Você se lembra,
de quando nos conhecemos,
na rua da pequena cidade,
onde morávamos?
Eu um adolescente metido a punk,
e você um tanto hipponga.
Apesar das nossas diferenças,
ou talvez exatamente por isso.
Eu me interessei por ti,
e você por mim.
Você se lembra
do nosso primeiro beijo,
deitados naquela rede,
na área da sua casa?
Alta madrugada,
só eu e você.
E da nossa primeira transa?
Quando terminamos,
fiquei um tanto pensativo num canto.
E você sorrindo enquanto fumava um cigarro.
sempre que terminavamos de transar,
você fumava um cigarro.
Você ainda fuma?
Ainda lembra de mim?
Já me perdoou,
por eu ter partido
sem se despedir?
Espero que sim,
pois afinal de contas,
foi o melhor a se fazer.
Eu e você nunca seríamos,
felizes juntos.
Desejo que esteja bem.
Aonde quer que esteja,
e com quem quer que esteja.
Eu também estou bem.
Eu também estou bem.
Por Pedro Ferreira Nunes - Poeta e Escritor Popular
sábado, 21 de março de 2020
segunda-feira, 16 de março de 2020
COVID-19: Esperança e Medo.
“Não há Esperança sem Medo, nem Medo sem Esperança”.
Baruch Spinoza
A medida que o novo coronavírus (Covid-19) avança por diversos países do globo, avança também o Medo. Aliás, o Medo chega antes, em grande medida, por um excesso de informação que ao invés de informar, desinforma. E de medidas governamentais tomadas de forma improvisada. Mas o Medo não anda sozinho. Ele sempre vem acompanhado da Esperança – o problema é quando o Medo se torna desespero. E isso ocorre quando não há mais Esperança (há sempre alguém que aposta nisso, que lucra com isso).
Quem nos ajuda a compreender melhor a relação entre Medo e Esperança é o filósofo holandês Baruch Spinoza (1632-1677) na sua célebre obra publicada no ano da sua morte – “Ética demonstrada à maneira dos Geômetras” – onde ele define a Esperança como uma “Alegria inconstante, originada da idéia de uma coisa futura ou passada, cuja ocorrência duvidamos até certo ponto”. E o Medo por sua vez como “uma Tristeza inconstante, originada da idéia de uma coisa futura ou passada, cuja ocorrência duvidamos até certo ponto” (2014, p. 65).
Por essas definições percebemos uma ligação entre esses dois afetos que tem como característica a dúvida acerca de algo que aconteceu ou acontecerá – dúvida que leva a uma inconstância dos afetos de Alegria e de Tristeza, já que não há uma certeza se aquilo pelo que se espera irá de fato acontecer. Por outro lado também não há uma certeza de que não vai acontecer. É por isso que para Spinoza (2014, p. 57) “não há Esperança sem Medo, nem Medo sem Esperança”. Analisemos essa afirmação a partir da crise com o novo coronavírus.
Há a Esperança de que se controle a expansão do novo coronavírus, tanto através de ações individuais, como um maior cuidado com a higiene pessoal. Como também com medidas coletivas, como suspensão das aulas nas escolas e a realização de eventos públicos. Mas como não há certeza que essas medidas serão suficientes, essa Esperança vem acompanhada do Medo. A partir dai o Medo pode prevalecer. Mas se isso acontecer, ele também trará consigo a Esperança de que mesmo num cenário difícil possa acontecer um milagre e assim todos voltariam a vida “normal”.
De acordo com Spinoza (2014, p. 65) “quem depende da Esperança, tem dúvida sobre a ocorrência da coisa e também imagina algo que exclui a existência futura de tal coisa; nesta medida ele também se entristece. Consequentemente, quem depende da Esperança, teme que a coisa não aconteça. Por outro lado, quem tem Medo, isto é, quem tem dúvida da ocorrência daquilo que odeia, também imagina algo que exclui a existência de tal coisa e, portanto também se alegra e, consequentemente tem esperança que a coisa não ocorra” (2014, p. 65). Em suma, por um lado temos Esperança que se descubra uma forma de controle do avanço do novo coronavírus e isso nos alegra, mas como nada garante que esse controle de fato funcionará, nos entristecemos.
Para Spinoza (2014, p. 57) “qualquer coisa pode ser, por acidente, causa de Esperança e de Medo”. Sendo que as “coisas que são por acidente causa de Esperança e de Medo são chamadas de bons ou maus presságios. E como estes presságios são causa de Esperança e Medo, são também causa de Alegria e Tristeza”. Quando é causa de Alegria, amamos. E quando é causa de Tristeza, odiamos. Em ambos os casos “nos esforçamos, seja para empregá-los como meios para as coisas que esperamos, seja para removê-los enquanto obstáculos ou causas de Medo”. Esse esforço faz parte da natureza humana que é constituída de tal forma “que facilmente acreditamos nas coisas que esperamos e dificilmente acreditamos nas coisas que tememos” (2014, p. 57).
Essa é uma característica, que segundo Spinoza, nos leva a acreditar em discursos supersticiosos. No caso da pandemia da COVID-19 temos coisas nesse sentido como: isso é “coisa de satanás”, “invenção da mídia”, “arma para matar militante anticomunista”, entre outros.
Mas há o elemento que Spinoza denomina de flutuações da alma – que faz com que um afeto se transforme em outro – assim como o Amor pode se tornar Ódio, a Esperança pode se tornar Medo.
No caso do novo coronavírus é possível perceber claramente essa flutuação de afetos – da Esperança para o Medo – a medida que a realidade vai se impondo com os casos de contaminação acontecendo cada vez mais próximos de nós e os números de óbitos aumentando. E do Medo para Esperança – quando buscamos agir racionalmente diante dessa situação.
E ai está um ponto importante, pois dependendo de como agimos podemos ir da Esperança para Segurança ou do Medo para o Desespero – o que ocorre, segundo Spinoza, “quando é removida a causa da dúvida sobre a ocorrência da coisa em questão” (2014, p. 65). E se tratando da COVID-19, quando isso ocorrer, e cedo ou tarde ocorrerá, a Esperança dará lugar a Segurança. Mas, por outro lado também pode ocorrer o contrário – podemos ir do Medo ao Desespero. E isso precisamos evitar pois o Desespero nos faz agir de forma irracional. E agir irracionalmente é tudo que “líderes supersticiosos”, “mercadores da saúde” e as elites econômicas esperam de nós, pois assim poderão lucrar mais e mais e mais.
Pedro Ferreira Nunes – É Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins.
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Referência:
Spinoza, Baruch. Ética demonstrada a maneira dos geometras. Tradução: Roberto Brandão. Disponível em: https://www.passeidireto.com/arquivo/6574573/93539070-baruch-spinoza-etica-demonstrada-a-maneira-dos-geometras-pt-br/18. Acesso em: 15 Mar., 2020.
terça-feira, 10 de março de 2020
Quem tem medo da Filosofia?
“A verdadeira função social da Filosofia consiste na crítica do estabelecido”.
Valério Rohden
Essa questão feita por Valério Rohden em 1979
(durante a fase final da ditadura militar) voltou á tona nos últimos anos no Brasil. Sobretudo a partir da proposta de reforma do Ensino Médio no governo de Michel Temer (MDB), onde se propunha entre outras coisas a retirada do ensino de Filosofia como disciplina obrigatória da grade curricular. Com a chegada do Sr. Jair Bolsonaro a presidência da república essa questão volta com força sobretudo com os ataques do governo a universidade pública, em especial os cursos de humanas, e em particular os cursos de Filosofia.
Rohden foi um filósofo brasileiro referência no pensamento kantiano – traduziu do alemão as três críticas desse filósofo e presidiu a Sociedade Kant Brasileira. Também presidiu e foi um dos fundadores da ANPOF (Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia). Gradou-se em Filosofia em 1960 e o doutorado com livre-docência pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul ocorreu em 1976. Já o pós-doutorado foi na Universidade de Munster (Alemanha). Rohden desenvolveu pesquisas em diversas universidades em países como Alemanha, França, Itália e no Brasil – onde atuou como docente na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e na Universidade Luterana do Brasil. Além de traduzir, também escreveu diversas obras entre elas: “Interesse da razão e liberdade” (1981), “Kant e a instituição da paz” (1997) e “Filosofia, liberdade e conhecimento...” (1999).
Em “Quem tem medo da Filosofia?” Rodhen chama atenção para as prevenções que se tem com a Filosofia. Ele se questiona do por que dessas prevenções se no Brasil a Filosofia não tem grande relevância, como dizem seus críticos. Ora, se a Filosofia é tão irrelevante assim, a ponto de ser retirada da grade curricular do segundo grau, por que o Estado persegue os professores, afastando-os? Não há ai uma contradição? Questiona Rohden.
“O Estado arroga-se o direito de julgar quem é bom ou mau em Filosofia, afastando aqueles que julgou serem maus, justamente aqueles que na verdade eram bons. Parece que a base desse procedimento reside num medo à Filosofia: numa hostilidade que sempre houve contra ela, e que parece traduzir-se sob a forma de um medo ao pensamento e à crítica” (1984, p. 3).
É a partir dessa reflexão que surge o questionamento acerca de quem tem medo da Filosofia e por quê. Para refletir sobre essas questões o nosso filósofo recorrerá a três textos de diferentes autores: “Crítica da razão tupiniquim” do Roberto Gomes, “Teoria tradicional e teoria crítica” do Max Horkheimer e “Schopenhauer como educador” do Friedrich Nietzsche. A esse respeito, Rohden nos diz:
“Refletindo sobre esses textos consegui detectar três diferentes centros de medo, cada um assumindo suas conotações próprias: I. O Medo do próprio filósofo: medo de expor-se; II. O Medo da opinião pública: medo da crítica; E III. O Medo do Estado: medo da verdade” (1984, p.4). Vejamos cada um deles.
I. O Medo do próprio filósofo: medo de expor-se;
Rohden identifica esse medo – o medo de expor-se – a partir do que expõem Roberto Gomes em “Crítica da razão tupiniquim”. Trata-se de um medo do próprio filósofo “porque uma vez expostos e nus não teriam o que mostrar para além do seu formalismo exterior de terno e gravata”. Isto é, reproduzir discurso academicista de autores europeus. Ele salienta que se expor significa colocar-se sob o julgo da opinião pública e estar preparado para arcar com as consequências que daí advém. Por saber disso nossos filósofos preferem se silenciar. E assim, nas palavras do próprio Rohden, “em termos rigorosos seriam, pois, filósofos “mudos”, ou loquazes mas sem pensamento – enfim uma forma estranhíssima de seres que propriamente não falariam e nem pensariam. Sua expressão seria falsificada por uma retórica dominada por categorias assimiladas e repetidas, sem nenhuma mediação de pensamento e de meio” (1984, p. 4). Ao invés de assumir uma posição e se arriscar a ela, independente das consequências, preferem se esconder atrás de uma suposta “isenção e da ‘objetividade’– que tudo concilia, dissolvendo as oposições e não radicalizando nada” (1984, p. 5). Em suma, para Rohden, nossos filósofos tem medo de assumir uma posição e de se desligar da cultura européia.
II. O Medo da opinião pública: medo da crítica;
Rohden, ainda a partir do Roberto Gomes, identifica o medo da crítica a partir de uma análise das características culturais do brasileiro. Ele salienta que “o decantado espírito de conciliação e tolerância típico do brasileiro facilmente converte-se no seu oposto, ou seja, no fanatismo de quem não admite uma posição diferente da sua” (1984, p. 5). Nosso filósofo diz que isso é consequência da falta de convivência racional e democratica. Essa falta faz com que sejamos incapazes de conviver e dialogar com alguém que pense diferente de nós. O curioso, ressalta Rohden, é que conseguimos conviver com autores e obras distintas. Mas, citando Gomes, “ao nível social, divergir é crime. Discordar é subversão. Perguntar já é um hábito de desobediência. Isso no país do jeitinho, do homem cordial, do carnaval eterno” (1984, p. 5). Isso leva a uma ausência de consciência crítica – que por sua vez gera intolerância, sectarismo, o partidarismo estéril, a repressão, a censura, o irracinalismo e à autoritarismo políticos. “Em tal contexto a Filosofia não tem condições para exercer-se e cumprir sua missão” (1984, p. 5). E qual é essa missão? Para responder essa questão Rohden recorrerá a Horkheimer – e a partir daí afirmará que “a verdadeira função social da Filosofia consiste na crítica do estabelecido”. Para Rohden “é como crítica, e não por alguma outra utilidade mais imediata, que a Filosofia desempenha uma função social” (1984, p. 6).
Ainda de acordo com nosso filósofo: “O conflito da Filosofia com a sociedade deriva dos seus princípios imanentes: A Filosofia afirma a liberdade das ações humanas, reivindica a necessidade geral da crítica, opõe-se a tradição, à resignação e lança luz sobre hábitos tão arraigados que parecem naturais. A defesa desta dimensão da Filosofia levou Sócrates à morte, e por esta dimensão ela mantém até hoje uma relevância originária” (1984, p.6).
III. O Medo do Estado: medo da verdade.
É a partir de Nietzsche que Rodhen definirá esse terceiro medo – o medo da verdade por parte do Estado. “O Estado tem medo de homens que fazem verdadeira filosofia. Tais homens, pela sua própria estatura de pensamento e de homens, não servem ao Estado, e ele não os favorecerá, ou seja, não favorecerá a verdadeira Filosofia” (1984, p. 7). Mas para dar uma aparência de que presa pela verdade e pela Filosofia o Estado favorece alguns filósofos, claro apenas aqueles dos quais ela não teme. Busca convencer a opinião pública de que esses são os bons filósofos, obriga-os a ensinar e a falar mesmo quando não tem nada a dizer e “compromete a Filosofia a fazer o papel da erudição, de produzir repensadores e pós-pensadores de pensadores anteriores” (1984, p. 7). E com isso ao invés de contribuir para fortalecer o pensamento filosófico enfraquece-o afastando os estudantes que darão graças a Deus por não serem filósofos.
“Se com essa erudição só se aproveita uma educação para a prova – que leva os estudantes a suspirarem ao fim do semestre com um ‘graças a Deus que não sou filósofo, mas cristão e cidadão do meu Estado’ – então devemos dar também razão a Nietzsche ao perguntar: ‘e se esse suspiro profundo fosse justamente o propósito do Estado, e a educação para a Filosofia, em vez de conduzir a ela, servisse somente para afastar da Filosofia?’” (1984, p. 8).
Que fazer?!
Rohden propõe a seguinte estratégia para combater esses medos. Primeiro, em relação ao medo no filósofo, ele defende o desenvolvimento do pensamento autônomo e crítico da realidade. Segundo, em relação a opinião pública, ele propõe mostrar o seu engano, mas mostrando também como a Filosofia está ao seu lado. Em terceiro, em relação ao Estado, ele defende a desmistificação das falsas legitimações, procurando desenvolver uma política verdadeira e exigindo do Estado o direito à liberdade do exercício público e ilimitado do pensamento.
Para concluir
Primeiro ponto, não é de agora que a Filosofia no Brasil é vista como algo inútil que deve ser retirada da grade curricular de ensino e que os filósofos (dignos desse nome) sejam desqualificados e perseguidos. Segundo, passado 40 anos da publicação desse texto, podemos dizer que as reflexões levantadas pelo filósofo Valério Rohden continuam válidas pois as prevenções com a Filosofia permanece e por conseguinte os medos que daí advém – os filósofos ainda não superaram o medo de exporem-se, a opinião pública não superou o medo da crítica, e o Estado o medo da verdade – ainda que já não estejamos mais numa ditadura militar, que tenhamos conseguido manter a obrigatoriedade do ensino de Filosofia no Ensino Médio e de termos conseguido ampliar os cursos superiores nessa área. Por isso não podemos deixar de questionar: Quem tem medo da Filosofia? Ousamos responder: Quem tem medo da crítica, do debate, do contraditório. Que esse medo seja por parte do Estado (que busca manter a ordem dominante) é até compreensivo – o que não significa dizer que temos que aceitar. Mas quando falamos em nível social aí é um problema. E mais problemático ainda é quando esse medo está em nós.
Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins.
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Referência
ROHDEN, V. Quem tem medo da Filosofia?. In Introdução à Filosofia. Universidade Católica de Pernambuco – Departamento de Filosofia. Subsídios Didáticos – Fascículo I. Recife, 1984. Pág. 3-8.
quarta-feira, 4 de março de 2020
A questão do fornecimento de água em Lajeado: Hora de pensar na municipalização do serviço.
De repente, não mais do que de repente os moradores de Lajeado deixaram de receber em suas casas a fatura do serviço de fornecimento de água pela ATS (Agência Tocantinense de Saneamento) – que suspendeu, sem maiores esclarecimentos para população, a leitura dos hidrometros. Apesar disso, o fornecimento de água, bem como o serviço de manutenção da rede, manteve-se em funcionamento. No entanto, isso não deixava de causar preocupação para população sobretudo diante da falta de informação por parte da empresa responsável pelo fornecimento de água.
Por que a leitura dos hidrometros e por conseguinte a confecção das faturas haviam sido suspensas? Como seria a cobrança da água consumida pelos moradores? Quando seria essa cobrança? Eram questões para as quais não se tinha respostas.
Passado alguns meses, de repente, não mas do que de repente os moradores voltaram a receber as faturas (retroativas) do serviço de fornecimento de água. Mas com um detalhe – como não havia sido feito leituras dos hidrometros mensalmente como se deve fazer – o valor era baseado na média de consumo de cada unidade consumidora. Mas pela falta de informação e esclarecimento por parte da ATS muitas famílias deixaram de pagar essas faturas – E não sem justificativa, pois num contexto de falta de informação e desorganização por parte da empresa responsável pelo fornecimento de água, quem garantia que aquelas faturas de fato eram oficiais. Além do fato de que sem a leitura não era possível afirmar que aquele valor que estava sendo cobrado era o que havia sido consumido.
Mas a ATS, não abriu mão dos meses de fornecimento de água que ela deixou de fazer a leitura. E assim quando o serviço se normalizou muitas famílias foram surpreendidas com uma dívida considerável (sobretudo para condição socioeconômica da maioria da população da cidade).
E assim chegamos ao contexto atual. Nesse contexto para ATS o máximo que se pode fazer é parcelar a dívida em até 18x sem juros e multas. Mas isso na verdade é o mínimo sobretudo diante de um problema que não foi causado pela população. É o mínimo pois não leva em consideração uma questão central – quem garante que o valor que está sendo cobrado dos consumidores reflete de fato o que foi consumido já que não houve leitura dos hidrometros? A população não poderia ser penalizada por um problema que ela não criou. Ela não deveria pagar por um serviço de excelência se o que recebeu foi mau serviço.
Ora, a obrigação da ATS é fornecer aos consumidores as faturas (mensalmente nos seus domicilios) do quanto cada unidade consumidora consumiu de água para que a partir daí os consumidores possam cumprir as suas obrigações que é quitar seus débitos ou questionar se observar algo errado. Mas sem informação na fatura como saberão se estão sendo cobrado por aquilo que de fato consumiram?!
O fornecimento de água, a manutenção e a melhoria da rede de abastecimento é fundamental. Mas também é fundamental a clareza (através de informação) tanto da qualidade da água como do consumo pela população. Pois é através dessas informações que os moradores saberão se estão pagando pelo serviço que de fato está sendo prestado.
Ainda na gestão da prefeita Márcia Reis havia sido aprovado na Câmara de Veradores do município a concessão do fornecimento de água para a ATS. No entanto, por negligência do poder público local e do governo estadual (que controla a ATS) esse processo não foi oficializado. E isso foi o que levou aos problemas que relatamos no início. Só após todos esses problemas é que resolveram a questão. Agora oficialmente a ATS é a concessionária do abastecimento de água em Lajeado.
Mas se o problema da concessão foi resolvido, para muitas famílias só está no início. Pois agora além do consumo regular terão que pagar os meses retroativos. E repito mais uma vez, por um problema que não foi culpa delas. E se não foi culpa delas o justo seria cancelar essa suposta dívida. Mas é óbvio que a ATS não fará isso e nem as autoridades políticas do município – talvez só se a população se mobilizasse e buscasse o Procon, o Ministério Público, a Defensoria Pública e até o Poder judiciário. No entanto não se vê disposição para que isso ocorra.
Como não há disposição para o enfrentamento por parte da população de Lajeado, um caminho alternativo é retomar a discussão sobre a municipalização do serviço de fornecimento de água em Lajeado – a cidade tem a matéria prima, tem os equipamentos e tem mão de obra qualificada. Desse modo por que não assumir a gerência do serviço? Quais são os pontos positivos e negativos nesse sentido? É hora da população lajeadense pensar nessas questões sobretudo pelo fato de ser ano eleitoral (onde se elegerá quem governará a cidade nos próximos quatro anos). O que, no entanto, não impede a população de pressionar as autoridades locais para que exija a melhoria da prestação do serviço de fornecimento de água pela ATS enquanto esta for a empresa concessionária do serviço no município.
Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins.
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020
Para dizer que não falei sobre o carnaval
“...estão tocando um samba de fazer dançar as pedras”.
Aníbal Machado
O carnaval no Brasil já não é o mesmo de alguns anos atrás quando havia apenas dois modelos hegemônicos – o carnaval das escolas de Samba (especialmente do Rio de Janeiro) e os Trios Elétricos com bandas de Axé Music (na Bahia). O que temos nos últimos anos é fortalecimento de um carnaval multicultural promovido pelos blocos de rua – celebrando a maior característica da nossa cultura que é a diversidade. Com isso creio que agora podemos falar com ênfase em carnaval como maior festa popular e símbolo da nossa cultura.
Por algumas décadas havia uma tendência de reducionismo do carnaval brasileiro a cultura do samba e do axé music – que sem dúvida são importantes expressões da nossa cultura mas que estão longe de representar toda a nossa diversidade cultural. Essa tendência partia sobretudo da indústria cultural e da grande mídia que dava um maior foco nos desfiles das escolas de samba e no arrastão dos trios elétricos com bandas de Axé Music. De modo que falar em carnaval, a partir da perspectiva da grande imprensa, era na prática falar do Rio de Janeiro e Salvador (e talvez São Paulo). E com toda a força midiática esses modelos de carnaval (especialmente o bahiano) foram ganhando outras regiões do país guetizando ou extinguindo as expressões culturais locais. Festas que mobilizava muita gente sem dúvida, mas outros tantos preferiam ficar alheios ou apenas como espectadores de um carnaval que não os atraiam.
Mas isso tem mudado – o que tem muito haver com uma das característica da cultura popular que é a resistência. Sobretudo, a resistência a massificação e ao nivelamento (Bosi, 1986, p. 23) imposto pela cultura de massas. Essa resistência se fez sentir no carnaval a partir de Pernambuco (Recife e Olinda em especial) que apresentou para o resto do país a riqueza de um carnaval multicultural – onde o protagonismo era das expressões culturais locais – o frevo e o maracatú – mas também abrindo espaço para outras expressões culturais de vários cantos do país.
O que vai na linha do que diz Ecléa Bosi a respeito de um dos aspectos da cultura popular – que é o entrelaçamento entre novo e arcaico. Para Bosi (1986) “os elementos mais abstratos do folclore podem persistir através dos tempos e muito além da situação em que se formaram”, mantendo-se como uma importante referência para manutenção de uma tradição.
Em Pernambuco, ao contrário de outros Estados da federação, o carnaval de rua nunca deixou de existir – que o diga o “Galo da Madrugada” anos após anos levando milhões de foliões para as ruas do Recife. E o “bacalhau do batata” arrastando multidões pelas ruas de Olinda. Só para citar dois exemplos mais conhecidos.
Além dos blocos de rua e dos grupos tradicionais de frevo e maracatú há os shows com artistas de diferentes vertentes: funk, sertanejo, rock, reggae, rap, mpb entre outros. Em suma, tem para todos os gostos, para todas as tribos.
Diante disso ouso dizer que se quisermos compreender a virada que tivemos nos últimos anos com o renascimento do carnaval dos blocos de rua em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte devemos olhar para Pernambuco, especialmente Recife e Olinda. Foram os pernambucanos que resistiram como ninguém á uma festa de carnaval que estava ficando por demais elitizada.
Um exemplo dessa eletização podemos perceber no verso da canção “palmares 1999” da banda Natiruts sobre a condição do negro na nossa sociedade – “...apesar de ter criado o toque do agogô. Fica de fora dos cordões do carnaval em Salvador”. E no Anhembi (SP) ou na Sapucaí (RJ) não é muito diferente. Já o carnaval de rua não, é só chegar, ocupar e fazer a festa acontecer. Não precisa de grande estrutura, mas de criatividade e trabalho coletivo. Se o Estado não quer ajudar que pelo menos não atrapalhe – que pelo menos cumpra com o seu dever de garantir a segurança.
Aliás, tem se dado muita ênfase aos casos de violência durante o desfile dos blocos – dando munição aos moralistas de plantão que são contrários ao carnaval de rua sobretudo. Mas o problema não é o carnaval e sim o fato que vivemos numa sociedade extremamente violenta. Se durante o carnaval essa violência se aflora ainda mais é por incompetência do Estado em combater as causas da violência garantindo segurança para quem quer se divertir e protestar, pois o carnaval nesse novo contexto também tornou-se um espaço para o protesto (tomar as ruas para celebrar a cultura por si só já é um ato de protesto, sobretudo no atual contexto político).
Um ponto importante é que o ressurgimento do carnaval de rua não enfraqueceu as escolas de samba ou o axé music. Aliás, esses até se fortaleceram. A diferença é que agora se tem mais opções que vão sendo criadas a cada ano pelos próprios foliões e atraindo mais pessoas para a folia. Outro ponto é uma tendência crescente a interiorização do carnaval de rua – que já acontece em todo o Brasil, mas que se destaca em algumas cidades que já mencionamos aqui.
No Tocantins tem se seguido essa tendência e assim vimos o ressurgimento do carnaval de rua em importantes cidades do Estado. Óbvio que ainda estamos muito distante do que ocorre em outras regiões do país. Mas a tendência é um crescimento sobretudo diante da boa avaliação por parte dos organizadores e participantes. Para que esse crescimento possa se concretizar um limite importante que precisa ser superado é a dependência do poder público. A própria comunidade pode se auto-organizar e realizar a festa buscando o apoio do Estado. E não ficar só esperando que o Estado tome a iniciativa.
Enfim, para concluir. O carnaval é inegavelmente a maior festa popular do povo brasileiro, e goste ou não é uma das expressões da nossa cultura. Durante algum tempo tentou-se reduzi-lo há uma determinada dimensão, mas a resistência que é um traço da cultura popular negou-se ao nivelamento e a massificação. E agora temos um carnaval multicultural que de fato representa a nossa diversidade cultural.
Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins.
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020
Crônica: Sobre fumar cachimbo
Fumar cachimbo exige todo um ritual que tem muita haver com a forma como administramos o tempo no nosso dia a dia. Digo isso pelo fato de que não dá para fazê-lo em qualquer lugar, em qualquer ambiente, em qualquer horário. É preciso todo um contexto específico para que desfrutemos desse prazer – é preciso tempo. Tudo o que não temos na rotina corrida que nos é imposta pelo modo de produção capitalista na contemporaneidade.
Talvez esteja ai uma explicação para a visão de que fumar cachimbo é para nobres e intelectuais – para alguns poucos privilegiados que conseguem dominar essa arte. Isso mesmo, fumar cachimbo é considerado por muitos uma arte. Não discordo dessa visão, porém relegar esse hábito apenas a nobreza e a intelectualidade é um equívoco. Ora, não se pode esquecer que o hábito de fumar cachimbo está presente nas culturas primitivas como a indígena e a africana por exemplo.
Na minha infância era muito comum o hábito de fumar cachimbo no interior tocantinense pelas classes populares. As pessoas sentavam na porta de suas casas e enquanto colocavam o papo em dia com os vizinhos degustava o seu cachimbo ou um cigarro de palha. Ou quando execultavam algum serviço como despalhar milho, feijão ou mesmo preparar o tabaco plantado nas vazantes para comercializar na região.
Aliás, na região em que nasci e cresci era comum as plantações de tabaco, especialmente nas vazantes do Rio Tocantins. Não eram grandes lavouras, mas o suficiente para movimentar o comércio local. E o principal ponto desse comércio era o mercadão (mercado central) de Miracema.
Com a construção da usina hidrelétrica Luiz Eduardo Magalhães e o barramento das águas do Tocantins a cultura do tabaco praticamente acabou nessa região. O próprio mercadão foi transformado num mini shopping. E assim a nova dinâmica de vida trazida pelo avanço do modo de produção capitalista praticamente extinguiu o hábito de fumar cachimbo no interior tocantinense – agora visto como um hábito da antiguidade.
Iniciei esse hábito um tanto por acaso quando ganhei um cachimbo de presente do meu irmão mais velho. Comprei uns fumos de corda no mercado central de Goiânia e comecei a tentar dominar essa arte. Não demorou muito para que conseguisse. Eu já tinha alguma experiência com fumo, sobretudo palheiros (que ainda fumo de vez enquando), mas fumar cachimbo é um prazer que vai além. Só quem tem esse hábito pode compreender o que estou dizendo.
Outro fator importante do hábito de fumar cachimbo que eu descobri é o fator econômico. Não é caro adquirir um cachimbo de qualidade e outros artigos necessários para sua limpeza e nem bons tabacos. Há não ser que você seja por demais exigente e queira comprar tabacos importados e adquirir cachimbos mais caros. Mas ainda assim, acaba sendo mais em conta do que fumar cigarro industrializado, palheiros e sobretudo charutos.
E tende ser ainda mais econômico se você cultivar o seu próprio fumo. É o que tenho feito ultimamente e tem sido por demais prazeroso. Inclusive temos contribuído para retomada da cultura do fumo nessa região compartilhando mudas com a vizinhança para que as pessoas que fumam cultivem o seu próprio fumo no quintal de casa.
Existe fumo próprio para cachimbo no comércio, mas prefiro preparar o meu. Adquiro fumo de corda de diferentes tipos e regiões no mercado central de Goiânia ou de Trindade, pico e misturo, inclusive com o que eu cultivo. A ideia é obter diferentes sabores, e tenho conseguido – Tenho conseguido um fumo exclusivo.
Costumo fumar duas vezes ao dia – após o almoço quando sento para escrever ou ler. E a noite, as vezes acompanhado de uma dose de conhaque, após o jantar. Dependendo do clima fumo apenas a noite e há dias demasiadamente quentes que eu simplesmente não fumo. Também não costumo fumar se não estou em casa – há não ser que irei ficar um período um pouco mais longo distante da minha morada – Ai não tem jeito, levo o cachimbo.
Alguns defendem que o hábito de fumar cachimbo é mais saudável do que fumar cigarro industrializado pelo fato de não haver os produtos químicos que a indústria adiciona para viciar mais rapidamente os fumantes. Para mim, seguindo a linha do que dizem alguns especialistas, fumar nunca é saudável, portanto o melhor mesmo é que não se fume.
Mas se mesmo diante dos alertas, você assim como eu, insiste em fumar, que seja então um tabaco produzido por você, de preferência num cachimbo. Ainda no meu caso, procuro contrabalançar esse hábito não tão saldável com hábitos saudáveis como tomar tereré e correr diariamente.
Por Pedro Ferreira Nunes – Poeta, Escritor e Educador Popular.
quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020
Resenha: Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens.
Por Pedro Ferreira Nunes
Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela UFT.
Qual a origem da desigualdade entre os homens? É em resposta a essa questão feita pela academia de Dijon que o filósofo Jean-Jacques Rousseau compôs em 1753 esse discurso - onde ele defende que a origem da desigualdade está relacionada a perca da liberdade do homem ao sair do Estado de Natureza para o Estado Cívil.
Nascido em Genebra no ano de 1712, Jean-Jacques Rousseau é um dos filósofos modernos mais conhecidos e reverenciados na contemporaneidade, sobretudo no campo educacional, graças ao seu clássico “Emílio ou Da Educação” de 1762. Outra das suas obras não menos importante é “O Contrato social” também publicado no ano de 1762. Mas que no entanto não foram bem recebidas quando de suas publicações – condenadas tanto pela academia, por autoridades políticas e também pela igreja. E para evitar o cárcere Rousseau teve que mudar de país. Morreu em 1778, aos 66 anos, deixando importantes obras que nos ajuda a refletir sobre a nossa condição humana, entre elas esse “discurso sobre a desigualdade...”.
A chave para compreendermos essa obra está na passagem do Estado de Natureza para o Estado Cívil. Nessa linha o discurso é dividido em duas partes. Na primeira parte o foco de Rousseau é a compreensão do homem, pois segundo ele não é possível compreender a fonte de desigualdade entre os homens, sem se conhecer o próprio homem (2001, p. 9). E para conhecer o homem é preciso ir nas suas origens que está no Estado de Natureza. A segunda parte o foco do nosso filósofo será a questão da desigualdade entre os homens propriamente. Desigualdade que nasce quando “cada um começa a olhar os outros e a querer ser olhado por sua vez” (2001, p.33).
Para o nosso filósofo “a estima pública tem um preço. Aquele que canta ou dança melhor, o mais belo, o mais feio, o mais forte, o mais destro ou o mais eloquente, torna-se o mais considerado”. E ai temos “o primeiro passo para desigualdade e para o vício, ao mesmo tempo: dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo e, de outro, a vergonha e a inveja; e a fermentação causada por esses novos fermentos produziu, enfim, compostos funestas à felicidade e à inocência” (2001, p. 33).
Para Rousseau (2001, p.12) há duas espécies de desigualdade na espécie humana: a primeira é a “natural ou física, por que é estabelecida pela natureza, e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades de espírito, ou da alma; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou política, por que depende de uma espécie de convenção, e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens”. Em relação a primeira não há que se buscar a sua fonte, pois ela se auto explica. Também não há que tentar saber se há uma ligação essência entre essas duas desigualdades. Para o nosso filósofo o problema que ele se propõe a refletir nesse discurso é “de marcar no progresso das coisas o momento em que, sucedendo o direito à violência, a natureza foi submetida à lei” (2001, p.13). Para tanto é necessário ir ao Estado de Natureza e a partir daí remontar a história da humanidade desde os seus primórdios.
Primeira parte
Rousseau (2001) nos leva ao mundo onde impera a lei da natureza – onde o homem convive ao lado dos outros animais buscando satisfazer suas necessidades. Forjado pela natureza apenas aqueles que conseguem se adaptar a lei natural sobreviverá, tornando-se fortes e robustos. Os outros perecem, numa espécie de seleção natural. Ao forjar indivíduos fortes e robustos “com tão poucas fontes de males, o homem no estado de natureza não tem, pois, necessidade de remédios, e ainda menos de médicos” (2001, p. 16). Eis ai em resumo como nosso filósofo caracteriza o homem do estado de natureza do ponto de vista físico. Mas e do ponto de vista metafísico moral?
Em relação a essa questão o que o caracteriza inicialmente é sua capacidade, que compartilha com outros animais, de sentir, querer e não querer, desejar e temer. Isso “até que novas circunstâncias lhe causem novos desenvolvimentos [...] os únicos bens que conhece no universo são a sua nutrição, uma fêmea e um repouso; os únicos males que teme são a dor e a fome”. E a morte? Em relação a morte, Rousseau ressalta que “jamais o animal saberá o que é morrer, e o conhecimento da morte e dos seus terrores foi uma das primeiras aquisições que o homem fez afastando-se da condição animal” (2001, p. 18-19).
A partir daí Rousseau (2001) fala sobre o processo de aquisição da língua. Um processo que se deu ao longo de vários anos até que se fundasse um dialeto comum que exprimisse os anseios do homem e fosse compartilhado pelos demais. “Quantos conhecimentos foram necessários para encontrar os números, as palavras abstratas, os algarismos, e todos os tempos dos verbos, as partículas, a sintaxe, ligar as proposições, os raciocínios, e formar toda lógica do discurso” (2001, p. 23).
Um ponto importante ressaltado por Rousseau é a sua compreensão do homem no estado de natureza como um amoral. A esse respeito ele afirma “não tendo entre si nenhuma espécie de relação moral nem de deveres conhecidos, não podiam ser bons nem maus, nem tinham vícios nem virtudes”. A partir dessa compreensão o nosso filósofo deixa evidente o seu desacordo com Hobbes, que compreendia que o homem é mau por natureza. Para Rousseau “os selvagens não são maus, precisamente porque não sabem o que é ser bom. Com efeito, não é nem o desenvolvimento das luzes, nem o freio da lei, mas a calma das paixões e a ignorância do vício que os impedem de fazer o mal”.
Ainda nessa linha, Rousseau ressalta que “Hobbes não percebeu e que, tendo sido dado ao homem para suavizar em certas ocasiões a ferocidade do seu amor próprio ou o desejo de se conservar antes do nascimento desse amor, tempera o ardor que ele tem por seu bem-estar com uma repugnância inata de ver sofrer seu semelhante” (2001, p. 24). Essa repugnância inata se manifesta na forma de piedade. Nosso filósofo considera a piedade uma virtude natural do homem – uma virtude que ele define como o desejo de que alguém não sofra e que seja feliz. Não é portanto a razão que impede o homem de fazer o mal, pelo contrário, é através da razão que se comete muita atrocidade. Nessa linha ele nos diz: “há muito tempo que o gênero humano não mais existiria se a sua conservação tivesse dependido exclusivamente dos raciocínios dos que o compõem” (2001, p. 26).
Para concluir essa primeira parte o filósofo abordará uma das paixões que leva o homem a fazer o mal. Entre essas paixões ele enfatiza o amor – o amor que leva a dependência de um indivíduo de outro. Ao se transformar num ardor impetuoso, torna-se funesto aos homens. O que não ocorre no estado de natureza onde os homens são livres e independentes.
Segunda parte
Rousseau começa por nos falar da origem do estado civil – “o primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas bastantes simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil” (2001, p. 29). Nosso filósofo ressalta que se houvesse encontrado oposição teria se evitado muito mal. No entanto, ele compreende que a constituição da propriedade e por conseguinte da sociedade civil, não se deu da noite para o dia, mas como fruto de um longo processo.
E um primeiro passo nesse longo processo foi a formação da família, por ocasião de uma primeira revolução, “onde já nasceram, talvez, muitas rixas e combates [...] cada família se torna uma pequena sociedade tanto mais unida quanto o apego recíproco a liberdade eram os seus únicos laços” (2001, p. 31-32). A medida que o tempo passa vão abandonando a vida nômade, fixam num determinado lugar e buscam cada vez mais ter comodidades. E sem saber criam as primeiras fontes dos males que lhes afligiram.
Surgem idéias e sentimentos – o homem está cada vez mais domesticado e assim “cada um começa a olhar os outros e a querer ser olhado por sua vez, e a estima pública tem um preço. Aquele que canta ou dança melhor, o mais belo, o mais forte, o mais destro ou o mais eloquente, torna-se o mais considerado. E foi esse o primeiro passo para a desigualdade e para o vício, ao mesmo tempo: dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo e, de outro, a vergonha e a inveja; e a fermentação causada por esses novos fermentos produziu, enfim, compostos funestos à felicidade e à inocência” (2001, p. 33).
Para o nosso filósofo “ser e parecer tornaram-se duas coisas inteiramente diferentes; e dessa distinção, surgiram o fausto imponente, a astúcia enganadora e todos os vícios que constituem o seu cortejo” (2001, p. 35). E assim o homem que no estado de natureza era livre e independente, está cada vez mais submetidos a uma situação de servidão. E para se livrar dos grilhões produzidos por eles mesmos, o que faziam era cada vez mais se embrenhar num caminho sem volta arrastando outros tantos – “todos correram para as suas cadeias de ferro, acreditando assegurar a própria liberdade” (2001, p. 37).
A partir daí Rousseau passa a falar da constituição do poder político. E ele não poupa críticas a este. Sobretudo por que o poder político é constituído a partir da compreensão de que o homem tem uma tendência natural para servidão – o que contribui para o aumenta cada vez maior da desigualdade entre os homens.
De acordo com nosso filósofo “se seguirmos o progresso da desigualdade nessas diferentes revoluções, veremos que o estabelecimento da lei e do direito de propriedade foi seu primeiro termo, a instituição da magistratura o segundo, e que o terceiro e último foi a mudança do poder legítimo em poder arbitrário. De sorte que a condição de rico e de pobre foi autorizada pela primeira época, a de poderoso e fraco pela segunda, e pela terceira a de senhor e escravo, que é o último grau de desigualdade, o termo ao qual chegam finalmente todos os outros, até que novas revoluções dissolvem completamente o governo ou o aproximam da instituição legítima” (2001, p. 43-44).
Por que os cidadãos se deixam dominar por esse estado de coisas? Por uma cega ambição que os tornam submissos. Se fosse o contrário, se não abrissem mão da sua condição de indivíduos livres, nenhum político conseguiria domina-los. Rousseau ressalta que “a desigualdade se estende sem dificuldade entre as almas ambiciosas e covardes” (2001, p. 43). Isto é, o terreno propício para o cultivo da desigualdade é aquele onde não há liberdade. Onde não há liberdade prevalece a desigualdade. A falta de liberdade é portanto fundamental para a manutenção da desigualdade.
Para Rousseau “se vemos um punhado de poderosos e de ricos no pináculo das grandezas e da fortuna, enquanto a multidão rasteja na obscuridade e na miséria, é porque, sem mudar de estado, cessariam de ser felizes se o povo cessasse de ser miserável” (2001, p.44). Eis ai mais um traço repugnante dessa sociedade, a felicidade de alguns depende da miséria de milhares. Por essas e outras que nosso filósofo vê uma profunda diferença entre o homem selvagem (estado de natureza) e o homem policiado (estado civil) – “o primeiro só respira o repouso e a liberdade; só quer viver e ficar ocioso” o outro sempre ativo, “agita-se, atormenta-se sem cessar para buscar ocupações ainda mais laboriosas; trabalha até à morte, corre mesmo em sua direção para se pôr em estado de viver, ou renúncia á vida para adquirir a imortalidade; faz a corte aos grandes que odeia e aos ricos que despreza; Nada poupa para obter a honra de o servir; gaba-se orgulhosamente de sua baixeza e de sua proteção; e vaidoso de sua escravidão, fala com desdém daqueles que não têm a honra de a partilhar” (2001, p. 45).
Por essas breves linhas dá para perceber a atualidade do discurso do Rousseau sobre a origem da desigualdade entre os homens – desigualdade que se aprofundou e, olhando para o contexto atual, parece ter alcançado o seu ápice. E como alerta Rousseau onde há desigualdade, não há liberdade. Mas aparentemente isso não é problema para parcela significativa da população que não vê problema em abrir mão da liberdade em troca de conforto e de uma falsa segurança – falsa segurança pois nunca se estará verdadeiramente seguro sob a tutela de um poder arbitrário.
Ainda que se possa questionar a crença rousseauneane no bom selvagem, no homem bom por natureza. Na espécie de paraíso que ele concebe ao falar do estado de natureza e para explicar a sua concepção de homem. Não se pode ignorar as importantes reflexos que ele faz sobre as instituições criadas pelos homens que ao invés de propiciar o bem comum, acaba sendo uma armadilha para aprisiona-lo e por conseguinte aumentar mais ainda a desigualdade entre os homens.
Para finalizar
Rousseau é um dos filósofos (assim como Marx, Nietzsche e Foucault) que está na prateleira daqueles que tem uma escrita acessível, o que facilita sobremaneira a leitura, tornando-a prazerosa. Mesmo para aqueles que não tem muita familiaridade com textos filosóficos. E esse livro particularmente, mais ainda – que pode ser facilmente encontrado no formato pdf para download gratuito na internet. Não há portanto desculpa para não lê-lo. Que esse texto seja um estímulo a mais para que você minha cara e meu caro, possa fazê-lo.
“A liberdade é como esses alimentos sólidos e suculentos, ou esses vinhos generosos, próprios para nutrir e fortificar os temperamentos robustos a eles habituados, mas que inutilizam, arruinam, embriagam os fracos e delicados, que a ele não estão afeitos.”
Jean-Jacques Rousseau
REFERÊNCIA
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens. Disponível em: http://www.livrogratis.com.br.
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