“He had the spirit to fight, his way to the end”.
Sepultura
*Por ali tudo tranquilo – ainda não era meia noite mas todos já haviam se recolhido á suas casas – o clima lembrava uma cidadezinha interiorana. O silêncio dominava contrastando com tudo que havia acontecido há poucas horas – quando a quadra havia se transformado num campo de batalha. De um lado os manifestantes protestando contra o governo e do outro as forças da repressão. De um lado paus, pedras e coquetéis molotovs. Do outro, cacetetes, spray de pimenta, bombas de efeito moral e balas de borracha. Ao final a ordem foi estabelecida. Até quando? Até quando?
- Como cheguei aqui? Não me recordo. O que fiz? Quem matei? Dizem que matei alguém. Não me recordo. Agora estou atrás dessa grade. Até quando? Até quando? Eu me lembro da confusão, das pessoas correndo, da polícia atirando bombas e balas de borracha. Eu também corri, tentei me proteger. Vi uma mulher sendo espancada violentamente. Corri para socorre-lá. Estava desarmado, eram muitos. Sai dando socos e pontapés para todos os lados como se estivesse numa roda de hardcore. Não me lembro de ter matado ninguém. Consegui tira-la das garras daquela corja. Mas de repente levei uma pancada na cabeça, apaguei e quando acordei já estava aqui. Estão me acusando de ter matado alguém. Mas não matei, juro, não matei. Estavamos protestando contra esse governo fascista. Fomos reprimidos brutalmente pelas forças de segurança e nos jogaram aqui. Nos acusam de ter infrigido as regras. Mas foram eles, esses golpistas de merda que infrigiram as regras e transformaram-na em mordaças. Até quando vão me deixar aqui? Não vou me dobrar! Não vou esmorecer! Eles não podem me isolar para sempre. A fúria do povo há de crescer e essa cidade será incendiada. Eles podem tentar maquiar a realidade, mas uma hora a verdade vem á tona. A cada dia que passo nesse isolamento mais o ódio aumenta dentro de mim. Tenho que controla-lo para não explodir. Preciso canaliza-lo para os meus inimigos e no momento certo descarrega-lo. Meus inimigos, ah meus inimigos. Quem são? Sei muito bem. Muitos não sabem e reproduzem o discurso do opressor. Acreditando serem livres quando na verdade estão tecendo as teias onde serão enredados. Por que? Por que ninguém mais se questiona? É medo da realidade? É medo de descobrir que estão equivocados? E assim preferem o equivo a reconhecer o erro e a partir daí mudar? Tempos difíceis esses, tempos difíceis.
O dia amanhece e em vários quantos do local é possível ver as marcas da batalha travada na noite anterior. Apesar dos mortos e feridos – e dos encarcerados – a vida volta ao normal. As pessoas seguem para o trabalho – as que não trabalham (o exército de reserva) se entregam a todo tipo de vício – há sempre uma droga (licita ou ilicita) para entorpecer as mentes e escraviza-las. Alguns tentam fugir buscando refúgio nos templos religiosos – esperam a redenção mas acabam sendo tragados por uma droga ainda mais nociva – acreditam está se entregando a Deus mas estão caindo nas garras do demônio. Outros se deixam sucumbir pela ganância e se tornam escravos do capital.
- Eu preciso daquele smartphone que acabaram de lançar. Nem que tenha que pagar em mil vezes, nem que tenha que fazer horas extras todos os dias. Ouvi dizer que irão nomear um novo chefe na minha seção. Se desse a sorte de ser eu, meu salário iria dar uma boa engordada. Competência sei que tenho, conheço tudo aquilo como a palma da minha mão. Mas sei que não basta ter competência, é preciso a bênção daquele senador corrupto. Foda-se, não é hora para dilema ético, se tiver que bajula-lo para conseguir um cargo de chefia, farei. Com um salário melhor vou poder trocar de carro, comprar uma chacrazinha para receber os amigos e descansar dessa correria. Vou comprar aquele smartphone á vista e fazer uma viagem á Europa ou aos EUA. É meu caro, a gente precisa jogar o jogo conforme as regras, se não ficamos chupando o dedo enquanto os outros ficam no bem bom. Se para conseguir um cargo melhor é preciso puxar o saco de um energúmeno, que seja então. O que não farei é ficar de escanteio ou pior, protestar como faz essa cambada de “idiotas úteis”. Veja o exemplo do senador, se ele chegou aonde chegou, foi pelo fato de ter entrado no jogo. Taí, quem sabe um dia não serei senador também. Mas o que quero mesmo é ganhar dinheiro, muito dinheiro. Com muito dinheiro não preciso ser senador para que façam minha vontade – com dinheiro eu compro a alma e a dignidade de qualquer infeliz. Aí, e esse trânsito dos infernos que não anda. Quando ganhar muito dinheiro vou comprar um helicóptero. Não vou mais passar por esse sofrimento diário, não. É hoje que falo com o senador.
Enquanto isso em algum canto os que sobreviveram á repressão na noite anterior planejam a próxima ação. Alguns dos seus companheiros foram mortos, outros estão presos acusados injustamente por crimes que não cometeram. Mas isso não os intimidaram. É provável que a repressão aumente – o medo, a dor, o caos e o sofrimento reinaram por muito tempo – se não houver resistência. No ar ecoa uma espécie de réquiem: “Fear, pain, chaos, suffering. Fear, pain, chaos, suffering”. Mas não há tempo para luto, que aqueles que tombaram pela causa da liberdade descansem em paz, os que sobreviveram precisam continuar a luta.
- Mas é isso que queremos? Vale a pena se sacrificar por um planeta em decadência? A devastação dos recursos naturais avança em nome do progresso e quem se opõem é assassinado. A desigualdade aumenta no campo e na cidade e quem protesta é satanizado. A liberdade é amordaçada em nome da segurança e quem questiona é encarcerado. As vezes me questiono se vale mesmo a pena lutar para mudar essa realidade – com o conformismo e a subserviência reinante a derrota parece certa. Nesses momentos de angústia busco refletir acerca de quem sou, do que quero e por que luto. Questiono minhas crenças, meus ideais e minhas lutas. E dessa batalha interna sempre saio fortalecido. Consciente do que sou, do que quero, das minhas escolhas. Isso é importante para que não me torne uma marionete nas mãos de lideres manipuladores. Não somos perfeitos, cometemos erros. E reconhecer isso é importante para que possamos supera-los. Nos tornar conscientes do que fazemos, do que queremos e por que queremos. Conscientes dos perigos que há pelo caminho – a prisão ou a morte. Mas se esse é o preço a pagar para que sejamos livres, e tenhamos justiça social, que seja então.
Por Pedro Ferreira Nunes – Poeta, Escritor e Educador Popular.
*Inspirado livremente no álbum Quadra da banda Sepultura.