quarta-feira, 10 de maio de 2023

O Ensino do Ensino Religioso – uma breve reflexão a partir da nossa experiência em sala de aula


O discurso a favor da promoção da diversidade religiosa se esbarra nos casos de intolerância. Sobretudo por parte de agentes que deveriam garantir o que está na Constituição Federal de 1988, isto é, a laicidade do Estado e a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença. Nesse contexto o Ensino Religioso torna-se um componente curricular importante na educação básica, desde que seja trabalhado numa perspectiva de promoção da diversidade religiosa e o combate a intolerância. 

Houve um grande embate sobre o Ensino Religioso na educação básica, tanto que a questão foi matéria de análise do Supremo Tribunal Federal (STF). Mais especificamente a questão do ensino religioso confessional, isto é, a possibilidade de se optar pelo ensino de uma religião específica. Com a decisão favorável dos ministros a Base Nacional Comum Curricular  (BNCC) incluiu como obrigatório o Componente Curricular de Ensino Religioso, podendo ser trabalhado numa perspectiva confessional. No entanto, garantindo ao estudante, sem prejuízo a sua carga horária formativa, a opção de escolha.  

Temos ai um ponto fundamental, isto é, o estudante não é obrigado a cursar um componente curricular que vai contra a sua liberdade de consciência e de crença. Por tanto a família e a escola devem estabelecer um diálogo a esse respeito para que não aja conflitos e mau entendidos quanto ao que será trabalhado – o que acontece muitas vezes é que esse diálogo não ocorre. Muitas famílias não sabem que o Ensino Religioso é facultativo. 

Por outro lado, mesmo sendo trabalhado numa perspectiva confessional, não significa que não possa promover a tolerância entre as diferentes religiões. O que é inaceitável é que aja intolerância num ambiente onde o aprender a conviver é um dos seus quatro pilares.

Analisando as orientações para o ensino do Ensino Religioso na rede estadual de Educação do Tocantins, percebe-se que não há uma perspectiva confessional, pelo contrário. No entanto, na prática fica muito na mão dos agentes que materializam os objetos do conhecimento trabalhado, no caso as unidades de ensino e os Professores.

Na nossa experiência com esse componente curricular buscamos trabalhar a partir da realidade do estudante, mas sem deixar de apresentar e discutir outras realidades sobretudo na perspectiva do aprender a conviver. De modo que o nosso ponto de partida foi uma escuta para a partir daí elaborar as atividades a serem trabalhadas. E ao final do bimestre uma avaliação coletiva acerca das aulas. A patir daí dividimos as habilidades e objetos de conhecimentos, a serem trabalhados, em quatro eixos, sendo eles: 1- Religião e Cultura; 2- Religião e Ética; 3- Religião e Cidadania ; 4- Religião e Direito a Humanos.

Desse modo mais do que conhecer uma determinada religião, a nossa perspectiva é mostrar como a tradição religiosa, a partir de diferentes culturas, foi se constituindo ao longo da história e propondo reflexões acerca da influência dessa tradição na nossa formação. 

Analisando avaliação feita pelos estudantes sobre as aulas de Ensino Religioso ficou muito evidente o destaque para “o conhecer outras religiões” (diferente daquelas que suas famílias e eles praticam ou que existe na sua comunidade). Uma das falas destacam: “até agora esse é o único professor de Ensino Religioso que fala de outras religiões”. Essa mesma estudante do 8° Ano do Ensino Fundamental questionada sobre o que mais havia gostado nas aulas de ensino religioso disse: “gosto de ver a diferença entre cada religião, ver o quanto tem gente diferente nesse mundo”. Outro estudante também seguiu essa linha: “Sobre as outras religiões conheci mais um pouco”. Outro disse: “É muito legal saber mais sobre religião”. Outro destacou o “debater mais sobre questões sociais e como a religião interfere ou tem haver”.

Um ponto importante a se ressaltar é que essas outras religiões não foram trabalhadas a partir de uma perspectiva pré-conceituosa – postura que leva a intolerância. Nosso comportamento foi como um mestre ignorante, isto é, se colocando numa posição de que não sabe,  para junto com os estudantes, buscar saber. E nessa caminhada o que temos descoberto é que as diferentes religiões tem mais pontos que as une do que as separa. Por que então não se promover uma convivência respeitosa?

Enfim, é nessa perspectiva que temos desenvolvido o ensino do Ensino Religioso. Acreditamos que esse caminho contribuí para promoção da diversidade religiosa bem como ao combate a intolerância. Não estamos dizendo que esse é o único caminho. O fundamental, no entanto,  é garantir que a escola seja um ambiente de acolhida para os indivíduos de diferentes religiões. E isso ultrapassa as aulas de Ensino Religioso. É uma questão de direitos humanos, que toda escola, sobretudo a pública, tem a obrigação de garantir.

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. Atua como Professor da Educação Básica no CENSP-LAJEADO.

sexta-feira, 5 de maio de 2023

Crônica: Primeira vez em Lajeado


Era mês de agosto. O ano 1991 se não me engano. Minha mãe decidiu ir para o Lajeado acompanhar os festejos da “Nossa Senhora Mãe da Divina Providência”. E como eu ainda era muito pequeno decidiu me levar junto. Para mim seria uma aventura inesquecível num lugar que me era desconhecido.

A aventura começou já na travessia da balsa pelo rio Tocantins entre Miracema e Tocantinia – o rio eu já conhecia, mas atravessa-lo naquela geringonça de ferro cheia de carros era uma novidade e tanto. Como toda criança curiosa fiquei atento a todo movimento daquele bicho esquisito. Chegando na outra margem entramos no ônibus e seguimos viagem rasgando a terra dos Xerente – oh, e quão bela era aquela paisagem. Sobretudo a cordilheira de serras. Da janela do ônibus olhava hipnotizado á tudo aquilo.

Eu não era a única criança ali, e também não era o único a ficar encantado com as serras. E na nossa visão de criança acerca do mundo imaginávamos quanto tempo demoraria para chegar lá no topo. Ao final de muita discussão chegamos num consenso – uns 60 dias – isso se uma onça pintada ou o terrível lobo-guará não atravessasse o caminho do corajoso que tentasse tal proesa.

E assim, enquanto conversávamos animadamente sobre aquela paisagem deslumbrante, entramos no Lajeado sendo recepcionado pelos mortos que descansavam a sombra de um pé de gameleira no pequeno cemitério local –Pequena também era aquela cidade formada por algumas casinhas. 

O ônibus parou em frente ao pé de pequi – onde ficava a quitanda do seu Valteidez – que servia como ponto rodoviário. Ali onde futuramente seria construída a praça 05 de Maio, os peões estavam levantando o salão onde os foliões irião dançar forró até alta madrugada, depois das missas do festejo.

Pegamos nossas bagagens e seguimos para casa de dona Caetana que ficava também em frente ao pé de pequi, mas do outro lado da rua – estrategicamente ao lado do salão de festas. E ali passamos os dias que perduraram os festejos –Melhor dizendo, a casa de dona Caetana era mais um ponto de apoio, pois ficávamos mais na rua desbravando o local do que na casa dela.

O que nos encantava em Lajeado era que ali tínhamos mais liberdade para brincar ao contrário de onde morávamos em Miracema – ali estávamos mais próximos da natureza. Por tanto não foi sem um sentimento de tristeza que tivemos que deixar Lajeado para retornar a nossa casa em Miracema. 

Mau sabíamos que aquela seria apenas a primeira das muitas viagens que faríamos para o Lajeado. Acompanhariamos muitas mudanças por ali, e inclusive acabariamos mudando para cá definitivamente. Mas também sofreriamos com a perda de tantos amigos queridos ao longo desses anos todos. O que  no entanto, não tirou o nosso brilho no olhar por esse lugar. 

Não há um dia que não nos sentimos encantado pela paisagem que nos rodeia – que não deixamos de nos sentir privilegiado por morar aqui (sem deixar de reconhecer os problemas que há). Por isso dizemos, sem dúvida, que não nos arrependemos de ter pisado nessa terra um dia e aqui fincado raízes. 

Por Pedro Ferreira Nunes – Poeta, Escritor e Educador Popular Tocantinense.

domingo, 30 de abril de 2023

Conto: E ai meu?! Quanto tempo.

John como de costume acordou por volta das 11h da manhã. Lavou o rosto e em seguida ligou a tv para assistir o jornal e ver se via alguma proposta de emprego interessante. Nada que lhe chamasse a atenção, as mesmas notícias de sempre – desgraças e mais desgraças.

- Foda-se meu. De desgraça basta a minha vida.

John desliga a televisão, levanta-se e vai até a geladeira, abre e não encontra nada que lhe interessa. Procura o resto do conhaque que deixara da noite anterior, mas à garrafa estava seca. 

John revira suas coisas para ver se tem algum trocado perdido em algum lugar do seu barraco. Após muita procura consegui algumas moedas que dá para comprar uma garrafa de conhaque.

Assim John segue rumo à distribuidora de bebidas que fica próximo ao barraco onde mora. Com a grana que tinha não dava para comprar um bom conhaque tal como ele gostava. Mas como não podia comprar um bom, ia um ruim mesmo.

John compra a bebida e segue de volta para o seu barraco. De repente no seu caminho um rosto conhecido.

- E ai John, quanto tempo?! Você sumiu.

- E ai meu. Quanto tempo. Você é que sumiu.

- E ai. Ainda está morando por aqui?

- Sim, estou naquele mesmo lugar. E você, onde está morando? Cadê o Jack?

- Então você não sabe? A gente se separou. Me cansei dele. Disse ela, sorrindo. 

- Hum, que pena meu.

- Melhor só do que mal acompanhada, não é? E você ainda esta só? Não vai me convidar para tomar um conhaque com você?

- Sim, claro. Vamos lá para o meu barracão. Não é um conhaque de primeira, mas da para tomar.

John fora perdidamente apaixonado por Lia. Conheceu-a em um festival de rock. De repente ela surgiu dançando em meio a uma roda de hardcore – Ela era linda, seu olhar, seu sorriso, suas tattos. Foi amor à primeira vista. Como se tivesse hipnotizado, ele não conseguia tirar o olho dela dançando com um all star preto. E ela ao vê-lo sorri e caminha na direção dele. Sem trocar se quer uma palavra agarra-o e o beija.

John não podia acreditar no que estava acontecendo. Como tão bela mulher podia esta afim dele. Naquela mesma noite começaram a namorar. Mesmo com a vida louca que Lia levava, Joh decidiu morar com ela. Viveram meses felizes.

Em um belo dia ao voltar do trabalho para casa John encontra Lia na cama transando com o seu melhor amigo. John sentiu um ódio incrível dentro de si, pensa em mata-los. 

Mas de repente apenas uma crise de riso toma conta dele, e ele sorri, sorri gostosamente. Vira as costas e deixa Lia e Jack ali sem ação. John vai até um bar compra uma garrafa de conhaque e toma. Depois outra e outra. 

Após este fato ele nunca mais vira Lia, nunca mais a procurou ou tentou saber como ela estava vivendo com Jack. Ele ainda gostava muito dela, mas já mais correria atrás dela. Mesmo tendo tudo para odiá-la, ele não a odiava, mas também não tinha a ilusão de voltar a morar com ela.

Quando chegou ao barracão John colocou um rock pra tocar e depois abriu a garrafa de conhaque. Preparou uma dose para Lia e outra para ele. 

No mesmo ritmo que a garrafa de conhaque ia secando, o sangue dos dois ia si esquentando. E no ritmo que seus sangues iam se esquentando, eles iam se aproximando um do outro. E no ritmo em que iam se aproximando um do outro, foi impossível, sobretudo para John evitar que se entregassem ao desejo dos seus corpos.

- Hum, senti tanta falta de ti, de ficar contigo. Eu ti amo tanto John. Quero ficar a vida toda contigo.

- Também senti muita falta de ti.

John deitado com Lia nos seus braços, fumando um palheiro, após terminarem de transar e ouvir as juras de amor dela, pensava consigo:

- Essa vaca pensa que me engana. Pensa que eu vou cair nessa de novo? Ela esta muito enganada.


Por Pedro Ferreira Nunes - um rapaz latino americano que gosta de ler, escrever, correr e ouvir Rock in roll. 

terça-feira, 25 de abril de 2023

Poema: Canção para Vera Lúcia


Canção para Vera Lúcia 

Quando nos dias mais cinzentos
Não tiver ânimo para levantar.
Quando no peito bater saudade 
de quem partiu para não voltar.
Não desista
vale a pena continuar.

Quando nada faz sentido
e a visão começa a turvar.
As respostas que procura 
não se deixa revelar.
Não desista 
vale a pena continuar. 

Quando se sentir culpada
e querer se isolar.
Não abrir seu coração 
com medo de se frustrar.
Não desista
vale a pena continuar. 

Quando se sentir perdida 
não saber aonde está. 
Na cabeça mil pensamentos
e um vazio de matar.
Não desista
vale a pena continuar.

Mesmo quando nada faz sentido
tudo parece desmoronar. 
Transforme a ausência em presença 
de quem aqui já não está. 
Não desista
Vale a pena continuar.

Por aqueles que ti amam 
vale a pena continuar.
Por você mesma 
é preciso perseverar.
Como diz uma canção:
- de algum jeito vai passar. 


Pedro Ferreira Nunes – Casa da Maria Lúcia. Lajeado - TO. 


quinta-feira, 20 de abril de 2023

O filme Vazante e as relações de poder

Para nós que crescemos numa cultura ribeirinha, vazante é o nome dado as porções de terra onde o rio chega no período de cheia levando nutrientes que contribuirá para que se torne um local propício para o cultivo de plantação como milho, feijão, melancia, mandioca entre outros. Algo totalmente contrário ao ambiente retratado pela cineasta Daniela Thomas no longa-metragem Vazante 2017) – um recorte do Brasil Colônia.

O longa-metragem é mais uma obra-prima do cinema nacional, com uma fotografia belíssima e um bom elenco. Com destaques para atuação do ator português Adriano Carvalho no papel do tropeiro Antônio. E Toumani Kouyaté no papel de um escravo rebelde. Aliás esses personagens retratam bem a dinâmica da narrativa construida em torno de relações entre dominador e dominado. Ainda que essa não se restringe a questão da cor como podemos perceber na relação do Antônio com sua esposa Beatriz. 

A sinopse do filme é a seguinte: “Em 1821, no interior do Brasil, nas serras pedregosas das Minas Gerais, depois da economia local, que era baseada na extração de diamantes, ter entrado em colapso, Antônio, um patriarca do século XIX, que ao voltar de uma longa viagem conduzindo uma tropa de escravos descobre que sua mulher morreu em trabalho de parto”, se casa com a jovem Beatriz, que na ausência do marido, fica sozinha com os escravos. “Solidão, incomunicabilidade e preconceito levam a uma espiral de violência.”

 A priori o filme não é sobre Antônio e Beatriz – mas sobre um período da nossa história marcado pela condição desumana que os negros eram submetidos (regime escravocrata). Isso fica evidente já no início da obra quando escravos  acorrentados são conduzidos por um caminho inóspito rumo a fazenda comandada por Antônio. Como também ao longo do filme através das cenas que mostra a condição degradante que os escravos vivem na Fazenda. No entanto, parece que isso não foi tão recebido pela crítica que acusou inclusive, no seu lançamento em 2017, a Diretora Daniela Thomas de racismo. Pode ser ingenuidade da minha parte, mas assistindo o filme não vi nada disso que a crítica aponta.

No entanto me pareceu que o conflito psicológico dos personagens acaba se sobrepondo ao aspecto histórico – este acaba ficando como pano de fundo de uma discussão sobre dominação – uma dominação que se dá a partir de uma relação de força que é estabelecida entre os indivíduos. Lembrando assim a microfísica do poder de Foucault. 

De acordo com Foucault “o poder não é algo que se detém como uma coisa, como uma propriedade, que se possui ou não. Não existe de um lado os que têm o poder e de outro aqueles que se encontram dele apartados”. Para nosso filósofo “rigorosamente falando, o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder. O poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona.” Como isso se dá? De acordo com Foucault “onde há poder há resistência, não existe propriamente o lugar de resistência, mas pontos móveis e transitórios que também se distribuem por toda a estrutura social. A guerra é luta, afrontamento, relação de força, situação estratégica. Não é um lugar que se ocupa, nem um objeto que se possui. Ele se exerce, se disputa. Nessa disputa ou se ganha ou se perde.”

Em vazante não há vencedores. Sobretudo por que a disputa não leva a outro paradigma – onde as relações de poder são estabelecidas a partir de uma ótica diferente. O que há é uma espécie de vazão de ódio que leva a eliminação do outro. Culminando assim numa tragédia. Talvez ai esteja uma justificativa para o nome do filme – a ideia de vazante como algo que sai do controle. Essa ideia de controle vem da ilusão de que possuímos o poder, mas lembrando de Foucault – o poder não é algo que se possui – é o que Antônio irá descobrir da pior forma possível. 

Nesse sentido a mensagem do filme parece caminhar para a ideia de que num contexto onde prevalece relações de dominação de um indivíduo sobre  o outro não há perspectiva para paz. Pelo contrário, caminha-se para um desfecho trágico. 

Enfim, vale a pena ver o filme. Além dos problemas filosóficos que a obra suscita, da questão histórica e outros elementos. Cabe destacar a beleza estética – a fotografia, a atuação do elenco – muito mais através de gestos, olhares ou de um suspiro. E o ritmo – um ritmo lento mas que não deixa de segurar o espectador pela dinâmica dos acontecimentos que vão sendo costurados de uma forma que a gente sabe que vai desembocar em algo e assim ficamos amarrados para saber o quê e como será. 

Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos.

sábado, 15 de abril de 2023

Memória e Esquecimento: O Exemplo do Cemitério do Bairro Correntinho em Miracema do Tocantins

“Não há fundamento mais forte da produção da indiferença do que à indiferença a morte”. 

Vladimir Safatle 


Na tradição filosófica aprendemos que não somos puramente racionais. De modo que devemos levar em consideração o aspecto emocional. Sim, nós somos afetados por afecções que, como diria Espinosa, aumenta e diminui a nossa potência de agir. E não temos como evitar. Por exemplo, diante da perda. E não há perda maior que a morte de alguém que amamos.

Não temos como ficar indiferente diante da morte, sobretudo de um ente querido. O contrário seria perder aquilo que nos faz humanos – a consciência da nossa finitude. Quando nos tornamos indiferentes, nos tornamos apáticos, nos comportamos como autômatos. E assim avançamos para uma sociedade egoísta onde perdemos os laços de solidariedade e a morte é banalizada. Por isso não nos custa lembrar as palavras do filósofo e professor Vladimir Safatle: “não há fundamento mais forte da produção da indiferença do que a indiferença à morte”. Aqui ele não está falando apenas da perda de uma pessoa querida. Mas em geral. Com isso ele chama atenção para o aspecto político do esquecimento. Sobretudo de mortes provocadas pela violência do Estado – onde se nega o direito à memória.

Na minha visão essa violência ocorre também na falta de preservação dos espaços destinado a memória dos nossos mortos – os cemitérios. Muitos cemitérios são tratados como depósito de corpos, sobretudo no interior. É o caso por exemplo, do localizado no Bairro Correntinho em Miracema. Onde você vê uma completa desorganização e um profundo desrespeito não só a memória daqueles que ali estão enterrados como também da cidade. Pois essas pessoas são parte importante da história da cidade e por tanto da sua identidade.

O arquiteto e urbanista José Maria Xavier de Oliveira (2014) salienta que é “necessário analisar espacialmente os cemitérios e sua funcionalidade para os dias atuais, pois estes na maioria das vezes são construções antigas e mesmo as mais recentes em determinados casos não cumprem as exigências legais vigentes. Estes locais são muitas vezes construídos de maneira aleatória, sem o necessário e suficiente para o uso adequado do espaço, e seguem modelos de arquitetura baseados em construções de meados do século XIX.” Ainda de acordo com Xavier (2014), não se pode perder de vista que são espaço de uma questão simbólica. “Espaços que se perderam ao longo do tempo e que permeia todo o inconsciente das pessoas”. Por isso “é preciso resgatar nas pessoas o desejo de irem com mais freqüência aos cemitérios, para “cultuar” os seus mortos e usufruírem do clima de paz e tranqüilidade, encontradas ali e que devido ao abandono e degradação destes equipamentos urbanos e muitas vezes do seu entorno se tornam cada vez mais difíceis.”

Para mim, esses espaços são museus a céu aberto que trás em cada túmulo um pedaço da história da cidade. Por tanto devem ser conservados como um património histórico (sobretudo no interior onde não há muito espaço de conservação da memória local). Desse modo é inaceitável ver túmulos sem nenhuma identificação, que com o tempo acabam recebendo outro sepultamento tendo em vista a falta de controle e de espaço. Não é sem tristeza que sepultamos um ente querido num lugar assim. Mas o fazemos por compreender a importância simbólica de sepultar aquela pessoa num local ligado a sua história. 

Há certamente aqueles que não vem sentido nisso. Para estes, se a pessoa morreu não tem mais o que fazer. Nada disso que fazemos já não importa. Platão no diálogo Fédon salienta essa questão através de Sócrates nos seus últimos momentos de vida. Ao ser questionado por Críton como deveriam proceder com o seu corpo. Ele responde que o seu discípulo deve fazer como achar melhor, já que ele não estará mais ali. O que importa é a alma. Se o indivíduo teve uma vida virtuosa certamente irá para um bom lugar. 

Ora, não negamos que todo esse ritual ligado à morte diz respeito a nós enquanto ser humano – os únicos que tem consciência da sua finitude. Sabemos que iremos morrer, e esse fim irremediável perpassa toda a nossa existência. Mas essa morte não é por completo pois continuaremos vivendo na memória daqueles que estão vivos – o que nos torna imortais em certo sentido. Que o diga Sócrates.

Diante disso não podemos deixar de nos indignar e nos posicionar contra o esquecimento. Sobretudo quando esse se dá contra uma parte específica da nossa população. Voltando ao exemplo do cemitério do bairro do Correntinho. Será que se ali fosse enterrado os figurões da cidade de Miracema teriamos o mesmo descaso? Enfim, cabe a nós nos mobilizarmos para que a memória dos nossos mortos seja respeitada.


Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. Atualmente atua como Professor da Educação Básica no CENSP-LAJEADO.

segunda-feira, 10 de abril de 2023

No chão da escola: Comentários sobre o Novo Ensino Médio

✔Uma das principais críticas que tenho ouvido sobre a nova dinâmica do Ensino Médio é que os estudantes não estão tendo liberdade para escolher os itinerários formativos, como prometido. Pois a falta de condições estruturais das escolas, e de profissionais qualificados, não permite que essa escolha seja feita;

✔É importante lembrar que foi promessas como essa que proporcionou um apoio de 80% a reforma, através de uma consulta realizada pelo Governo Michel Temer. Ora, era evidente, que quem conhece as condições estruturais das escolas públicas, sobretudo no interior do interior do Brasil, sabe que isso é impossível; 

✔Não me surpreende os problemas que vem ocorrendo com a implantação da nova grade curricular do Ensino Médio. Sobretudo por que essa mudança foi meu objeto de análise no trabalho de conclusão de curso na graduação em Filosofia, intitulado de uma reflexão sobre a reforma do ensino médio a partir de Marcuse e Mészáros;

✔Esse trabalho me proporcionou entender a lógica por trás das mudanças propostas. E creio, me preparou para enfrenta-lá com mais tranquilidade a partir do chão da escola;

✔Enquanto professor de uma escola, não temos a opção de querer ou não a nova configuração do currículo escolar. Mas podemos resistir de outras formas. Como? Negando a lógica dominante que busca impor uma racionalidade tecnológica e restaurar o papel da crítica por meio de uma pedagogia radical nos moldes do que defendia Marcuse. Ou seja, aproveitar as contradições do sistema para jogar contra o sistema;

✔Um exemplo prático é o componente curricular de Projeto de Vida. Criado numa lógica para formar corpos dóceis para o mercado de trabalho, podemos nos apropriar dele e trabalha-lo numa perspectiva filosófica por meio de uma metodologia problematizadora;

✔As eletivas e trilhas de aprofundamento também são espaços que podemos disputar para recuperar e ampliar os espaços perdido pela área de humanas;

✔Ou seja, se é verdade que a nova estrutura curricular do ensino médio, nos trás uma série de limites, também há possibilidade de subversão da lógica imposta. Por que no final das contas quem concretiza o currículo é a professora e o professor na sala de aula;

✔Diante disso, não acredito que o caminho é a revogação do Novo Ensino Médio. Sobretudo se for para retornar a concepção que tínhamos anteriormente, que sejamos honesto, estava longe de ser progressista;

✔Precisamos sim defender mudanças que rompa com a lógica voltada para construção de uma racionalidade tecnológica. Essas mudanças só tem sentido se forem feitas a partir do chão da escola. Ou seja, ouvindo professores e estudantes; 

✔Nesse sentido, no início do ano, já colocamos em debate o lugar da Filosofia e das Ciências Sociais nas trilhas de aprofundamento da Rede Estadual da Educação do Tocantins. Creio que é um debate mais necessário no contexto atual do que a bandeira pela revogação do novo ensino médio;

✔Aliás se levarmos adiante a pauta pela revogação do novo ensino médio devemos nos questionar qual a força que temos no congresso nacional para aprovar uma reforma progressista. Não nos esquecemos que temos um dos parlamentos mais conservadores da história; 

✔Acredito que  podemos restaurar o pensamento critico sem necessariamente revogar a nova estrutura curricular. Óbvio que isso passa pela necessidade de formação dos professores para que compreendam de fato a nova dinâmica e a partir daí consigam subverte-la; 

✔Para que tenhamos mais força nesse debate precisamos estar organizado enquanto professores que atuam na educação básica. Nesse sentido é interessante iniciativas como dos professores de Filosofia no Ceará que criaram uma associação, em São Paulo já existia e também há uma discussão na Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia  (ANPOF) nesse sentido;

✔Um dos papéis dessa associação seria de reivindicar o ensino de Filosofia na Educação Básica com profissionais formados na área. Nesse sentido, fazer o enfrentamento para que tenha mais vaga nos concursos públicos para esses profissionais. Por exemplo, no concurso da educação do Tocantins há apenas 56 vagas num estado onde temos 139 municípios. No entanto não houve nenhum questionamento ao edital. Por que não houve? Por que não há organização dos professores dessa área;

✔Enfim, acredito que o debate acerca do novo ensino médio deve se deslocar da sua revogação para o que podemos fazer diante do que está posto. Até por que o Governo Lula já deixou claro que não tem disposição em fazê-lo, o congresso nacional também não. E a mobilização social não demonstra força para demove-los do contrário;

✔Essa também é a análise do Filósofo e Professor Renato Janine Ribeiro (Presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência  - SBPC) numa entrevista recente para Carta Capital onde ele fala sobre os 100 dias do Governo Lula;

✔Até agora, a análise do Professor Renato é a mais lúcida em relação a essa temática. Inclusive a fala dele acerca de que muito das críticas feita ao novo ensino médio é feita por quem não conhece a realidade do ensino médio. Ele também defende a possibilidade de se fazer uma reforma da reforma, claro, ouvindo professores e estudantes;

✔Cabe a nós que estamos no chão da escola, fazer o enfrentamento a racionalidade tecnológica – fazendo da sala de aula uma trincheira de resistência – tanto nas aulas como nos projetos, tanto na formação geral básica como nos itinerários formativos. 


Pedro Ferreira Nunes – especialista em Filosofia e Direitos Humanos. Atual como Professor da Educação Básica no CENSP Lajeado.