superar aquela paixão convivendo com ela todos os dias. Fazer o que? Pedir um afastamento do trabalho ou cortar os pulsos estava fora de cogitação. O remédio é meter a cara no trabalho. Até por que os relatórios não se fazem sozinhos.

Ela agia normalmente – como se nada houvesse acontecido. – Quanta maturidade. Pensava comigo. Não sei por que. Me fez lembrar de Capitu.

Se a minha ideia era evitar conversar assuntos não relacionados ao trabalho. Ela fez questão de me lembrar de umas promessas que eu havia feito no âmbito pessoal. O que me desconcertou e me desarmou totalmente. Pensei no quanto estava sendo imaturo. Se não nutríamos o mesmo sentimento um pelo outro, não era motivo para agir assim. Ora, nos privar da companhia um do outro naquele lugar onde espíritos livres como nós eram raros, não era muito inteligente.

E foi a partir desses questionamentos que chegamos aonde estávamos. Sentados na sala da casa dela, tomando cerveja e conversando alegremente. Eu gostava de estar com ela – me sentia tão a vontade. Até parecia que nos conhecíamos há séculos. Ela também gostava da minha companhia. Dizia que comigo conversava horas e horas, e não faltava assunto. 

Não era a primeira vez que nos encontrávamos em sua casa para tomar cerveja e conversar até alta madrugada. No entanto naquela noite havia algo diferente. Ela estava sob uma áurea de leveza e felicidade. Eu não nutria nenhuma esperança de que teríamos algo mais do que uma ótima conversa. E para mim, tudo bem.

Conversávamos sobre tudo. De Fato nunca faltava assunto entre a gente. De repente começamos a conversar sobre dança. Ela confessou que as vezes ficava dançando sozinha enquanto cuidava de afazeres domésticos. Daí ela me perguntou se eu sabia dançar. Respondi que enganava bem. E o assunto então foi encerrado com nós dois arriscando um forró agarradinho.

O tempo parecia voar quando estávamos juntos. Já era alta madrugada. A cerveja acabara e naquele horário não encontraríamos nada aberto para comprar mais. Mas já estava ótimo. Tudo tinha sido maravilhoso, tomamos todas, conversamos e até dançamos forró agarradinho – coisa que nunca tínhamos feito. Era hora deu ir para casa.

Ela propôs ficarmos mais um pouco. Tinha uma cachaça com murici. Propôs um jogo de palito. Quem perdesse tomava uma dose. Sorri da ideia. – Se eu tomar isso não vou conseguir chegar em casa. Mas vamos tentar.

Como não haviam palitos improvisamos com macarrão palito. Ali percebi por que nos dávamos tão bem, por que gostávamos da companhia um do outro. Éramos dois pássaros loucos. Bem distante do que aparentávamos ser no trabalho. 

Ganhei a primeira, ela teve que beber a dose. E assim o fez. Ganhei também a segunda. Ela bebeu novamente. Eu estava com sorte. Então decidi arriscar. Já que estávamos livres, leves e soltos. – Se eu ganhar a próxima quero um beijo na boca. Para minha surpresa ela não recusou. – Agora que vale um beijo vou perder. Disse sorrindo. Mas não é que ganhei!

– Um beijo, né?! Agora? Ela perguntou. E eu respondi afirmativamente. Ela então se levantou e veio até mim, que continuei sentado. Ela então aproximou o rosto do meu para me dar o prêmio e eu recebi. E que prêmio. Achava que seria um beijo para cumprir tabela. Mas foi um beijo com paixão. Pronto o mundo podia acabar naquele momento que eu estaria feliz.

Continuamos a disputa e a minha sorte parece que foi roubada com o beijo. Ela então ganhou a primeira. Tive que tomar a dose de cachaça. Perdi novamente. Outra dose de cachaça. – Desse jeito não chego em casa. Comentei. Ela deve ter ficado com pena. Disse que se ganhasse a próxima eu deveria beijar a sua nuca de um jeito especial. Pronto, agora eu não fazia nenhuma questão de ganhar. Seria um prazer. Perdi novamente, agora era hora de lhe dar o prêmio. 

Levantei e fui até ela – que continuou sentada. Segurei-a levemente pelos ombros e encostei meus lábios na sua nuca. Enquanto a beijava sentia sua respiração. Para finalizar dei umas leves mordidas o que a fez respirar profundamente.

Estávamos nos divertindo como duas crianças (sem a inocência). Riamos, riamos tanto e tão alto que comentei com ela que os vizinhos iam pensar que estávamos loucos. Falar em vizinhos pelo avançar da hora logo o sol nasceria e toda a cidade despertaria. 

Tudo estava perfeito mas era hora de ir para casa. Sei que se continuássemos com o jogo poderíamos terminar na cama. Mas alcoolizados como estávamos não seria legal. 

Então nos despedimos – nos abraçamos, eu a agradeci pela noite inesquecível. Ela também me agradeceu, por tudo. Nos beijamos mais uma vez. Agora de forma breve. E prometemos nos encontrar logo, logo. No entanto, quando voltava para casa, numa esquina, um tiro... aquela seria a última vez que nos veríamos. 

Por Pedro Ferreira Nunes – É Poeta, Escritor e Educador Popular

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