“Não há fundamento mais forte da produção da indiferença do que à indiferença a morte”.
Vladimir Safatle
Não temos como ficar indiferente diante da morte, sobretudo de um ente querido. O contrário seria perder aquilo que nos faz humanos – a consciência da nossa finitude. Quando nos tornamos indiferentes, nos tornamos apáticos, nos comportamos como autômatos. E assim avançamos para uma sociedade egoísta onde perdemos os laços de solidariedade e a morte é banalizada. Por isso não nos custa lembrar as palavras do filósofo e professor Vladimir Safatle: “não há fundamento mais forte da produção da indiferença do que a indiferença à morte”. Aqui ele não está falando apenas da perda de uma pessoa querida. Mas em geral. Com isso ele chama atenção para o aspecto político do esquecimento. Sobretudo de mortes provocadas pela violência do Estado – onde se nega o direito à memória.
Na minha visão essa violência ocorre também na falta de preservação dos espaços destinado a memória dos nossos mortos – os cemitérios. Muitos cemitérios são tratados como depósito de corpos, sobretudo no interior. É o caso por exemplo, do localizado no Bairro Correntinho em Miracema. Onde você vê uma completa desorganização e um profundo desrespeito não só a memória daqueles que ali estão enterrados como também da cidade. Pois essas pessoas são parte importante da história da cidade e por tanto da sua identidade.
O arquiteto e urbanista José Maria Xavier de Oliveira (2014) salienta que é “necessário analisar espacialmente os cemitérios e sua funcionalidade para os dias atuais, pois estes na maioria das vezes são construções antigas e mesmo as mais recentes em determinados casos não cumprem as exigências legais vigentes. Estes locais são muitas vezes construídos de maneira aleatória, sem o necessário e suficiente para o uso adequado do espaço, e seguem modelos de arquitetura baseados em construções de meados do século XIX.” Ainda de acordo com Xavier (2014), não se pode perder de vista que são espaço de uma questão simbólica. “Espaços que se perderam ao longo do tempo e que permeia todo o inconsciente das pessoas”. Por isso “é preciso resgatar nas pessoas o desejo de irem com mais freqüência aos cemitérios, para “cultuar” os seus mortos e usufruírem do clima de paz e tranqüilidade, encontradas ali e que devido ao abandono e degradação destes equipamentos urbanos e muitas vezes do seu entorno se tornam cada vez mais difíceis.”
Para mim, esses espaços são museus a céu aberto que trás em cada túmulo um pedaço da história da cidade. Por tanto devem ser conservados como um património histórico (sobretudo no interior onde não há muito espaço de conservação da memória local). Desse modo é inaceitável ver túmulos sem nenhuma identificação, que com o tempo acabam recebendo outro sepultamento tendo em vista a falta de controle e de espaço. Não é sem tristeza que sepultamos um ente querido num lugar assim. Mas o fazemos por compreender a importância simbólica de sepultar aquela pessoa num local ligado a sua história.
Há certamente aqueles que não vem sentido nisso. Para estes, se a pessoa morreu não tem mais o que fazer. Nada disso que fazemos já não importa. Platão no diálogo Fédon salienta essa questão através de Sócrates nos seus últimos momentos de vida. Ao ser questionado por Críton como deveriam proceder com o seu corpo. Ele responde que o seu discípulo deve fazer como achar melhor, já que ele não estará mais ali. O que importa é a alma. Se o indivíduo teve uma vida virtuosa certamente irá para um bom lugar.
Ora, não negamos que todo esse ritual ligado à morte diz respeito a nós enquanto ser humano – os únicos que tem consciência da sua finitude. Sabemos que iremos morrer, e esse fim irremediável perpassa toda a nossa existência. Mas essa morte não é por completo pois continuaremos vivendo na memória daqueles que estão vivos – o que nos torna imortais em certo sentido. Que o diga Sócrates.
Diante disso não podemos deixar de nos indignar e nos posicionar contra o esquecimento. Sobretudo quando esse se dá contra uma parte específica da nossa população. Voltando ao exemplo do cemitério do bairro do Correntinho. Será que se ali fosse enterrado os figurões da cidade de Miracema teriamos o mesmo descaso? Enfim, cabe a nós nos mobilizarmos para que a memória dos nossos mortos seja respeitada.
Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. Atualmente atua como Professor da Educação Básica no CENSP-LAJEADO.